Fios do Tempo. Saltos sustentados ou pulos vacilantes? Uma via para a inovação tecnológica no Brasil – por André Magnelli

No dia 08 de junho de 2021, eu, André Magnelli, participei da mesa “De 22 a 22: o Salto da Tecnologia no Brasil” no IT Forum Anywhere, com a presença de Silvio Meira (cientista-Chefe, The Digital Strategy Company & professor Extraordinário, CESAR School) e Domingos Monteiro (fundador e presidente da Neurotech). No contexto desse oportuno debate, escrevi o paper “Saltos sustentados ou pulos vacilantes? Uma via para a inovação tecnológica no Brasil”, que publicamos agora no Fios do Tempo.

Neste ensaio, faço uma reflexão sobre a questão em três passos: primeiro, situo o desafio do desenvolvimento da ciência e tecnologia no contexto de nosso capitalismo periférico e dependente; em seguida, faço uma breve retrospectiva e diagnóstico, a partir de quatro cenas, do percurso do desenvolvimento da ciência e tecnologia em nossa história; e, por fim, apresento a proposta de cinco diretrizes para a formação de um ecossistema de inovação tecnocientífica sustentável, inclusivo e democrático.

Desejo uma excelente leitura! Feedbacks serão bem vindos (direcao.ateliedehumanidades@gmail.com)

A. M.
Fios do Tempo, 01 de julho de 2021



Saltos sustentados ou pulos vacilantes?
Uma via para a inovação tecnológica no Brasil1

André Magnelli2

A proposta desta mesa promovida pelo IT Forum Anywhere é clara e de grande relevância. Podemos apresentá-la na forma de duas perguntas.

A primeira é retrospectiva e nos convida a revisitar a história do Brasil: pulando-se pelos séculos, de 1822 a 1922, depois de 1922 a 2022, vemos o país dando saltos vigorosos no desenvolvimento tecnológico nacional? Ou, na verdade, o que encontramos são apenas pulos acanhados e aleatórios, alternando alguns passos para frente e outros tantos para trás, acorrentados então em um atraso tecnológico e dependência econômica?

A segunda questão é projetiva e nos convida a buscar uma estratégia para o presente a fim de projetar o futuro de nosso país: tomando-se em conta este século que se abre em 2022, nos 200 anos de nossa independência, será possível realizar um salto tecnológico rumo a um 2122 promissor para o país?

Desafio do desenvolvimento tecnológico em condições de periferia e dependência

A história do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil é indissociável da história do desafio do desenvolvimento nacional. Portanto, qualquer proposta de salto tecnológico demanda uma reflexão fundamental: como realizar um desenvolvimento científico e tecnológico em um país periférico e dependente no sistema global?

Essa questão nos conecta com um tema forte de nossas tradições de pensamento econômico, social e político. Muito se pensou e se propôs a respeito dos desafios do desenvolvimento em um país como o Brasil, de origem colonial e escravocrata, atrasado e subdesenvolvido. Alguns dos maiores intelectuais e agentes privados e públicos lidaram com isso, animando os mais diversos espectros políticos, não tendo, portanto, privilégio de cor partidária.

Várias vezes se mostrou uma consciência dos problemas decorrentes de um atraso tecnológico nacional. Os mais esclarecidos reconhecem que ele está atrelado à falta de um desenvolvimento autônomo e sustentável, que decorre de vários fatores: uma dependência tecnológica em relação aos países mais desenvolvidos; uma especialização na exportação de produtos in natura ou de baixa agregação de valor; uma vulnerabilidade às oscilações dos preços internacionais de commodities; um desfavorável equilíbrio da balança comercial; uma fraca internalização e diversificação da cadeia produtiva; e, last but not least, uma baixa produtividade e qualificação da força produtiva.

