Publicamos hoje no Fios do tempo: análises do presente um artigo de André Magnelli sobre o sentido e os limites da proposta de recuperar a lógica do dom. Sendo o último artigo de uma série publicada no Jornal do Brasil (aqui em segunda versão ampliada), ele traz uma reflexão realista sobre a prática do dom: como se imunizar contra a falsa generosidade? Quais são as regras mínimas para uma lógica da reciprocidade compatível com a liberdade, a justiça e a democracia? Por que a defesa do antiutilitarismo precisa reivindicar uma expertise instrumental e uma visão realista econômica, política e institucionalmente?
Como diz Magnelli, se é possível que o dom seja um meio de reforma de vida, social, econômica e política, ele passa necessariamente por uma visão realista das coisas e pela viabilização de instituições, organizações e práticas; “e para isso, já passou a hora de arregaçar as mangas e começar a calcular e fazer estratégias, com todo o realismo possível, a fim de identificar possibilidades, oportunidades e meios de acumular, generativamente, modos de vida generosos”.
“De boas intenções o inferno está cheio”, diz nosso ditado popular. Na lista dos danados de boa consciência, não faltariam nomes de autoproclamados “generosos”. Se defendemos uma “revolução do dom”, estejamos sempre alertas: pior do que um inferno cheio de boas intenções é uma terra dividida entre “generosos” e “endividados” […] Por isso, quando defendemos uma lógica de dons […] temos que nos perguntar: isso não seria apelar a ideais aristocratas quando urge defender liberdades e criticar injustiças?
Como ser imune à falsa generosidade?
Rio de Janeiro, 17 de outubro de 2019
“De boas intenções o inferno está cheio”, diz nosso ditado popular. Na lista dos danados de boa consciência, não faltariam nomes de autoproclamados “generosos”. Se defendemos uma “revolução do dom”, estejamos sempre alertas: pior do que um inferno cheio de boas intenções é uma terra dividida entre “generosos” e “endividados”.
Há um bom tempo, foi escrito que, em nossas sociedades, “tudo que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens”. Nessa passagem, Marx e Engels descreveram o modo como o capitalismo havia reduzido aos interesses tudo o que pertencia ao Antigo Regime, por exemplo, as virtudes do desinteresse, o senso de honra e os laços de reciprocidade. Há nestes autores, sabemos, uma crítica ao capitalismo, mas há também um elogio ao dito mundo burguês por ter dissolvido as ilusões oriundas de interesses dissimulados sob uma aura de generosidade e desinteresse.
Claro, é irônico ver como, anunciadores da desilusão, Marx e Engels se deixaram iludir, pois as virtudes clássicas (e também as burguesas) não podem, ao contrário do que pensaram, ser reduzidas à mera ideologia; e nosso mundo está muito longe de ser aquele em que a linguagem das virtudes e a reivindicação de valores podem ser dispensados em favor de meros interesses terra-a-terra ou de uma “luta de classes” cujo resultado seria de soma zero. Contudo, nos dizeres deles está assinalado um ponto crucial: apelar a belos valores pode servir para embelezar velhos grilhões.
Por isso, quando defendemos uma lógica de dons, como fizemos em artigos anteriores, no Ciclo de Humanidades sobre as Cartografias do Dom e no nosso curso sobre a Revolução do Dom, temos que nos perguntar: isso não seria apelar a ideais aristocratas quando urge defender liberdades e criticar injustiças?
Contra uma “Realpolitik da falsa generosidade”
Ora, o tempo das ingenuidades terminou e o elogio do dom tem de ser uma chamada à maioridade. Um dos objetivos deve ser de construir uma imunidade contra formas de “Realpolitik da falsa generosidade”, ou seja, contra usos para explorar, manipular e dominar as pessoas gerando servidão voluntária.
Sabemos que o conhecimento de economia serve não apenas para agir no mercado, como também para perceber disfunções, distorções e engodos; por isso, quem estuda economia se torna menos vulnerável a soluções mágicas. O mesmo ocorre com o dom: quando adquirimos conhecimento sobre como operam os dons, não apenas nos tornamos (possivelmente) mais generosos, como também nos imunizamos (provavelmente) contra seus maus usos.
Sabendo como funciona a lógica, entendemos como eles são usados para gerar dominação por meio da dissimulação de reciprocidade. Os exemplos são abundantes. A astúcia dos paternalismos, clientelismos e patrimonialismos está em tecer legitimação pela “liberalidade” de poderosos, gerando fidelidade em nome de gratidões e dívidas morais. A arte de semi-escravizar também está em fazer uma doação unilateral gerar dívidas impagáveis. E a gestão empresarial pode muito bem estimular os funcionários a se desviarem de seus interesses para investirem suas vidas nas empresas e dedicarem a elas, obsessivamente, um excedente de trabalho gratuito.
