Pontos de Leitura. O cadinho de uma teoria crítica impura – por André Magnelli

Hoje, no Fios do Tempo, publicamos o prefácio ao livro “A fábrica da emancipação“, de Jean-Louis Laville e Bruno Frère. Neste “O cadinho de uma teoria crítica impura”, apresento, como tradutor e editor da obra, a proposta de renovação da teoria crítica nela elaborada.

Desejo, como sempre, uma excelente leitura. Estamos por aí para dialogar sobre esse texto e o livro.

André Magnelli
Fios do Tempo, 01 de junho de 2023

TÓPICOS
1. O cadinho das críticas
2. Uma teoria crítica atenta às emancipações impuras
Uma crítica impura, mestiça e plural
Uma teoria aterrada e relacional
Criticar associando-se
Uma atenção às emergências emancipatórias
A práxis teórico-crítica
A instituição complexa e a prática instituinte



O cadinho de uma
teoria crítica impura

Uma parte significativa da teoria crítica contemporânea está presa em reproduções eruditas de sua própria tradição e em um diagnóstico desencantado do tempo presente. Os teóricos parecem se contentar com a crítica negativa do mundo existente, abandonando vias concretas de práxis emancipadora.

Como dissemos no projeto Cartografias da crítica[1], vivenciamos hoje uma superestimação da crítica e uma hiperinflação das crises, em que a própria relação entre crise, crítica e práxis se encontra tensionada ao limite: por um lado, as crises se multiplicam e são cada vez mais difíceis de serem compreendidas por causa da fragmentação social e da especialização científica; por outro, as críticas, descoladas dos processos concretos e dos próprios atores, se tornam muito abstratas e aficionadas pela denúncia de toda a ordem existente; no meio disso, a práxis emancipadora se vê desqualificada de antemão por um cinismo de cátedra, ou, alternativamente, é delegada a “vanguardas” empoderadas imaginariamente por acadêmicos encerrados em carreiras burocratizadas. Por sua vez, ser “crítico” se tornou não apenas um valor de atividade cidadã, como também um estilo de “autenticidade”, fomentado pelo sensacionalismo de mídias e pela dinâmica narcisista das redes sociais, sempre dispostas a reforçar a descrença no bem comum em troca de likes e lucros. Seja em jornais, redes sociais, espaços universitários ou públicos, as más notícias dão audiência e visibilidade na concorrência utilitarista própria ao estilo neoliberal de governar. Deste modo, a denúncia “crítica” se degrada no business as usual, de forma que muitos se tornam “críticos” sem se importarem muito com o que é a própria atividade crítica, tanto como processo quanto como compromisso.

Paralelamente, vivemos em uma época de encruzilhadas, na medida em que está em jogo uma série de crises que demandam ferramentas conceituais e práticas para realizar as transições sociais, econômicas, democráticas e ecológicas do século XXI. Impõe-se um desafio: como conduzir a práxis da teoria crítica em uma sociedade atravessada por tantas crises decisivas – incluindo a crise da própria crítica –, de modo a criar respostas práticas com compromisso emancipatório? É preciso antes de tudo restabelecer a relação da crítica com a efetividade das coisas e com a práxis individual e social, liberando-nos da confortável fixação em uma crítica meramente negativa, isto é, em uma hipercrítica.

Esta foi a razão pela qual conduzimos no Ateliê de Humanidades o projeto Cartografias da crítica – do qual derivou a série homônimade nosso editorial –, onde colocamos questões fundamentais: o que é, afinal, teoria crítica? E como podemos reconstruí-la de modo a efetuar um diagnóstico adequado de época? Em sua primeira fase, o Cartografias da crítica teve o objetivo de cartografar as distintas constelações intelectuais de pensamento crítico. Mesmo que tenha se dedicado à centralidade da tradição da Escola de Frankfurt, ele propôs uma concepção abrangente de teoria crítica que englobava outras constelações intelectuais, incluindo a sociologia de Bourdieu, os pragmatismos sociológicos, o pensamento francês do político, as teorias pós-coloniais e decoloniais, entre outras.[2] Após este percurso investigativo, o projeto avançou para a segunda fase, quando já havíamos estabelecido um esboço de diagnóstico do estado atual da crítica e uma análise dos elementos e motivos básicos da teoria crítica; então, visamos restituir o caminho histórico da crítica na modernidade e, ao mesmo tempo, vislumbramos a necessidade de ir além da atividade cartográfica para a reconstrução da teoria crítica no século XXI.[3]

Tão logo foi criado o Ateliê de Humanidades Editorial, concebemos como uma segmentação da série Cartografias a coleção Metamorfoses, dedicada a publicar livros que descrevem, sistematizam e promovem outros modos de vida em relação ao que predomina no atual utilitarismo radicalizado, e que estejam associados a experiências emancipadoras de liberdade, justiça, solidariedade, ecologia, bem viver, amorosidade. A coleção publica, assim, livros sobre dom, convivialismo, ecologia política, economia plural, nova gestão, economia social e solidária etc., buscando convergir múltiplas iniciativas cognitivas, afetivas, econômicas, políticas, ecológicas e éticas que possuam potenciais generativos de caráter emancipatório. A série Cartografias da crítica e a coleção Metamorfoses expressam o núcleo da missão da nossa instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades, pois o Ateliê é ele mesmo uma experimentação associacionista que cria, aberta e processualmente, uma instituição em rede voltada à atividade crítica e reconstrutiva, que articula teoria e prática, atores e instituições, com o objetivo de estabelecer experiências emancipatórias, promover o bem comum e gerar formação democrática.