O economista e estadista Celso Furtado, por exemplo, mostrou o quanto o crescimento econômico baseado apenas na ampliação de consumo de bens duráveis em classes com poder aquisitivo é perfeitamente possível sem um desenvolvimento tecnológico e inclusão social. Afinal, é possível crescer tendo por base a importação dos bens para consumo direto ou através da produção dos bens por empresas nacionais ou multinacionais que modernizam seus parques industriais pela importação de tecnologias (sem se apropriar delas, transferi-las ou aperfeiçoá-las). Além disso, Furtado mostrou como nosso crescimento econômico, amplamente baseado em um “mimetismo cultural” (ou seja, na imitação dos padrões de consumo dos países avançados) se mostrava insustentável a médio prazo, isso porque estava atrelado a uma ampliação do produto nacional através da concentração de renda para o consumo (ao invés do enfoque sobre a mudança das estruturas produtivas e a inclusão social) e a deterioração ambiental. Não por acaso, o Brasil continuou um dos países mais desiguais do mundo e em muitos aspectos subdesenvolvido, mesmo após ciclos de vertiginosos crescimentos econômicos.

Portanto, é importante percebermos que crescimento econômico não se confunde com desenvolvimento, ou seja, podemos fazer o PIB crescer mantendo-nos atrasados, subdesenvolvidos e dependentes. Isso impacta em cheio os interesses estratégicos das empresas de TI, pois elas dependem de uma economia bem desenvolvida, tanto no âmbito da produção quanto do consumo, para poderem prosperar. Se existem de fato atividades econômicas em que os lucros são adquiridos mesmo em meio a recessões econômicas e crises sem fins, esse não me parece o caso das empresas de TI. Portanto, não apenas por questões morais, mas também por razões pragmáticas, essas empresas dependem de um desenvolvimento sustentado e próspero de nosso país.

Assim, temos que perguntar: de que tipo de desenvolvimento precisamos para que ocorra um salto da tecnologia em nosso país? E qual é a responsabilidade dos poderes públicos e da iniciativa privada neste processo? Para assentar os pés no chão, vamos começar com uma retrospectiva por nossa história.

Saltando pelos séculos: o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil

Falar sobre a história do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil implica reconhecer que, em comparação com os países desenvolvidos, nossa história é pobre. Mas devemos evitar pensar que tivemos dois séculos de deserto de inovações, como se terra infecunda fôssemos. Precisamos repelir ideias preconcebidas, que às vezes são também mal intencionadas. Quem ganharia, afinal, quando assimilamos e reproduzimos a ideia de que “a ciência, a teoria, a tecnologia e a inovação não são para nós, então deixemos essas coisas para os outros!”? Para evitar isso, é importante reconstruir uma história do desenvolvimento tecnológico e científico, que é feita, por exemplo, pelo historiador Shozo Motoyama e colaboradores.3 Infelizmente carecemos ainda de uma história dedicada especialmente ao desenvolvimento das tecnologias de informação no Brasil.

No pouco tempo que temos, deixem-me contar uma pequena história saltando pelo tempo, seguindo a periodização proposta pela mesa.

Cena I. 1822, ano de nossa Independência

A Independência de um país precisa de muito mais do que uma declaração de um Imperador messiânico. Somos então um país sem Estado e sem nação, predominantemente rural, massivamente analfabeto, com uma economia latifundiária de base escravocrata e agroexportadora. Recebemos as ideias europeias e as adaptamos ao nosso gosto. Não há qualquer cheiro de sociedade movida pela pesquisa científica e a inovação tecnológica… Inovação e inventores? Tivemos uns poucos: Bartolomeu de Gusmão e seu aeróstato “Passarola”; e José de Bonifácio Andrada, patrono da independência, que faz suas experiências de mineração e tem uma consciência precoce dos problemas ecológicos.

Ao longo do século receberemos missões científicas e artísticas europeias na tentativa de incorporar a modernidade, mas não temos ainda Universidade nem pesquisa científica. As elites se formam em Portugal, ou nas poucas Faculdades aqui existentes, as de Medicina, Direito e Engenharia. Somos então um país de bacharéis, que valorizam a pompa da retórica e as citações de autoridades, desprezando o trabalho manual e técnico, coisa de escravos. Via capital inglês, começamos a ter nossas primeiras ferrovias, mas não há muito espaço para a iniciativa privada nacional e importamos quase tudo que consumimos. Somos um Estado patrimonial, que leva figuras inovadoras e produtivas, como André Rebouças e Barão de Mauá, ao exílio interior ou exterior.

