Hoje, no Fios do Tempo, trazemos a transcrição da primeira aula do curso A Nova Retórica de Chaïm Perelman que lecionei no dia 28 de junho de 2016 (e que já havia sido ensinado em 2013). A aula foi transcrita naquele ano por um brilhante ex-aluno e querido amigo (de quem estou com saudades), Raphael Condessa. Publico-a aqui sem ter feito alterações de conteúdo, mantendo-a tal como estava, com um registro mais informal próprio da oralidade. A única alteração feita por mim são poucos ajustes formais e a introdução de seções que facilitam a apreensão da estrutura da exposição.
Essa aula não foi transformada em publicação na época porque eu estava esmagado entre o dispêndio inútil de energia em concursos públicos enviesados patrimonialmente e a busca de sobrevivência num emprego precário em faculdade privada. A partir de 2018, com a criação do Ateliê de Humanidades, um nó cego se desfez e entrei num processo criativo constante, mas sem ter dado continuidade àquele projeto.
Ao relembrar o conteúdo singular dessa aulas, tomo uma consciência ainda mais aguda de alguns aspectos trágicos de nossas instituições de ensino superior. Fico feliz em estar agora retomando o fio da agenda de pesquisa sobre retórica enquanto preparo um curso inédito sobre Retórica Moderna e Contemporânea no contexto de nosso Ciclo de Retórica no Ateliê de Humanidades. Creio que o tema aqui tratado é ainda mais fundamental neste ano de 2021. Para perceber isso, basta seguirmos a exposição tomando conhecimento do percurso magnífico de Chaïm Perelman: suas experiências de vida, a problemática que o motivou a pesquisar os fundamentos da racionalidade humana e sua descoberta e reconstrução da retórica no século XX.
Desejo um excelente leitura. Feedbacks sempre serão bem vindos.
A. M.
Fios do tempo, 14 de junho de 2021

Chaïm Perelman,
sua vida, sua obra*
André Magnelli
Introdução ao curso
O curso não é sobre Retórica Clássica, mas sobre a “Nova Retórica”, a teoria e lógica da argumentação. O curso também não terá por objeto a história da retórica, mas está voltado à apresentação de uma determinada teoria retórica, que é aquela desenvolvida por Chaïm Perelman e sua assistente e parceira Lucie Olbrechts-Tyteca, em seu projeto de recuperação da nova retórica no século XX. Assim, o objetivo do curso é apresentar esta teoria retórica, com foco na obra de Perelman, sobretudo em um livro que foi o grande livro de retórica do século XX, intitulado Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. Perelman não se reduziu a essa obra, ainda que tenha sido a grande obra de sua vida, pois foi também um filósofo da justiça e do direito. Ele tem uma obra com contribuições que não se reduzem à retórica, pois ela visa também a aplicação da teoria da argumentação a outros campos de reflexão.
Para que bem compreendamos este projeto da nova retórica faremos uma introdução bem particular. Temos que entender, primeiro, o que este projeto tem em vista e por que recuperar a retórica no século XX. Não são apenas razões teóricas, mas também são razões filosóficas, políticas e éticas que se vinculam à experiência histórica e à experiência do século XX. Então, para começarmos a trabalhar a teoria da argumentação, iremos apresentar a obra de Chaïm no contexto deste século e da experiência de vida do autor, que nasceu em 1912 e percorreu uma boa parte do século. A Segunda Grande Guerra ocorreu entre seu nascimento e morte. E a recuperação da arte retórica está intrinsecamente vinculada à experiência da Segunda Guerra Mundial, sobretudo à experiência do Holocausto.
Chaïm era um judeu belga e a recuperação da nova retórica se situa na sua experiência de tempo presente, na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto. Para começarmos a trabalhar a teoria da nova retórica, iremos introduzi-la como uma tentativa de reconstrução da racionalidade pela perspectiva da retórica, apresentando os motivos para esta reconstrução. E iremos ver ao longo do curso em que consiste esta racionalidade.