Sabíamos, de partida, que alguns livros entrariam no duplo registro editorial – série Cartografias e coleção Metamorfoses –, pois seriam contribuições tanto para o mapeamento e a reconstrução da teoria crítica quanto para a orientação prático-transformativa. Alguns deles, como os de Paulo Henrique Martins, puderam ser inscritos alternativamente numa ou noutra coleção, apesar de um alto nível de arbitrariedade na escolha.[4] Mas, agora, A fábrica da emancipação: repensar o capitalismo a partir das experiências democráticas, ecológicas e solidárias ocupa inequivocamente a dupla face editorial, que é, em igual medida, o esforço conjunto de toda teoria crítica consequente consigo mesma. Assim, A fábrica da emancipação inicia a publicação das obras de Jean-Louis Laville em nosso editorial, juntamente com Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social, economia solidária, inscrito na coleção Metamorfoses.

Ao meu ver, A fábrica da emancipação é um livro que expressa uma virada de época, pois explicita lucidamente os desafios da teoria crítica na atualidade, associando-os às emergências do tempo presente. Esse livro é resultado da maturação de um processo investigativo teórico e empírico de Jean-Louis Laville, que se dedica, desde os anos 1980, a pesquisas em torno de temas como o associacionismo, a economia plural, a economia solidária, os serviços de proximidade, a inovação social, a gestão solidária, os espaços públicos locais e a renovação da esquerda, realizadas num diálogo constante com redes intelectuais e ativistas por todo o mundo, sobretudo na Europa e na América Latina. Sua obra integra o que denominamos de vertente francesa de teoria crítica, ao lado de outros como Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Alain Caillé, Philippe Chanial, Pierre Rosanvallon, Marcel Gauchet.[5] A contribuição particular de Laville está não apenas no rico campo de investigação feito no entrecruzamento de economia, democracia, solidariedade e emancipação, como também na sua orientação mais sociológica que a dos demais, pois possui uma dimensão empírico-descritiva bem próxima dos atores investigados. As formalizações teóricas e as orientações normativas de Laville tendem, deste modo, a se distanciar de voos mais especulativos, caracterizando-se por uma investigação de tipo pragmatista. Neste livro, esses fatores foram potencializados com a colaboração do teórico belga Bruno Frère, um especialista em movimentos de teoria crítica que tem incursões no campo das iniciativas associacionistas e solidárias.

Percebemos, de pronto, as claras aproximações dos propósitos de A fábrica da emancipação com o Cartografias da crítica. Primeiramente, o livro busca desfazer o aprisionamento da crítica na hipercrítica e estabelece a necessidade de construir uma nova teoria crítica. Neste sentido, Laville & Frère identificam o estranho distanciamento entre, de um lado, a crítica teórica, vista como uma prerrogativa de intelectuais que ignoram processos emancipatórios emergentes para romantizar acontecimentos passados ou vindouros e, de outro, a disposição de atores e movimentos sociais demonstrando uma vontade de emancipação não apenas na concretização de direitos, como também na tentativa de ampliar seus poderes de agir. Diante disso, eles indagam-se: “a teoria crítica pode fazer outra coisa além de pensar em um mundo fundamentalmente nocivo à saúde, incompleto ou amputado?”. A resposta afirmativa a essa indagação é a própria razão de ser do livro.

Antes de tudo, é preciso, para os autores, conjugar o verbo emancipar no tempo presente, afastando a negatividade da tradição de teoria crítica de modo a construir formas mais arejadas e abertas de teorização.Para tanto, é necessária uma rearticulação entre teoria e práxis. Se o livro se mantém comprometido com a crítica das relações de dominação no interior do capitalismo, ele busca discernir, em igual medida, as vias de emergências emancipatórias por um caminho desvencilhado das consequências oriundas da ascensão da esquerda comunista no século XIX, que relegou ao esquecimento os potenciais emancipadores dos associacionismos. A nova teoria crítica demanda, portanto, se desvencilhar de certas compreensões herdadas, a fim de retomar o fio das experiências associacionistas e pensar outras formas de articulação entre experiência, pesquisa, interpretação, ação e institucionalidade.

Em segundo lugar, A fábrica da emancipação reconhece a pluralidade de teorias críticas para além da tradição da Escola de Frankfurt. Se Laville & Frère analisam criticamente, nos capítulos 1 e 2, as distintas gerações da Escola de Frankfurt (Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e Axel Honneth), eles trazem para a discussão, ao longo do livro, a sociologia de Pierre Bourdieu, a teoria do ator-rede de Bruno Latour, a sociologia pragmática de Luc Boltanski, o pensamento do político de Claude Lefort, a filosofia pragmatista de Isabelle Stengers, a ecologia dos saberes de Boaventura de Sousa Santos, a crítica decolonial de Aníbal Quijano e vários outros autores e autoras do cenário teórico atual. Eles propõem, assim, uma síntese a partir da pluralidade de contribuições, mostrando as qualidades e os limites dos autores e se apropriando deles de forma dialógica, cumulativa e construtiva.[6]

Este trabalho é composto por duas partes. Nos capítulos 1 a 4, Laville & Frère reconstroem, de modo crítico, as distintas vertentes teóricas contemporâneas; e nos capítulos 5 a 7 e na conclusão, eles apresentam os contornos de uma teoria crítica renovada, que resultaria de uma virada epistemológica articulada às novas emergências emancipadoras.

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O cadinho das críticas

“Cadinho” é uma palavra portuguesa bem interessante. Poucos sabem que ela se refere denotativamente a um vaso onde se fundem metais ou outros minerais, mas muitos identificam seu sentido metafórico de “lugar quente e acolhedor”. Ela fica ainda mais instigante quando recolhemos um segundo sentido figurado: o de um lugar onde se mesclam ideias diferentes e elementos variados. De olho nessa riqueza semântica, podemos afirmar que A fábrica da emancipação se desgarra da tradição da teoria crítica – que tende a ser distanciada, repelente, fechada e sisuda – para promover um cadinho de críticas que acolham a diversidade do mundo e sejam um espaço de teorização atenta às ideias e práticas emancipatórias. Assim, na sua primeira parte (capítulos 1 a 4), o livro dialoga com a diversidade de propostas teórico-críticas.