Cena II. 1922, ano da semana de arte moderna

Estamos em meio à experiência de uma República. Na passagem do século XIX ao XX, as multinacionais líderes da elétrica, da eletrônica e tão logo da tecnologia de informação já começaram a operar no Brasil: a Siemens (1905), a IBM (1917), a Philips, a Ericsson etc. No início do século, os institutos científicos, como o Butantan (1901) e o Oswaldo Cruz (1900), foram criados. Em 1920-1930, um ar de renovação cultural sopra no Brasil: com o movimento modernista, temos a construção de uma nação como um problema elaborado de forma original; com o movimento Escola Nova (1932), liderado por Fernando Azevedo e Anísio Teixeira, temos a proposta de construção de uma educação pública fomentadora de uma cultura científica e democrática; e com o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, temos a utopia de um país que devora tudo dos outros, incluindo a tecnologia, para regurgitar de forma inovadora.

O país continua sendo ilhas de letrados em um oceano de analfabetos, mas começa a se modernizar. O sistema nacional de educação pública passa a ser montado a partir de 1930, sendo fundadas também nossas primeiras universidades. Entramos em uma fase de forte urbanização e a indústria nacional começará seu primeiro boom substituindo as importações por causa das guerras mundiais e produzindo para o mercado interno. Aqui e ali, na primeira metade do século XX, pipocam iniciativas científicas nada desprezíveis, algumas delas adquirindo reconhecimento internacional: as ações de saúde pública de Oswaldo Cruz; as descobertas na parasitologia por Carlos Chagas; a invenção do avião por Santos Dumont; a inovação no algodão no Instituto agronômico de Campinas; a descoberta da bradicinina por Sérgio Henrique Ferreira; o desenvolvimento de tecnologia do concreto por Fernando Lobo Barbosa de Carneiro; as pesquisas sobre altas energias e partículas por César Lattes etc.

Assim, depois de alguns pulos um pouco aleatórios e esparsos, começamos então a era do desenvolvimentismo brasileiro em suas distintas faces. Prometia-se grandes saltos. Pulemos mais um pouco, agora de 44 em 44 anos, para captar algumas nuances destes movimentos.

Cena III. 1966, a miragem cambaleante de uma política nacional de ciência e tecnologia (C&T)

Muitos pulos para frente, outros tantos para trás. Estamos no início de um regime autoritário que encerra um ciclo democrático entre 1945 e 1964 e mina ao longo de quase duas décadas a sagrada autonomia científica e intelectual.

No período anterior, entre 1945 e 1964, além de ter sido construída a indústria automobilística, surgiram algumas importantes instituições e associações científicas, como: em 1948, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); em 1951, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); em 1950, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); em 1952, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), entre outros.

Nos anos de governos militares, entramos na era de uma modernização conservadora e autoritária, que oscila entre, de um lado, a primeira vez em que se formula claramente uma política de desenvolvimento científico e tecnológico de médio e longo prazo e, de outro, o retorno ao caminho fácil de uma política imediatista voltada à atração de investimentos estrangeiros e importação dos bens mais intensivos de tecnologia. De todo modo, a partir de 1963, se dá o início da montagem das pós-graduações brasileiras, momento fundamental da C&T no Brasil. Serão estabelecidas em geral políticas de investimento em pesquisa e tecnologia, com o aprofundamento do investimento em C&T (a FAPESP é criada em 1962 e a FINEP, em 1967) e a busca de parceria entre universidades e empresas, com formação de parques e pólos tecnológicos (Campinas-SP, COPPE-UFRJ, São José dos Campos-SP, São Carlos-SP, Santa Rita do Sapucaí-MG, Curitiba, Campina Grande-PB, Florianópolis-SC).