O Tratado da Argumentação não é uma concepção apenas técnica, ainda que compreenda a retórica como técnica. Não vamos tratar da retórica tal como um vendedor visando aprender a melhor argumentar para seduzir e vender melhor, ou como um político visando ganhar mais votos em um embate eleitoral, ou ainda como um advogado querendo aprender a retórica para melhor exercer o seu ofício diante de um juiz ou tribunal, ou, enfim, como podem fazer os pastores que, diante de seus fiéis, vão aplicar a teoria da argumentação no contexto prático voltado a uma finalidade específica (temos, historicamente, por exemplo, uma tradição de Oratória Sacra, sobretudo a dos jesuítas, que têm uma considerável tradição de estudos de retórica). Ora, tudo isto pode ser uma razão para ler a teoria da argumentação. Há o uso da retórica, portanto, para fins práticos, mas há, todavia, uma teoria da argumentação que não se reduz ao uso técnico e que tem uma finalidade filosófica, isto é, a da reconstrução da razão como sendo um projeto filosófico.
O que é o que iremos ver situando a teoria da argumentação na vida e obra deste autor. Para tal, iremos dividir a vida de Perelman e seu itinerário filosófico e intelectual em três fases, com um interlúdio entre a primeira e a segunda. A primeira fase consiste na formação intelectual do autor, com o interlúdio da Segunda Guerra Mundial. A segunda fase se refere ao processo de formação e consumação do projeto de construção da nova retórica, e, por fim, temos a terceira fase, que consiste na fase de desenvolvimento de uma filosofia do direito e da justiça, onde seu projeto da nova retórica recai na análise da lógica do argumento jurídico e da argumentação jurídica.
Primeira fase (até 1940): a Escola Lógica Polonesa e o Círculo de Viena
A primeira fase do autor, a fase de formação intelectual, é situada entre seu ingresso na universidade como acadêmico até 1940, com o advento da Segunda Guerra Mundial. Como vimos, Perelman era um judeu, nascido na Polônia, que emigrou para a Bélgica, tendo adquirido cidadania belga. Apesar de ser polonês, foi uma pessoa que se enraizou e produziu, trabalhou e viveu quase todo período de sua vida na Bélgica. Casou-se com Félicie Perelman, que foi sua parceira ao longo da vida, e que tiveram uma filha chamada Naomie.
Temos que levar em consideração que, no início de seu ingresso à vida acadêmica na filosofia, ocorreu um grande acontecimento no entre Guerras, O Manifesto do Círculo de Viena. Foi um manifesto pela defesa de uma concepção científica de mundo, publicado por um círculo que envolveu uma boa parte dos grandes filósofos que vinham da lógica e da matemática, como Wittgenstein, que, embora não tenha participado diretamente no Círculo de Viena, foi um grande inspirador deste movimento, bem como influenciados pelo grande Bertrand Russell, que foi um filósofo extremamente importante na filosofia da matemática e da lógica. Karl Popper também é tributário do Círculo de Viena, ainda que não tenha participado diretamente dele. Porém, independente disso, o importante é saber que neste Manifesto – que é facilmente acessível na internet em sua versão em inglês -, se defende a renovação da filosofia, refundamentando epistemologicamente a filosofia a partir do paradigma de uma lógica fundada na racionalidade da matemática; pois é pela matemática e pelo estudo dos fundamentos da matemática que é possível resolver os problemas da lógica, com a qual ela teve que historicamente se debater. Assim, se busca refundamentar o pensamento num paradigma demonstrativo retirado do modelo da forma de pensamento matemático. O Manifesto de Viena se propõe não apenas a estabelecer um novo fundamento para a ciência, compreendendo a possibilidade de produzir um conhecimento válido a partir do paradigma lógico-matemático, como também pretende expandir esta racionalidade por meio de projetos pedagógicos e políticos. É um manifesto que foi escrito numa experiência de entre-guerras onde estavam em ascensão o nazismo e o fascismo. Escrito vinculando-se ao projeto do Esclarecimento europeu, onde o Esclarecimento se consumava numa racionalidade fundamentada em uma razão lógico-matemática.