Nos capítulos 1 e 2, Laville & Frère fazem uma análise precisa das duas principais vertentes de teoria crítica: a Escola de Frankfurt e a sociologia crítica de Pierre Bourdieu. A principal preocupação está em delinear como se estabelece, nestas tradições teóricas, uma modalidade de crítica negativa.

No capítulo 1, eles visam mostrar que tanto a primeira geração da Escola de Frankfurt quanto a sociologia crítica de Bourdieu tendem a totalizar a análise da dominação de modo que o ideal emancipador se desvanece. Em ambas, há certo desprezo pelo senso comum, desconsiderando a consciência que os próprios atores têm do que são e fazem. Esse fato faz com que se reserve a capacidade de agir a um grupo de eleitos: no caso da primeira Escola de Frankfurt, as vanguardas artísticas ganham feições salvadoras, no caso de Bourdieu, os sociólogos são cientistas oniscientes. De fato, esta atitude fomenta, com facilidade, uma hipercrítica de cátedra, conformista no seu íntimo e socialmente insidiosa, pois desprendida de práticas emancipadoras. Contudo, a principal novidade não está em apontar para isso, pois essa crítica está bem consolidada no debate, mas sim no fato de considerar a Escola de Frankfurt e Bourdieu em conjunto, fazendo-os dialogar, coisa mais rara de acontecer.

As inovações interpretativas se mostram mais evidentes no capítulo 2, porque os autores da segunda e terceira gerações da Escola de Frankfurt – Jürgen Habermas e Axel Honneth – são classificados como uma modalidade de crítica negativa. Mas… como assim? Não foram eles justamente que se desvencilharam das aporias da primeira geração e recuperaram o vínculo positivo entre crítica, normatividade e emancipação? Para compreender este ponto e a argumentação de todo o livro, precisamos identificar o lugar fundamental que foi assumido por Habermas.

De um lado, para Laville & Frère, Habermas é responsável por formular noções centrais, uma vez que põe a democracia no centro da teoria crítica; desenvolve a noção de espaço público autônomo; e elabora uma concepção de emancipação centrada na vida associativa dentro de um mundo da vida tecido por relações comunicativas. De outro lado, Habermas estaria preso numa crítica negativa, malgrado ele mesmo. Ele teria um excesso de abstração por causa dos dualismos analíticos, acarretando num déficit sociológico que reduz a complexidade social, pois constrói conceitos normativos muito esvaziados de referências empíricas. Com efeito, outros autores dizem a mesma coisa e a novidade não está aqui, mas sim na afirmação de que Habermas não conseguiria apreender, por essa razão, a diversidade das associações e dos espaços públicos. Para os autores, ao elaborar o conceito de espaço público como intermédio entre sistemas e mundo da vida, as instituições econômicas e políticas seriam analisadas somente no âmbito do agir instrumental-teleológico – Estado e Mercado –, sendo reduzidas assim aos sistemas. Desta forma, ele não perceberia que as práticas econômicas e políticas são tecidas por hibridizações que envolvem relações associativas e diferentes níveis de institucionalização. Por essa razão, Habermas acaba por se fixar, para eles, numa crítica negativa, centrando-se numa posição defensiva de evitamento da colonização do mundo da vida composto por associações (supostamente não-econômicas e não-políticas) pelos sistemas, sem identificar as emergências emancipadoras existentes no mundo da vida, muitas vezes entremeadas, com muitas ambivalências e complexidades, às instituições e aos poderes. Por isso, na falta de um olhar empiricamente nuançado, a teoria do agir comunicativo não reconheceria a existência concreta das associações, que são capazes de se institucionalizar sem prejuízo necessário à natureza das iniciativas e com benefícios sociais emancipatórios. Por isso, Laville & Frère se propõem a avançar o pensamento de Habermas para além dele mesmo, fazendo uso de seu arcabouço teórico – sobretudo o conceito de espaço público autônomo e a ideia de democracia deliberativa – a fim de encaminhar uma teoria crítica mais vinculada às práticas associacionistas realmente existentes. Como eles dizem: “não hesitamos em ir ao coração das associações nas quais os espaços públicos autônomos podem ser encarnados”.

Este problema de Habermas seria atenuado por Axel Honneth, quando esse último desenvolve a teoria das lutas por reconhecimento. O conceito de reconhecimento fornece mais materialidade à ideia de intersubjetividade que passa a guiar a teoria crítica da segunda Escola de Frankfurt; além disso, Honneth abre o campo para uma análise da democratização social por meio de transformações institucionais desencadeadas através de uma “experimentação permanente em face das crescentes patologias do corpo social”. Contudo, segundo Laville & Frère, ele teria ficado, como ocorre tendencialmente na tradição crítica posta na esteira da filosofia social, preso à necessidade de postular uma natureza humana impura a ser violada; e ele não teria apreendido corretamente o papel da vida associativa nas sociedades modernas, desprezando-as em favor de uma teoria resignada da modernidade, uma vez que assume como dadas as condições sociais e institucionais estabelecidas pelo capitalismo. Deste modo, Habermas Honneth estariam muito presos ao que existe de instituído, sem apreenderem a existência dos processos instituintes reais. Como Laville & Frère expressam com força: “O mundo da comunicação não está descrito e está destinado a ser poluído”. Apesar de não estar inteiramente convencido da classificação de Habermas e Honneth no rol da “crítica negativa”, considero profícuo o desafio proposto a partir daí: o de examinar como os processos emancipatórios teorizados por eles, presentes nas noções de espaço público e lutas por reconhecimento, podem se concretizar em experiências associacionistas (formais ou não, legais ou não) que promovam democratização e emancipação.