Neste período, serão vistas várias frentes de avanço, onde algumas vezes a pesquisa tecnocientífica entra com caráter estratégico para a soberania nacional, abrindo-se uma era de grandes projetos: a construção civil, a pesquisa nuclear, a indústria naval, a energia hidrelétrica, a pesquisa espacial e aeronáutica (com a criação da EMBRAER em 1969), o desenvolvimento da agroindústria (com criação da EMBRAPA em 1972) e a política de desenvolvimento das telecomunicações e eletrônica (que tem como exemplos de destaque a política fracassada de reserva de mercado para a informática e o desenvolvimento de uma tecnologia de fibra ótica nacional instalada em todo território pela infovia da Embratel).

Cena IV. Anos 2000, os novos desafios da democratização brasileira e informatização do mundo

Depois dos anos da década perdida, que foi um período de agonia da política de C&T, pois a força produtiva era consumida pela alta inflação e pelo endividamento estatal, a partir de finais de 1990, depois do controle da inflação e as reformas de Estado, temos a multiplicação das inovações científicas e tecnológicas por várias razões. Há um processo de fortalecimento do fomento regional a partir da criação das fundações estatais de apoio à pesquisa, e algumas empresas e instituições já presentes há décadas começam a se destacar como líderes em suas áreas, como a EMBRAER, a EMBRAPA, o IMPA, a Petrobras, a Vale etc. Além disso, temos a reorganização e expansão do sistema S, as políticas de universalização da educação fundamental e, em seguida, um novo ciclo de expansão das universidades e das pós-graduações.

Não tenho como listar a quantidade de acontecimentos relevantes neste período da democratização. Importa sinalizar apenas que tivemos iniciativas inovadoras na área de ciência brasileira (na bioquímica, na agronomia, na lógica, na genética, na geografia, nas ciências humanas etc.) e de tecnologia (como o remodelamento de toda a infraestrutura de tecnologia de informação e comunicação, o Metrô paulista, a prospecção de águas profundas e os gasodutos pela Petrobras, a mineralogia, a produção de álcool e biodiesel, a biomedicina, a siderurgia e construção civil, a biotecnologia, a agroindústria etc.). E é importante não esquecer que surgem novos parques tecnológicos, em parceria público e privada, como o exemplar Porto Digital, empreendido por meu admirável colega de mesa, Silvio Meira, e seus sócios.

Enfim, neste pequeno voo da história, a primeira impressão que temos é que, entre 1930 e 2000, houve um grande salto das ciências e tecnologias no Brasil. Neste aspecto, tão importante quanto os feitos da ciência e da tecnologia foi, ao longo destes anos, uma complexa montagem da infraestrutura básica para o desenvolvimento da ciência e tecnologia, que formou um complexo científico, tecnológico e industrial sem paralelos com qualquer outro país latino-americano.

Mas… esses saltos, quando olhados por outro viés, um pouco mais críticos, se mostram volta-e-meia vacilantes. Às vezes há os dois passos para trás que impulsionam um grande salto à frente; mas muitas vezes também assistimos à tragédia recorrente de que sempre quando há um pulo ou salto para frente, logo se dá em seguida mais dois outros para trás.

Por que isso ocorre? O que podemos fazer para dar um salto sustentado? E como saltar?

Por um ecossistema de inovação tecnocientífica sustentável, inclusivo e democrático

Estamos em meio a uma segunda revolução da sociedade da informação, em um processo de escalada da automatização pela integração entre o físico e o digital desencadeado pelas tecnologias de inteligência artificial. As tecnologias de informação não são um setor, mas sim a força produtiva da nova economia. Não existe setor na chamada indústria 4.0 que não envolva TI, o que está sendo radicalizado ainda mais com a pandemia. Os países que conseguirem assumir a liderança em tal processo serão aqueles que terão vantagens competitivas e predomínio geopolítico no século XXI. Mas parece que o Brasil ainda está a lutar contra fantasmas do passado, presos em algum lugar imaginário nos anos 1950 e 1960.

Retornaremos a um país onde uns sonham com a revolução redentora enquanto outros só se preocupam com especulação rápida e consumo ostentatório de produtos? Ou vamos estabelecer um pacto para construir um Brasil em que a atividade produtiva e criativa seja um objetivo comum de todos e possível para todos? Qual é a nossa prioridade hoje? Pereceremos juntos em uma guerra contra espectros em busca de lideranças messiânicas, ficando para trás nos desafios do tempo presente, ou vamos realizar o bom combate pela educação de qualidade para todos e o desenvolvimento cultural, científico, tecnológico, econômico, social, ecológico e político do país?