Regras para se imunizar contra a falsa generosidade
Por isso, precisamos estabelecer algumas regras para a lógica do dom. A regra de partida é: não podemos exigir generosidade de ninguém e não podemos nos contentar em nos proclamar generosos exigindo retribuição; pois, para que haja dom, é preciso que ele seja feito de forma voluntária e autêntica.
Desta regra extraímos um corolário: um dom somente pode ser feito (e aceito) por vontade própria e em relativa liberdade. O que não impede, claro, que isso seja feito com um sentimento íntimo de obrigação.
Isso exige uma avaliação ética das situações: não é possível aceitar que exista um dom autêntico quando a relação entre as partes está fundada em uma manipulação, seja ela consciente ou inconsciente. Infelizmente a vida não é fácil, porque não é possível resolver isso de antemão pois não existe receita para julgar quando há um bom ou mau uso da lógica. Para dizer se um dom é autêntico ou manipulado, precisamos de muita interpretação e de bastante esforço analítico. Cada um tem que recorrer a seu próprio juízo, ou então buscar a ajuda dos especialistas em “hermenêuticas da suspeita”, como os sociólogos, os psicanalistas e os “realistas” do cotidiano.
O que eu disse até agora se aplica às relações individuais. Mas é preciso também ter um olhar mais amplo, para a repercussão da lógica dos dons na vida democrática. Isso nos conduz a uma segunda regra a fim de evitar que os dons reforcem particularismos contrários a conquistas universalistas. Diga-se claramente: todo indivíduo tem o direito inalienável de defender seu próprio interesse; e, além disso, antes de haver dons dados, recebidos e retribuídos, existe um Estado Democrático de Direito e uma cidadania fundada em uma “igual liberdade”. Portanto, não existe dom autêntico quando ele funciona por uma relação assimétrica entre dominantes e dominados. Também não existe quando é realizado na ilegalidade, lesa direitos ou priva os envolvidos de autonomia (seja porque estão na impossibilidade de se recusarem a se engajar, ou porque endividam-se sem poder retribuir).
E, para evitar os demagogos, populistas, assistencialistas e irresponsáveis, temos que afirmar categoricamente: ninguém está na liberdade de recusar a dar quando deve cumprir com a função legal à qual está incumbido, ou quando deve remunerar o trabalho que lhe foi prestado.
Uma economia e uma estratégia em favor de uma vida generosa
Mas isso não é tudo, pois cabe ainda um último anticorpo imunizante. Da mesma forma que usos maliciosos são sempre existentes, é tentador defender um mau uso dos dons com boas intenções. É quando nos deixamos levar por uma afetação aristocrática contra tudo o que é instrumental e útil. Quando isso ocorre, viramos reacionários. E isso por duas razões.
Primeiro, porque a purificação de qualquer utilitarismo somente seria realizável em uma sociedade de castas, onde classes “desinteressadas”, avessas ao trabalho útil, rentistas e desocupadas seriam bancadas por classes laboriosas, entregues às necessidades de autossobrevivência e à mercê da generosidade alheia. Segundo, porque a recusa de lidar com problemas em torno da eficiência econômica, do planejamento estratégico e da organização de recursos escassos inviabiliza, por princípio, qualquer vida social e política real que opere por uma lógica de dons.
Portanto, é do oposto que precisamos: necessitamos, hoje, de uma abundância de inovações organizacionais e instrumentais que potencializem iniciativas orientadas pela arte de dar. E para isso, já passou a hora de arregaçar as mangas e começar a calcular e fazer estratégias, com todo o realismo possível, a fim de identificar possibilidades, oportunidades e meios de acumular, generativamente, modos de vida generosos.
André Magnelli
Livre-pesquisador e diretor do Ateliê de Humanidades
* Publicado originalmente como Uma falsa generosidade
(Jornal do Brasil, 02 de setembro de 2018).
Publicamos aqui de forma revisada e ampliada.
Imagem: @abeerhourany
Outros artigos sobre dom:
Uma revolução do dom contra o utilitarismo radicalizado (Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 29 de julho de 2018).
Reativar a arte do dar e redescobrir a paixão pelo dom. (Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 19 de agosto de 2018).
Revolução do dom com senso de oportunidade. (Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 26 de agosto de 2018).