Artigo. A canção brasileira como música de invenção e ensaio – por Marcos Lacerda

Publicamos hoje no Fios do tempo: análises do presente o primeiro artigo da série e temporada Brasil, entre ideias e canções, com publicações sobre música popular brasileira na tribuna Fios do tempo e no podcast República de Ideias. Sob liderança do sociólogo, ensaísta e crítico Marcos Lacerda, livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e ex-diretor do Centro da Música da Funarte do Ministério da Cultura, publicaremos artigos e podcasts sobre música popular brasileira extraindo dela não apenas sua potência de interpretação ensaística do país, como também sua capacidade de invenção da “consciência e da forma de ser cultural, social e política nacionais; chegando, inclusive, a uma expressividade e um significado humano universais”.

Não deixe de nos acompanhar neste percurso entre ideias e canções, explorando as múltiplas facetas de um país e da própria experiência humana.

Em estado impreciso, entre o canto e a fala, a canção popular se mostra, desde então e desde sempre, permeável tanto à citação culta quanto à inocência da profusão de paródias pelos dizeres do cotidiano, sendo capaz de criar sínteses sugestivas entre diversas linguagens artísticas e o pensamento mais rigoroso. […] Quando ouvimos, difundimos e cantamos nossa canção, encontramos nela não apenas um meio de entretenimento e de prazer artístico, tampouco apenas uma forma de expressão cultural, mas também uma forma-ensaio de interpretação de nossa realidade e um meio – por excelência talvez – de invenção do Brasil e de existência humana.


A canção brasileira
como música de invenção e ensaio

São Paulo, 14 de outubro de 2019

A linguagem da canção no Brasil, como diz o antropólogo, poeta e ensaísta Antonio Risério, gerou uma série de revoluções culturais, embaralhando valores, reinventando a língua portuguesa e colocando no centro da vida cultural nacional, como protagonistas, as classes populares e a fala cotidiana do povo.

A canção popular se constituiu entre nós como uma forma de pensamento culto e central para a nossa formação e, até diríamos, singular em relação ao resto do mundo. Ela tem uma potência de interpretação ensaísta sobre o país e, ao mesmo tempo, ela inventa a consciência e a forma de ser cultural, social e política brasileiras, chegando, inclusive, a uma expressividade e um significado universais.

Segundo aquele que é, possivelmente, o crítico e pensador mais importante da canção brasileira, José Miguel Wisnik, nossa canção se constituiu como uma forma de saber, um saber alegre, uma Gaia Ciência, no sentido de um saber que se difunde através de suportes leves que trazem informações culturais e de pensamento densas, rivalizando com os espaços tradicionais da alta cultura, como o campo acadêmico, e atravessando criticamente diferentes linguagens artísticas. Quando ouvimos, difundimos e cantamos nossas canções, encontramos nelas não apenas um meio de entretenimento e de prazer artístico, tampouco apenas uma forma de expressão cultural, mas também uma forma-ensaio de interpretação de nossa realidade e um meio – por excelência talvez – de invenção do Brasil e de existência humana.

Uma das principais características da canção popular brasileira é sua exuberante e espantosa diversidade. Todas as classes sociais em todo o território nacional produzem experimentos potentes entresons e entre sons e palavras, forjando gêneros e subgêneros os mais variados. Este fato lança um enorme desafio para todos aqueles que se ocupam com a mediação crítica, a recepção estética e a criação musical. Há dificuldades quando buscamos esquemas analíticos capazes de selecionar, entre a miríade de acontecimentos, aqueles que são ou seriam os mais relevantes e significativos, construindo a partir daí uma síntese da produção e recepção musical no país. Mesmo assim, nossos críticos não se negaram a construir esquemas estruturantes com expressiva força de síntese conceitual. Um dos principais, mais bem-sucedidos e consistentes, foi o que se formou através da tríade samba carioca da época de ouro / Bossa Nova / Tropicalismo.

Presente entre alguns dos nossos principais ensaístas, teóricos e historiadores da música popular, o esquema tem se transformado numa espécie de pressuposto implícito de toda e qualquer reflexão, como uma espécie de regra do bem pensar no âmbito da mediação crítica. O mistério da canção entre nós se situaria, segundo o músico e crítico Luiz Tatit, na força expressiva do samba carioca, da Bossa Nova e do Tropicalismo, que se constituíram como o horizonte insuperável da crítica e da criação da música popular. A partir daí, de fato, nossa canção construiu uma forma de pensamento que foi em tudo singular. Em estado impreciso, entre o canto e a fala, a canção popular se mostra, desde então e desde sempre, permeável tanto à citação culta quanto à inocência da profusão de paródias pelos dizeres do cotidiano, sendo capaz de criar sínteses sugestivas entre diversas linguagens artísticas e o pensamento mais rigoroso.

Todavia, se o esquema estruturante samba carioca da época de ouro / Bossa Nova / Tropicalismo permitiu a construção de uma teoria densa sobre a singularidade da linguagem da canção, uma teoria vigorosa não depende exclusivamente dele, pois ela pode se estender para outras perspectivas e linhagens paralelas não menos potentes, inventivas e cultas. A canção brasileira vem passando por um processo de renovação há décadas, especialmente na sua ambiência mais inventiva.

O quadro de referência da nova música de invenção é bem variado e não mais associado à tríade acima. Ao contrário, as referências agora são outras, ainda que não se negue o cânone – ele apenas não serve mais como o único parâmetro da criação e da crítica. É preciso hoje trazer para a canção popular um conjunto novo de referências poéticas, musicais, literárias, filosóficas, políticas e, também, geográficas, que vão muito além da faixa litorânea associada ao Rio de Janeiro e à Bahia. Para além da tríade canônica, encontramos Brasil afora músicas de invenção altamente criativas como a lira paulistana (Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo etc.), o sertanejo, as milongas do Sul, a nova música independente (Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Cacá Machado, Leo Cavalcanti, Paulinho Tó, Thiago Amud, Céu etc.), o hip hop (com destaque para o Racionais MC’s), o manguebeat, a música sertaneja, o punk rock, o rap, a música eletrônica, dentre outras.

Conheci diretamente esta pluralidade da música brasileira contemporânea quando fui diretor entre 2015 e 2017 do Centro da Música da Funarte do Ministério da Cultura. Como fruto deste trabalho, publicamos dois livros de ensaios pela FUNARTE: o volume de Música da Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos (2017) e Perfis musicais: a canção como música de invenção (2018). Esses livros procuraram não apenas aprofundar a compreensão do esquema estruturante hegemônico, mas também o ampliar e o adensar criticamente com análises que apontam linhas paralelas da criação da nossa música popular.

Convido o leitor a conhecer tais trabalhos, feitos no contexto de um projeto interrompido pelo golpe parlamentar de 2016 que levou à eleição da extrema-direita no Brasil em 2018; e faço um convite também para acompanhar aqui no Ateliê de Humanidades a temporada que se inicia agora, Brasil, entre ideias e canções, a ser publicada tanto na forma-ensaio pelo Fios do tempo: análises do presente quanto como podcast no República de Ideias.

Marcos Lacerda

Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades
e ex-diretor do Centro da Música da Funarte do Ministério da Cultura

Imagem: Ronaldo Bastos, Elis Regina e Milton Nascimento,
fotografia por Cafi (1950 – 2019)


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