Vamos direto ao ponto: sem um planejamento de curto, médio e longo prazos, sem uma visão integrada de desenvolvimento, nada se passará de novo e continuaremos repetindo nossa dança macabra. Colocar essa questão é fundamental em um contexto em que volta a tentação de reduzir o destino de nossa nação a uma visão colonial, que concebe o país por uma visão agrário-exportadora de tipo predatório, digna de fazer vergonha aos sofisticados setores de nossa agroindústria (e lesando também sua imagem e interesses no mundo). Estamos à beira de um capitalismo meramente predatório, com aversão ao Estado de direito e à atividade científica autônoma e esclarecida. Se esse modelo que quer se instaurar, de forma inédita na história da República, vier a prevalecer no médio prazo, largos setores da economia nacional que dependem de uma cadeia produtiva bem consolidada, de níveis altos de qualificação no trabalho, de padrões relevantes de poder aquisitivo, perderão simplesmente sua viabilidade em território nacional. Possuímos vantagens comparativas enormes no setor extrativista e na agroindústria, mas, como fica claro com os CIOs aqui presentes, esses também dependem, cada vez mais, de uma complexa cadeia econômica e tecnocientífica e do equilíbrio dos ecossistemas em que se inserem.

Como diz o velho ditado, “destruir é fácil, o difícil é construir”. O trabalho de um século pode ser desconstruído em canetadas visando cálculos eleitorais, criando-se castelos de areia ou dando-se socos no ar. Temos que começar por abandonar a mentalidade imediatista, do pragmatismo rasteiro de ganho fácil de grana ou de eleições. Esse caminho nos conduzirá às barbáries da exclusão e da eliminação sociais, mas o desenvolvimento tecnocientífico com as novas tecnologias digitais prometem algo muito diverso, que é uma nova era de bom liberalismo, em que ferramentas sem precedentes multiplicam as oportunidades de iniciativa econômica, civil e política, gerando uma sociedade de criação e de inovação onde trabalho e lazer, renda e diversão, dever e autorrealização, esforço produtivo e investimento lúdico, se tornam cada vez mais compatíveis e convergentes.

Devemos evitar, para tanto, dois erros: o primeiro, que foi cometido pelos militares, é o de acreditar que bastaria um planejamento de desenvolvimento científico e tecnológico esquecendo-se das liberdades fundamentais e de uma sinergia com as políticas econômica, educacional e ambiental; e o segundo, que é a tentação sempre existente dos governos de esquerda, é a ilusão de que um desenvolvimentismo nacionalista, autocentrado e estatizador, liderado por algum líder redentor, poderia ser a resposta para nossos problemas. Ao contrário, precisamos de uma sociedade aberta ao mundo, conectada com tudo o que se produz de ideias, tecnologias, produtos e serviços, uma sociedade que saiba aprender e incorporar, criar e inovar, e que confie na capacidade das iniciativas individuais e coletivas. Isso quer dizer que o problema do desenvolvimento não é apenas falta de dinheiro ou vontade política, pois ele envolve a criação de condições sociais e culturais de prosperidade e autorrealização, de potencialização das capacidades existentes para realizar o salto esperado.

Isso quer dizer que não bastam mentes iluminadas fazendo criações heróicas, que é a aposta que o brasileiro gosta de fazer, achando que um craque genial decide o jogo sozinho. Ora, estamos na fase da big science, e é evidente que falta muito para que se realize no país uma pesquisa que se alinhe com os líderes internacionais. Além disso, como diz minha colega Lília Schwarcz, não existirá no Brasil desenvolvimento técnico-científico e econômico sem medidas universais de inclusão social, ao que acrescento que tampouco ocorrerá sem a transição ecológica necessária para lidar com a crise climática que veio para ficar.

