[…] desde esta manhã, a Terra treme novamente: não porque ela se move em sua órbita inquieta e discreta, não porque ela muda, desde as suas placas profundas até seu envoltório aéreo, mas porque ela se transforma por nossa ação. […] Nós preocupamos a Terra e a fazemos tremer! Novamente, ela tem um sujeito. […] Move-se a Terra imemorial, fixa, com as nossas condições ou fundações vitais, a Terra fundamental treme. Esta crise de fundamentos, não intelectual, não diz respeito às nossas ideias nem à linguagem, nem à lógica, nem à geometria, mas ao tempo e à nossa sobrevivência.
Como não reconhecer então, no processo de Galileu, o debate bíblico imemorial dos profetas e dos reis? Os que se apóiam na lei exigem do recém-chegado que afirma falar de um outro mundo que dê um sinal milagroso, mostrando realmente que ele vem de outro lugar, de Deus ou de um outro mundo.
Então, levantando a mão, o mecânico [Galileu] faz a terra toda se mover [dizendo: Eppur, se muove!]. Citado na justiça, ele cita a Terra, apela a ela e a faz mover-se – sabe-se que o verbo citar significa, nas línguas antigas, abalar. Imenso estupor que vai mudar a história: ela se move!
O que é um milagre? A súbita irrupção da coisa na causa, do mundo no pretório: tremor da terra. De fato, ela se move! Aí está o estatuto original, verdadeiramente milagroso, da mecânica, a nova ciência do movimento. A Terra fenomenológica se abalava!
Ainda estamos em estado de choque. O profeta derrubou o rei. A ciência toma o lugar do direito e estabelece os seus tribunais, cujos decretos de agora em diante farão parecer arbitrários os das outras instâncias. E agora, o que fazer e como decidir, com que direito? Isso em um mundo e por um tempo que não sabe ou não faz senão saber que só faz aquilo que decorre do saber? Em que só a ciência tem plausibilidade? Em que só seus tribunais julgam do modo duplamente competente?
Mas eis algo de novo. Os limites do conhecimento, eficaz e preciso, os da intervenção racional, não se avizinham mais apenas da ignorância ou do erro, mas também do risco de morte. Saber não nos basta mais.
Pois, desde esta manhã, a Terra treme novamente: não porque ela se move em sua órbita inquieta e discreta, não porque ela muda, desde as suas placas profundas até seu envoltório aéreo, mas porque ela se transforma por nossa ação. A natureza era uma referência para o direito antigo e para a ciência moderna porque não havia nenhum sujeito em seu lugar: o objetivo, no sentido do direito e também no sentido da ciência, emanava de um espaço sem homem, que não dependia de nós e do qual nós dependíamos de direito e de fato; agora, depende de tal maneira de nós, este abalo, que nos preocupamos também com este desvio dos equilíbrios previstos. Nós preocupamos a Terra e fazemos tremer! Novamente, ela tem um sujeito.
A ciência conquistou todos os direitos, há três séculos, recorrendo à Terra, que respondeu se movendo. Então, o profeta [Galileu-cientista] tornou-se rei. Por nossa vez, recorremos a uma instância ausente quando exclamamos, como Galileu, mas diante do tribunal de seus sucessores, antigos profetas que se tornaram reis: a Terra se comove! Move-se a Terra imemorial, fixa, com as nossas condições ou fundações vitais, a Terra fundamental treme.
Esta crise de fundamentos, não intelectual, não diz respeito às nossas ideias nem à linguagem, nem à lógica, nem à geometria, mas ao tempo e à nossa sobrevivência.
Pela primeira vez depois de 300 anos, a ciência se dirige ao direito e a razão ao juízo.
Michel Serres, O Contrato Natural, 1990 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 100-102).
Achado de André Magnelli
Michel-Serres em Vincennes, abril de 2016. Foto de Serge Picard /VU.
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