Esta provocação nos conduz ao capítulo 3, onde aparece o segundo interlocutor fundamental: Bruno Latour. A partir dele, A fábrica da emancipação começa a tecer os fios de uma crítica construtiva. Numa leitura bem fina, que identifica diferentes fases na obra, Laville & Frère mostram como a sociologia das associações parte de uma crítica à barbárie provocada pela hipercrítica e busca promover a descrição do que os atores realmente fazem. Com Latour, a crítica se desloca, saindo da abordagem generalizante da filosofia e da sociologia a fim de mergulhar na sensibilidade etnográfica e pragmatista; ao mesmo tempo, ela se abre para uma abordagem não antropocêntrica das associações entre humanos e não-humanos. Contudo, para eles, a teoria do ator-rede não dá espaço para uma crítica negativa, pois sua ênfase sobre as redes e os fluxos coloca nas sombras as assimetrias e hierarquias instituídas socialmente com relações de dominação. Ou seja, ao analisar os processos como imanências reticuladas, Latour acaba por não desenvolver uma análise das instituições no que podem ter de cristalizações de recursos, assimetrias de poder e relações de dominação. Isso ocorre porque ele possuiria uma concepção “irenista”, como se os actantes não fossem contaminados por intenções, motivações e orientações perversas, passíveis de uma hermenêutica da suspeita. Não por acaso, inexistem quase até o fim da obra formulações de crítica ao capitalismo, e vemos muito pouca preocupação com a dita “questão social” (desigualdade e justiça). De todo modo, Laville & Frère reconhecem que tardiamente, quando começa a se dedicar nos últimos anos à mutação climática e ao Antropoceno, Latour deslocou-se para uma abordagem mais crítica do social, que o aproxima das intenções de A fábrica da emancipação. Aliás, ele não apenas é quem oferece a melhor referência para a crítica construtiva, como também é o que pode melhor inspirar os autores na identificação da articulação intrínseca no Antropoceno entre os problemas ecológicos, sociais e políticos (tematizada tardiamente em Onde aterrar?). De todo modo, sua obra não seria suficiente para construir a nova teoria crítica, posto que é necessário sustentar um momento mais vigoroso de crítica negativa. Até porque, se de fato politiza a natureza, Latour tende contudo a despolitizar os humanos, transformando-os em relevantes à descrição apenas quando são porta-vozes de não-humanos.

Esta oposição entre a “crítica negativa” da segunda Escola de Frankfurt, de um lado, e a “crítica construtiva” de Latour, de outro, constitui o quadro teórico para a proposição, no capítulo 4, de uma articulação entre as duas modalidades de crítica. Para empreender isso, eles recorrem a dois aportes teóricos: o pragmatismo sociológico de Luc Boltanski e as epistemologias do Sul.

Luc Boltanski é o terceiro autor fundamental, porque traz a crítica negativa para o interior da abordagem pragmatista, saindo da armadilha de um pragmatismo acrítico falsamente simetrizador. Com isso, ele retoma as intenções da sociologia crítica de Bourdieu para um quadro interpretativo renovado, que se desvencilhou das pretensões de onisciência sociológica e suas derivas hipercríticas. Mesmo que estivesse próximo de Latour nos anos 1990, Boltanski segue outro rumo nos anos 2000, retomando o problema da dominação e da emancipação. Neste sentido, sua noção de prova existencial e sua distinção entre mundo e realidade permitem uma crítica descritiva e processual das formas de dominação; todavia, a teoria das instituições de Boltanski teria colocado de novo a crítica fora do alcance dos atores, uma vez que concebe uma metacrítica apartada do que os atores pensam estar fazendo. Deste modo, a direção tomada retrocederia, segundo Laville & Frère, em relação às aquisições teóricas do pragmatismo. O erro principal estaria no fato de que a conceituação da instituição está desconectada da apreensão do instituinte. Este ponto nos conduz ao desafio maior que entra no meio do livro: tendo em vista que a teoria e a prática emancipatórias demandam a possibilidade de mudança social, como podemos conceber, analisar e promover, então, o momento do instituinte gerador de mudança institucional?

Essa questão é importante porque, segundo eles, a falta de percepção do momento instituinte conduz a teoria crítica europeia a uma reificação de suas próprias instituições historicamente construídas, não apenas minimizando as possibilidades de emancipação, como também reduzindo a pluralidade do mundo fora do espaço transatlântico do Norte-Global. Dito de outro modo, a tendência da crítica negativa em reduzir a sociedade a uma lógica totalizante de dominação se estende à tendência de homogeneizar o globo em função da história europeia e suas categorias de pensamento e instituições. Por isso, Laville & Frère deslocam a perspectiva geocultural, passando a tratar das epistemologias do Sul.[7] Provavelmente, essa é a sua principal novidade dentro do contexto intelectual da França: trata-se de uma busca de conexão sistemática da teoria crítica europeia com as epistemologias do Sul. Em diálogo com diversos autores e com atenção aos movimentos sociais do Sul-Global, o livro conduz a teoria crítica para além de uma modernidade eurocentrada, abrindo-a à diversidade mundial realmente existente, ontem e hoje. Aqui somos reconduzidos ao quarto principal interlocutor, Boaventura de Sousa Santos, que não apenas propõe a noção de “epistemologias do Sul”, como também faz a distinção, acompanhada de perto, entre as sociologias das ausências e das emergências. Para Laville & Frère, as epistemologias do Sul permitem uma aprendizagem teórica com um enriquecimento da crítica ao conectá-la com outras epistemes e práticas. Portanto, importa tanto dialogar construtivamente com as teorias e epistemes do Sul como descrever as ações coletivas e instituições (invisibilizadas e/ou emergentes) fora da Europa e dos EUA que tenham um caráter emancipatório propiciador de uma transição econômica, social, democrática e ecológica.