Aqui não é o espaço para detalhar um plano de ação, o que pode ser deixado para outra oportunidade. Quem deveria estar fazendo isso, na verdade, são os nossos ministérios de Estado e partidos políticos. Todavia, diante do amesquinhamento da política brasileira, aumenta a responsabilidade da iniciativa privada, com suas empresas, indivíduos, associações, ONGs etc., para que sejam realizados os diagnósticos, os planejamentos e as coordenações de ação.4

Reduzo-me aqui à exposição de cinco diretrizes básicas:

1. Melhorar a informação, o conhecimento e a cooperação para planejar e agir

Não existe desenvolvimento técnico e científico planejado, com coordenação dos setores público e privado, sem que haja coleta constante e centralizada de informações que alimentem indicadores de C&T e P&D. Precisamos de trabalhos de cartografia do parque produtivo, bem como de centralização de informações sobre as redes científicas e acadêmicas. Isso deve ser feito utilizando-se tanto os potenciais de automatização existentes nas TI, como também o uso de equipes interdisciplinares que interpretem os dados para diagnosticar e planejar.

A formação de bancos de dados sobre grupos de pesquisa e redes científicas por meio do CNPq e da CAPES são importantes, mas já carecem de uma sofisticação com o uso de ferramentas mais automatizadas, eficientes e inteligentes. Além disso, é importante que as unidades da federação aprofundem o processo de mapeamento inteligente do território e de digitalização de informações, de forma a melhorar o processo de informações relevantes para a ação pública coordenada. Sempre tomando todo o cuidado, contudo, com os critérios éticos e jurídicos de seu uso, de modo de garantir os direitos à sigilo e privacidade quando neles implicados.

A respeito deste ponto, vale destacar que ações como a do IT Forum também são importantes, pois centralizam de forma qualitativa e especializada as informações sobre a respectiva área e constroem fóruns de trocas de ideias e experiências.

2. Modernizar o Estado, as Universidades e as Instituições de Pesquisa

Nossa infraestrutura nacional montada para o desenvolvimento de C&T está petrificada e se deteriora rapidamente. Antes de tudo, temos que estabelecer uma política sistemática de investimento público em ciência e tecnologia, assumindo-se com uma medida de efeitos multiplicadores de médio e longo prazo. Além disso, os poderes privados e públicos devem realizar complexas articulações com a comunidade científica e educacional. É preciso investir pesadamente em ciência e tecnologia, criando-se um ecossistema fomentador de pesquisa, desenvolvimento e inovação, que articule os diversos atores: empresas, organizações sociais, Universidades e institutos de pesquisa, Estado e iniciativa privada.

As universidades devem ser ao mesmo tempo um pólo de preservação e transformação, de memória e inovação: de um lado, têm que ser o espaço tradicional de preservação, continuação e produção de conhecimento desinteressado, o local da universitas; de outro lado, devem ser um espaço por excelência de vanguarda da ciência e da tecnologia. As universidades públicas precisam melhorar sua gestão, de forma a se tornar mais ágeis, eficientes e meritocráticas, profissionalizando sua gestão e quebrando sua tendência à patrimonialização e ao corporativismo. Para isso, todo o sistema de concurso público deve ser reformado, acabando-se com as caixas pretas e gerando sistemas de auditoria, responsabilização e accountability eficazes. Devem haver mecanismos também para que elas atuem para a captação ativa de quadros de excelência administrativos e acadêmicos (incluindo a repatriação de cérebros e atração de cientistas de ponta), estabelecendo padrões de remuneração atraentes e meritórios. Neste sentido, a experiência de alguns institutos, como o IMPA, serve de exemplo.

Cabe ressaltar, contudo, que as universidades, as faculdades e os institutos públicos são quase que o único locus de pesquisa no Brasil, salvo exceções, e é em torno do sistema público que se formam hoje os pólos e parques tecnológicos. Deste modo, é importante que as universidades e faculdades privadas compreendam a importância do investimento em pesquisa científica e o seu papel para a formação de quadros de nível superior aptos para os desafios do desenvolvimento tecnológico e científico.

Além disso, precisamos aprofundar os programas de parceria para a inovação tecnológica, seja com grandes empresas, seja voltado para pequenas empresas, de forma a induzir e criar uma cultura de pesquisa em interação com o ambiente não acadêmico (ou mesmo fora dele). A respeito disso, é fundamental colocar em discussão os próprios indicadores vigentes de avaliação da produção científica em nosso país, que seguem padrões internacionais cada vez mais problemáticos e contraproducentes – que favorecem revistas e editoras científicas dos países centrais, em detrimento da própria vida universitária nacional. O aprofundamento deste ponto ficará para outro momento, mas o principal é sinalizar que os critérios utilizados de avaliação da produção do pesquisador por meio de quantidade de publicações e fatores de impacto possuem vieses que acabam por jogar contra os interesses de pesquisa cooperativa vinculadas a problemas locais, regionais e nacionais. Isso porque são incentivadas ações estratégicas centradas em publicações de artigos e apresentações em congressos para pares, desincentivando-se não apenas a lógica própria da pesquisa científica (que tem seu tempo próprio), como também a atividade docente de ensino (fundamental para a formação de quadros) e as ações voltadas para fora da universidade (como a extensão universitária). Com isso, a vida universitária brasileira se burocratiza e se fragmenta, ocupada demais com sua própria qualificação para se interessar pelo mundo e os problemas à sua volta.

3. Empresas como atores estratégicos da inovação

É preciso que se amplie o investimento por parte das empresas em P&D, de forma a se tornarem capazes de absorver e gerar tecnologias. Isso quer dizer que as empresas devem incluir em suas atividades uma visão orientada para a pesquisa científica e a inovação tecnológica, criando espaços de pesquisa no seu interior. Vale lembrar que, quando um cientista é formado no Brasil, seu destino é terrível, porque ele está praticamente destinado a ser um “acadêmico” ou perecer. É preciso ampliar a presença de pesquisadores em centros tecnológicos de empresas e organizações privadas e públicas.

Pudemos ver nas exposições realizadas neste IT Forum que isso está sendo feito, mas é preciso que essa cultura ganhe escala e se generalize. Para tanto, precisamos que o Estado seja inovador também em criar condições macro- e microeconômicas para que este ambiente de P&D seja recompensador para as empresas privadas. De fato, é muito difícil que empresas locais tenham uma escalabilidade que compense os vultosos investimentos necessários para chegar no patamar de desenvolvimento tecnocientífico dos países desenvolvidos, sobretudo em áreas de tecnologia de ponta. Mas é preciso inteligência coletiva não apenas na identificação de áreas estratégicas em que isso é possível (como ocorre inclusive em TI, sobretudo com os softwares), incentivando-se por exemplo processos de engenharia reversa, mas também no reconhecimento de nichos de mercados e demandas de desenvolvimento local e regional em que se possa produzir customização de produtos e serviços e tecnologias autóctones.

4. Atuar sobre o imaginário social em favor de uma cultura e memória científica, tecnológica e experimental

Uma parte de nossa história diz respeito a um problema de fundo, de ordem cultural: no nosso país, ainda não está enraizada suficientemente uma cultura científica, de inovação e de experimentação, que é normalmente vista como uma coisa dos outros. Na verdade, há uma grande resistência a uma cultura científica e experimental no Brasil. As mídias e nossa cultura de consumo em geral produzem como símbolos exemplares a celebridade, o cantor, o esportista, a atriz, sendo quase inexistente uma visão positiva do cientista, do acadêmico ou do inovador. Em nossas comunidades carentes, temos o agravante de o espelhamento nem sempre ser o jogador de futebol ou cantor, pois às vezes o que aparece à frente como exemplo a seguir é o traficante ou aquele que segue a vida do crime.

Os cursos de empreendedorismo são importantes para ampliar os horizontes imaginários de nossas gerações, mas temos poucas difusão de uma cultura científica, tecnológica e experimental. Explorando a própria autoestima do brasileiro como criativo e engenhoso, é necessário aumentar nossa competência e gosto para o pensamento lógico, a argumentação racional, a experimentação técnica e a curiosidade científica.