É assim que as epistemologias do Sul entram como um momento-chave da argumentação, pois propiciam uma articulação entre crítica negativa e crítica construtiva, ao mesmo tempo em que abrem o horizonte de uma descrição empírica pluriversalista, que mostre que as experiências emancipadoras são mais plurais e híbridas do que pressupõem, por exemplo, as teorias de Habermas ou Honneth. Isso posto, o livro passa para a segunda parte, quando Laville & Frère delineiam a forma como podemos “repensar a crítica do capitalismo a partir das experiências democráticas, ecológicas e solidárias”, como bem descreve o subtítulo do livro.

Uma teoria crítica atenta às emancipações impuras

As críticas negativas e construtivas se entrelaçam,
assim como as práticas emancipatórias e emancipadas se entremeiam.

Na segunda metade do livro (capítulos 5 a 7 e conclusão), Laville e Frère apresentam os contornos de um programa de ação e de investigação que articula a crítica da dominação com a descrição das emancipações em atos. É desenhada aqui uma teoria crítica impura, da qual gostaria de traçar suas principais linhas.

Uma crítica impura, mestiça e plural

No esforço de articular as críticas negativa e construtiva, a teoria crítica deve recusar o “paradigma de desarraigamento” que predominou na tradição. É preciso abandonar quaisquer visões prometeicas de ruptura fantasmática da alienação, como se fosse desejável extirpar um ser humano “virgem, santo, livre e justo” das perversões dos séculos, ou se coubesse à práxis crítica libertar a humanidade de uma natureza amoral, suja, determinista e injusta. Ou seja, emancipar-se não é apartar-nos do mundo existente para chegar a qualquer perfeição. A crítica negativa precisa evitar a “atração pela pureza” e a tentação de uma “unidade crítica” a partir de fora. Ela deve reconhecer que impureza, pluralidade, hibridização e mestiçagem estão presentes em toda experiência emancipatória. Não há qualquer ilha de pureza emancipada; e projetar essa possibilidade no futuro é uma ficção utopista com efeitos perversos sobre a práxis vital, uma vez que conduz à ideia de uma mudança porvir que destrói a existência do que passou ou está presente.

Essas formulações demandam a necessidade de uma descrição atenta do que os atores (humanos e não-humanos) representam e fazem. A crítica tem que acompanhar as capacidades de agir e os atos através de uma reflexividade aberta que assume as contingências e acolhe as impurezas. Contudo, Laville & Frère lembram que este esforço pragmatista tem que estar conectado com as críticas negativa e construtiva aos mecanismos de reprodução da dominação; afinal, as relações emancipadas não nascem por geração espontânea e dependem de palavras e atos contra as desigualdades de poder, classe, raça, gênero, nação, etnia. De todo modo, a crítica demanda uma posição pluralista que compreenda a si mesma como saber relacional e relativamente contextualizado. Assim, ela pode evitar dois riscos, identificados por autoras como Frédérique Apffel-Marglin, Suzanne L. Simon e Chandra Mohanty: uma ideia padronizada da emancipação que simplifica o caráter contextualizado das experiências; e a imposição de uma grade analítica com falsa sensação de semelhança entre as opressões, os interesses e os combates dentro de um mesmo grupo.

Uma teoria aterrada e relacional

Percebemos já o quanto Latour – e outras filosofias pragmatistas, como as de Isabelle Stengers e Émilie Hache – é uma influência decisiva nos contornos da nova crítica. Laville & Frère se baseiam sobretudo em Diante de Gaia, que teve tradução publicada por nós em 2020.[8] Muito do que já dissemos aqui conduz ao desafio de uma teoria crítica para o Antropoceno.

Em Diante de Gaia, Latour reformulou sua crítica à ideia moderna de emancipação, que resulta, para ele, da imanentização de uma versão gnóstica do cristianismo: “O universo infinito, a evolução milenar, o inconsciente tortuoso… ora, tudo isso nos libera: enfim, saímos do nosso buraco! Finalmente nos emancipamos!”. Esta ironia tem por alvo a narrativa da emancipação como uma forma de extirpação de qualquer pertença, inclusive à Terra: “Pode ser uma surpresa, mas na época do Antropoceno, a Grande Narrativa da Emancipação nos tornou incapazes de encontrar a via da Terra à qual pertencemos”. Contrário a isso, ele propõe uma reversão da emancipação no Antropoceno, fazendo a ideia se inverter para o sentido do “nomos da Terra” de um Carl Schmitt desnazificado. Ao invés de uma pureza desterrada, emancipar agora é aterrar-se: “se há muito tempo temos a pretensão de que seria preciso deixar a Natureza para se emancipar como Humano, é diante de Gaia que os Terrestres buscam a emancipação”; e, em outro momento do livro, “em torno dessas questões razoavelmente obscuras do fim, dos objetivos, da finitude, do infinito, do sentido, do absurdo e assim por diante, sempre há a questão religiosa. Para que seja reencontrado o sentido da questão da emancipação, é preciso se emancipar do infinito”. Portanto, ao contrário da ideia fáustica de um controle completo da natureza e da sociedade, que fomentou a ilusão de um “homem novo”, a emancipação depende de um aprofundamento nas relações com os entes do mundo, num esforço sempre recomeçado de composição adensada, atenta e sensível ao que são, fazem e respondem.

A fábrica da emancipação reconhece também, junto com Latour e Stengers, que há hoje uma interpenetração incontornável entre os desafios sociais e ecológicos. A noção de finitude terrestre e humana, gerada pelas ameaças e incertezas da mutação sócio-ecológica, demanda uma ontologia relacional vinculada a uma ética de fragilidade, precariedade, vulnerabilidade e cuidado.[9] Essa última está presente tanto nas feministas quanto nos pragmatismos. Segundo os autores, distanciada das ambições de purificação da ontologia dualista, a crítica reconhece a vulnerabilidade como “a condição pela qual o mundo age sobre nós e a condição pela qual nós agimos sobre o mundo”. Neste sentido, o compromisso universalista se afirma como um lento e delicado trabalho de elaboração e composição de um mundo comum, de um pluriverso ou uma cosmopolítica, no qual “as heterogeneidades possam coexistir, longe da chamada facilidade de tudo se equivaler”. Nesta elaboração, é preciso reconhecer o intrincado das interdependências, ampliando a ideia de proteção para incluir não apenas o ser humano como também a materialidade dos seres vivos e da própria Terra. Trata-se de atuar por processos abertos e concretos que resistam à abstração da mercadoria e gerem solidariedades ecológicas e democráticas, num esforço constante para acolher a diversidade do mundo e de tudo aquilo que nele acontece.