Para tanto, são demandadas ações diversificadas. Em primeiro lugar, há a necessidade de preservar a memória histórica sobre desenvolvimento tecnológico e científico, de forma que possamos reconhecer as ações e os efeitos individuais e coletivos como parte de nossa identidade nacional. Em segundo lugar, precisamos reforçar a divulgação científica e tecnológica, bem como fomentar cursos livres voltados ao desenvolvimento de uma cultura científica, metodológica e experimental. Em terceiro lugar, é fundamental reconhecer que as escolas são espaços privilegiados para a difusão desse tipo de cultura, o que demanda livrá-las de seu atual engessamento. A esse respeito, vale sinalizar que o esforço é enorme, porque envolve não apenas superar os altos índices de analfabetismo funcional, matemático e científico, como também inserir a alfabetização digital e o aprendizado de linguagem de programação em nossos currículos.

5. Um Estado de Bem estar ativo e ativador

Por último, é importante sinalizar que precisamos desenvolver em nosso país políticas sociais de nova geração que estabeleçam um Estado de bem estar ativo e ativador. Uma cultura de inovação depende de uma política de justiça social orientada para o que o economista Amartya Sen chama de “capabilidades”. Esta questão é mais um nó do país, tendo em vista que ainda temos milhões de brasileiros à margem da sociedade, sem renda, saneamento básico, educação etc. Uma política de desenvolvimento tecnológico e científico deve estar associada a uma política social inclusiva, voltada para a garantia de direitos sociais e de trabalho digno; deve também estar vinculada a políticas de desenvolvimento local e regional, como é feito pelo Porto Digital em Pernambuco, que inclui entre suas estratégias de inovação a identificação das potencialidades e demandas populares locais.

Além disso, temos que pensar sobre a repercussão da automatização por inteligência artificial nos empregos e rendas; sabemos que todos os países estão perplexos diante da possibilidade de desempregos massivos por causa da supressão de profissões e postos de trabalho em larga escala. Se a automatização de uma indústria ou setor de serviços é uma grande coisa para um empresário, isso não deve levá-lo a crer que pode abstrair da repercussão agregada sobre toda a economia nacional. Isso tanto por razões morais, quanto econômicas: com desemprego em larga escala ou precarização generalizada, míngua o próprio mercado consumidor de sua indústria.

Portanto, é necessário que todos os agentes estejam atentos para quais serão as medidas necessárias para responder aos efeitos que a automatização terá sobre o trabalho na nova economia. Isso demandará várias medidas, como por exemplo a “reconversão de profissões”, o desenvolvimento de formações profissionais por competências polivalentes e transversais e, até mesmo, como se discute nos países desenvolvidos, a geração de renda básica associada a uma economia de ativação de capabilidades.

Notas

1 Paper produzido para a participação no IT Forum Anywhere, na mesa “De 22 a 22: o Salto da Tecnologia no Brasil”, realizada no dia 08 de junho de 2021, com a presença de Silvio Meira (cientista-Chefe, The Digital Strategy Company & professor Extraordinário, CESAR School) e Domingos Monteiro (fundador e presidente da Neurotech).

2 Gostaria de agradeço a Vítor Cavalcanti, sócio-diretor do IT Mídia (https://www.institutoitmidia.com.br/), pelo convite, pelo trabalho e pela mediação, bem como à equipe do IT Forum pela organização do evento e aos colegas de mesa, Silvio e Domingos, pela bela manhã de conversa.

3 MOTOYAMA, Shozo (org.) (2004) Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia no Brasil. São Paulo: EdUSP/Fapesp.

4 Um bom exemplo recente da capacidade de ação e coordenação da iniciativa privada foi o Consórcio realizado entre empresas de comunicação para apurar os números da pandemia em relação direta com as Secretaria dos estados, substituindo o protagonismo do Ministério da Saúde quando esse se mostrou interessado em omitir ou manipular os números. Desta forma, de uma hora para outra, deslocou-se para a iniciativa em parceria público-privado o papel fundamental da consolidação diária da estatística que guia as ações de vigilância sanitária e saúde pública.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com). 
 Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do  presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.

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