Criticar associando-se

A crítica não pode ser, portanto, uma ladainha interminável sobre a impotência dos seres humanos em agir pelo bem comum. Ela deve evitar o sentimento de inelutabilidade das coisas e as derivas agonísticas, sempre dispostas a hiperinflacionar as reivindicações sem disponibilizar qualquer tempo para as práticas. A nova teoria crítica é um convite a criticar associando-se, isto é, a combinar o questionamento da realidade e a produção ativa de composições. Por isso, o esforço demanda uma articulação entre reivindicação de direitos, descrição de ações e construção de práticas.

Neste sentido, é preciso considerar a pluralidade das experiências de auto-organização e de poder de agir. Ao invés de distinguir entre movimentos sociais e associações, o desafio está em reunir todas as abordagens que se enquadram no conceito de associacionismo, ou seja, os projetos constituídos por ações em comum implementadas por cidadãos livres e iguais que se referem a um bem comum e se motivam por uma imaginação de autonomia. Já sinalizamos que as associações estão no entremeio de economia e política; vale acrescentar que o associacionismo é um nódulo entre a instituição democrática do agir comum e a produção compartilhada de vida e sentido. Com efeito, a análise precisa focar não só nos sofrimentos, mas também nos desejos das pessoas, ou seja, no “conteúdo de vivências que já estão se abrindo, no mundo tal como ele é, a atos emancipadores ou emancipados”.

Para tanto, a obra de Laville esclarece a importância de um reencontro com um associacionismo que nos faz falta, narrando as experiências e as ferramentas construídas numa história invisibilizada. Além disso, o livro aponta para uma cartografia do que acontece em nossas sociedades que transborda as instituições combinando protesto, consulta e construção, sendo portadores, dessa maneira, de outros modos de compor a vida, o econômico e o político. Ele nos convida, assim, a conectar a teoria crítica com uma sociologia do associacionismo, que descreva as experiências, as experimentações, os repertórios e os aprendizados da vida associativa, tanto em suas controvérsias com as instituições quanto em seus poderes instituintes. Trata-se não apenas de dar uma materialidade empírica à ideia de emancipação, como também de proporcionar uma perspectiva heurística, capaz de “fornecer outras luzes sobre a definição de economia e de solidariedade”. Todavia, nada disso deve conduzir a uma romantização de tais experiências.

Uma atenção às emergências emancipatórias

A nova teoria crítica precisa de uma atenção permanente às emergências emancipatórias que estão acontecendo, gerando solidariedade democrática, modos de autogestão e composições públicas. Elas devem ser analisadas com todas as suas impurezas e ambivalências, distanciando-nos tanto do encantamento ingênuo quanto da denúncia cínica. Tais experiências não emergem espontaneamente de reivindicações, ou da vontade de seus membros; como eles lembram, “os humanos se compreendem raramente e se opõem com frequência” e, por isso, as emergências solidárias e democráticas se dão em situações frágeis e experimentais, que demandam muita arte de composição. Por isso, suas trajetórias merecem ser reconstruídas, como um desafio de aprendizado coletivo autorreflexivo.

Ao invés de operar com uma ideia de igualdade abstrata e procedimental, a teoria crítica esclarece o entrelaçamento entre espaços públicos e associações através dos associacionismos. A noção de espaço público autônomo de Habermas se torna mais palpável quando descrevemos duas modalidades distintas: os contrapúblicos subalternos e os espaços públicos de proximidade.Enquanto espaço de afirmação reivindicativa de grupos subalternizados, os contrapúblicos subalternos estão mais próximos da crítica negativa, com um modo agonístico de agir; por sua vez, enquanto associações voltadas à revalorização do mundo da vida nas localidades e territórios, os espaços públicos de proximidade estão mais vinculados à crítica construtiva, com um modo praxiológico de agir. Contudo, os autores mostram que existem diversas formas de hibridização entre os espaços públicos, cabendo-nos analisar como essas modalidades se conjugam e estão intrincadas. A respeito disso, a noção de dispositivos generativos, tomada de Stengers, permite pensar as formas como se metamorfoseiam as descontinuidades visíveis em continuidades invisíveis. No fim das contas, os espaços públicos autônomos são gerados por ações de “integração de diversos públicos que fabricam a emancipação juntos”.

A práxis teórico-crítica

Todo esse esforço de reconstrução está relacionado a uma tentativa de interligação entre teoria, pesquisa e ação. De certo modo, os autores se colocam na continuidade da tradição da Escola de Frankfurt. Antes de tudo, porque eles formulam, como os frankfurtianos, uma teoria crítica contra o cientificismo como forma de conhecimento e a tecnocracia como modo de organização. Além disso, sua agenda teórico-crítica está comprometida com a articulação entre a filosofia e as ciências sociais, a elaboração conceitual e a pesquisa empírica. E, enfim, de modo semelhante ao ensaio de Max Horkheimer, Teoria tradicional e teoria crítica (1937), Laville & Frère entendem que a teoria crítica se diferencia das teorias tradicionais por causa da consciência reflexiva sobre a relação do saber científico com a práxis social, de modo que o teórico-crítico assume a si mesmo como interessado por uma vida emancipada.

É muito interessante, neste sentido, ver como os autores se apropriam de Cornelius Castoriadis, definindo a práxis como um “fazer no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia”. Como conduzir então uma práxis teórico-crítica? De partida, reconhecendo que não podemos transformar a crítica numa pretensão de desqualificar a priori outros saberes. Laville & Frère defendem, por isso, uma investigação mais próxima da pesquisa de campo, da prática etnográfica e da experimentação democrática. A auto-organização da práxis científica proposta por eles aproxima a teoria crítica de formas mais qualitativas e experimentais de conhecimento, tais como a pesquisa-ação, a pesquisa participativa, a etnografia colaborativa, a hermenêutica crítica intercultural etc.[10] Seguindo John Dewey – mais um interlocutor fundamental –, a crítica renuncia à busca da certeza e assume uma concepção pragmatista de investigação (enquête), orientando-se pelo reconhecimento das capacidades críticas e dos poderes de agir dos atores implicados. Assim, o conhecimento se constrói no entrecruzamento dos saberes “eruditos” e “comuns”. Sendo a vida cotidiana dinâmica e aberta, capaz de transformações, a investigação precisa construir alianças entre atores e pesquisadores que gerem um esclarecimento mútuo via reflexão coletiva, dialógica e híbrida. O entrelaçamento entre pesquisador e investigado, observação e participação, conhecimento e transformação, constrói a experiência de um sentido em comum. Ou seja, longe de olhar de fora para atores alienados, a teoria crítica participa com os investigados do desafio de construir um mundo em comum, cheio de tateios e bricolagens.

Essa concepção de conhecimento opera a convergência entre ciência e democracia. Acompanhando a ideia de democracia como “forma de vida” (J. Dewey) ou “forma de sociedade” (Cl. Lefort), a práxis teórico-crítica se destina a visibilizar e fomentar as emergências democráticas. Esta finalidade envolve, simultaneamente, consenso e conflito. De um lado, existe uma busca de consenso em que “os participantes compartilham o desejo de apreender tal ou qual dimensão da vida comum para construir em conjunto uma crítica ou uma nova maneira de instituir o mundo”. Assim, os investigadores podem assumir um papel de colaborador, tradutor, porta-voz ou diplomata. Mas, uma vez que “na pesquisa, como em qualquer outro lugar, a democracia viva não é um universo pacífico”, existe uma dimensão agonística em que o investigador deve assumir as controvérsias como parte intrínseca da práxis e, eventualmente, atuar de modo voluntário para gerar perturbações que explicitem um estado de coisas subjacente ou mesmo o transformem.

Ainda que seja possível quase sempre ter algum “entendimento parcial” com quem não temos um acordo, resta ainda que, às vezes, é impossível mascarar o antagonismo entre investigador e investigado, tornando-se necessário dizer “não”. Ou seja, a fim de evitar a ilusão de uma falsa dialogia em que se deveria acolher tudo em nome de uma abertura simétrica, a práxis teórico-crítica nos coloca, de modo concreto, nas condições em que é preciso dizer com quem se recusa a compor, pondo-se a descrever normativamente o que é injusto, indigno ou insuportável e nomeando, então, quem é o seu adversário. Como dizem lucidamente Laville & Frère, tratar igualitariamente não é acolher a qualquer preço e, portanto, cabe reconhecer que “às vezes o mundo comum não pode mais ser construído entre investigadores e investigados, levando a uma ruptura política que é também um fracasso científico”.

A instituição complexa e a prática instituinte

Minha exposição das análises da primeira parte do livro buscou tornar explícito o quanto é importante, para Laville & Frère, a questão da relação entre instituído, instituição e instituinte. A respeito disso, as teses de A fábrica da emancipação devem muito aos dois últimos interlocutores a destacar: Cornelius Castoriadis e, sobretudo, Claude Lefort. Trata-se de colocar no centro da teoria crítica a elaboração do que é o político.

O desafio está em dar consistência à experiência política em si mesma. O político oscila muito no pensamento emancipatório entre a sua dissolução materialista, visto como algo irrisório diante do determinismo histórico, ou a sua hipóstase fetichista, visto como o criador ex nihilo da história. Dentre os teóricos contemporâneos, é comum jogar as fichas na ideia de um poder instituinte em contradição incomensurável com as instituições, pois essas últimas seriam as zeladoras do instituído, isto é, garantidoras do status quo. Assim, a instituição é conceituada como desprovida de elementos instituintes emancipatórios. Seguindo esta lógica, a práxis radical se guia por uma visão de pureza em que as verdadeiras lutas seriam inabsorvíveis pelas instituições; logo, as experiências emancipatórias não deveriam ser institucionalizadas. “Emancipação? Só se for pelo contra…”, diriam os radicais. Caso fosse assim, as práticas associacionistas, que são a base da nova teoria crítica, ficariam atoladas entre um destino marginal ou um deixar-se absorver.

Ao contrário, Laville & Frère afirmam que é necessário pensar como os associacionismos geram mudança institucional. Mais uma vez, longe de romantizar, o importante é analisar as ambivalências e complexidades da institucionalização.

Antes de tudo, é preciso reconhecer que nossos quadros institucionais herdados não podem ser reduzidos ao instituído, como se não tivessem alguma potência instituinte. Como dizem os autores, os espaços públicos e as associações estão sempre interpelando as instituições, explorando suas potencialidades e forçando movimentos de mudança. Além disso, nem sempre o instituinte, quando institucionalizado, se dissolve no instituído. Vivemos numa democracia e, por isso, sempre existe a capacidade de transformar os quadros institucionais num jogo hibridizador entre normalização e inovação. Portanto, assumindo a atitude pragmatista de investigação, cabe à teoria crítica descrever os processos de institucionalização de práticas de conteúdos emancipatórios. Apesar de haver as tendências isomórficas que levam as lógicas instituintes a serem absorvidas e recuperadas quando integradas em instituições, existe sempre a possibilidade de um espectro de mudança a ser analisado, inclusive nos casos que aparentam ser apenas um fracasso.

Diante das demandas de vias de transição urgentes e profundas na era do Antropoceno, torna-se ainda mais fundamental articular os movimentos associacionistas transbordando as instituições com processos de mudanças institucionais. Tais mudanças devem ser, segundo Laville & Frère, de natureza política, para as quais as economias solidárias teriam um importante papel, porque “combinam a crítica emancipatória do instituído com a prática já emancipada do dia a dia”. Ao contrário de outras formas de economia – como a economia social –, elas assumem a necessidade de realizar mediações políticas e fazem triangulações inovadoras entre pesquisadores, atores e poderes públicos.

O fato é que a tradição da teoria crítica tendeu a valorizar, ao contrário, um surgimento emancipador único, que faria com que a promessa de emancipação flertasse muitas vezes com o pensamento religioso, mágico ou místico. Estando depurada de qualquer religião secular, a nova teoria crítica precisa reconhecer que “a política toma corpo no fazer”. Neste sentido, Laville & Frère fazem uso do quadro descritivo de Latour para descrever as fases de composição (mobilização do mundo, alianças e autonomização) de movimentos associacionistas bem sucedidos, sobretudo os de economia solidária.

A emancipação não se dá por escatologia, mas sim através de “agregações cada vez mais amplas que ligam coletivos que se descobrem interdependentes”. Na aposta de uma reinstituição da sociedade por si mesma, nada está decidido, portanto, de antemão. Neste jogo, as instituições não são necessariamente uma força contrária às emancipações. Sem que se perca de vista os fenômenos de captura, absorção e recuperação, o fato é que as mudanças institucionais são condições de possibilidade para que as emergências emancipadoras produzam efeitos duradouros, capazes de renovar as nossas promessas e revigorar a nossa vontade.[11]

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Notas

[1] Farias, Alberto Luis Cordeiro de; Magnelli, André; Bassani, João Carlos (2019) Cartografias da crítica: crítica, crise e reconstrução. In: Cartografias da crítica: balanços, perspectivas e textos. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades / Sociofilo, p. 51-76.

[2] Farias, Alberto Luis Cordeiro de; Magnelli, André [2017] (2019) Cartografias da crítica: fundamentos, potencialidades e limites. In: Cartografias da crítica: balanços, perspectivas e textos. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades / Sociofilo, p. 37-50.

[3] Farias, Alberto Luis Cordeiro de; Magnelli, André; Bassani, João Carlos (2019) Cartografias da crítica: crítica, crise e reconstrução, op. cit.

[4] Refiro-me aos livros: Teoria crítica da colonialidade (publicado em 2019naSérie Cartografias da Crítica), Itinerários do dom: teoria e sentimento (publicado em 2019na Coleção Metamorfoses) e Políticas da dádiva: associações, institucionalidade, emancipação (publicado agora em 2023 na Coleção Metamorfoses). A inscrição dos dois últimos livros na Metamorfoses se deve ao fato da construção teórico-crítica de Paulo Henrique Martins ser feita a partir do paradigma da dádiva, motivo primordial pelo qual criamos a coleção.

[5] Estou certo de que alguns autores, como o próprio Laville, teriam ressalva em incluir aí Marcel Gauchet, por causa de suas posições no debate político francês. Mas, caso consideremos apenas a obra e suas implicações (que sempre ultrapassam o autor), Gauchet se inscreve bem nesta constelação intelectual.

[6] Vale notar que, na entrevista que fizemos (Genauto Carvalho de França Filho e eu) com Laville pelo Ciclo de Humanidades em 2020, A forma associativa: como entrelaçar economia, solidariedade e democracia?, cheguei a tratar por um momento do projeto Cartografias da Crítica e a perguntar sobre seu posicionamento a respeito da pluralidade das constelações teórico-críticas. Laville falou que estava escrevendo sobre as contribuições das epistemologias do Sul para a teoria crítica – o que resultou num artigo que foi o embrião deste livro. Por estes caminhos imprevistos da vida, esta publicação consagra, três anos depois, um patamar mais amadurecido de diálogo colaborativo.

[7] Neste sentido, existe um diálogo muito frutífero a ser feito de A fábrica da emancipação com Teoria crítica da colonialidade (Ateliê de Humanidades Editorial,  2019, com tradução pela Routledge, 2022) e com Políticas da dádiva (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023), ambos de Paulo Henrique Martins. No contexto francês, outro sociólogo que empreende por esta via, mas em uma linha mais próxima da sociologia do conhecimento e da sociologia da sociologia, é Stéphane Dufoix.

[8] Latour, Bruno [2015] (2020) Diante de Gaia: oito conferência sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: São Paulo: Ubu Editora / Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial. Tradução de Maryalua Meyer, revisão técnica de André Magnelli.

[9] Há um frutífero diálogo possível entre a teoria crítica de Laville & Frère e a concepção de teoria elaborada por Rodrigo Cordero em sua brilhante análise da relação entre crise e crítica: Cordero, Rodrigo (2022) Crise e crítica: sobre as frágeis fundações da vida social. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial. Tradução de Alberto Luis Cordeiro de Farias, revisão técnica de Felipe Maia.

[10] Nesta enumeração heterogênea, poderíamos incluir a proposta emancipatória do “estudo imanente”, formulada pelo educador alagoano Ciro Bezerra. Publicaremos em breve, no Ateliê de Humanidades Editorial, um livro sobre o estudo imanente como prática emancipatória.

[11] A obra de Pierre Rosanvallon, que estamos publicando pelo Ateliê de Humanidades Editorial, é uma análise maior sobre como se dá nas democracias o intrincamento entre a dimensão instituinte do político e o complexo arcabouço institucional, fato essencial para a realização de qualquer projeto emancipatório generalizado.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com). 
 Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do  presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.

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