Perelman, em sua fase de formação intelectual, teve grande influência do Círculo de Viena. Antes mesmo de ser um teórico da retórica, foi um lógico. E boa parte de seu desenvolvimento teórico trabalhado com a retórica consiste em um diálogo permanente com a lógica e com a insuficiência da lógica dar conta da razão. O paradigma lógico não é o paradigma da racionalidade, porque há múltiplas formas de razão, isto é, há uma pluralidade de formas de conhecimento. Deste modo, o autor desenvolve uma teoria da retórica que, em diálogo permanente com a lógica moderna, e especialmente a lógica formal, demonstra justamente que a lógica não dá conta, retomando com isso a Aristóteles.
O Manifesto de Viena foi um grande impacto na vida filosófica moderna, no entre-guerras e na vida de Perelman. No entanto, o autor não foi formado na Escola do Círculo de Viena, mas na Escola Lógica Polonesa, que possui suas particularidades, tendo um diálogo forte com a lógica do Círculo de Viena, mas mantendo suas características particulares, até mesmo na notação lógica que é diferente entre as duas escolas. Mas o estudo das diferenças e semelhanças entre a Escola Lógica Polonesa e a Escola do Círculo de Viena é um debate profundo e que não se insere em nossa proposta. Contudo, podemos apontar que a perspectiva das duas escolas era a mesma, consistindo em refundamentar a lógica a partir da matemática, estabelecendo um novo tipo de notação a fim de estabelecer uma linguagem clara, unívoca e uma axiomatização da linguagem que tenha se purificado em relação à linguagem natural, ou seja, em relação à linguagem que nós utilizamos no cotidiano. Uma das coisas básicas do projeto da lógica formal era este: construir uma linguagem da ciência, portanto, purificada dos problemas inerentes à linguagem do dia a dia.
Boa parte dos problemas dos lógicos e da metafísica se trata de um erro de linguagem, sendo a metafísica muitas vezes a discussão de problemas que são problemas linguísticos mal entendidos. Assim, se conseguimos refundamentar a ciência e os problemas filosóficos em uma filosofia linguística, isto é, numa análise da linguagem a partir da matemática e de um sistema axiomático puro, baseado em axiomas indubitáveis e a partir de um procedimento tanto de indução quanto de dedução bem fundamentado, logo, a ciência estará fundamentada e poderemos trafegar nas águas da razão sem turbulências. Portanto, concluímos que o problema é justamente a linguagem cotidiana; assim, através da busca e refundamentação de uma nova linguagem, prevalece a unidade da ciência constituindo um paradigma único. E boa parte da metafísica é descartada, pois ela consiste em um mero problema de linguagem. Boa parte dos problemas filosóficos são problemas que podem ser colocados de lado, pois a ciência não cuida dessas questões vinculadas a uma linguagem cotidiana ou a questões vinculadas a emoções, paixões e crenças. Ciência é questão de saber, devendo este saber ser absolutamente fundado, porém não pela metafísica, mas sim pela lógica. Este era, em suma, o projeto do Círculo de Viena!
Nosso autor esteve envolto com este projeto, contudo, não na Áustria, mas sim na Bélgica, com influência da Escola Lógica Polonesa. Perelman situou seus estudos na Universidade Livre de Bruxelas, universidade que tinha sido fundamental na história belga, estando vinculada à experiência de reforma protestante e de formação de uma concepção de Universidade baseada no livre exame e numa autonomia universitária em relação às instituições políticas e religiosas. Foi uma Universidade que, na virada do século XIX para o século XX, tem um projeto muito parecido, guardadas as grandes distâncias, com o projeto universitário brasileiro, com uma universidade promotora de modernização e de transformação social; e nesta perspectiva de um motor de transformação social, o saber que se viu como capaz de reformular o mundo moderno sob uma perspectiva de ciência foi justamente a sociologia. Só que quem empreendeu a Sociologia não foram os sociólogos. Assim como em boa parte do mundo universitário, quem fundou a Sociologia foram outras pessoas. Na França foi um filósofo, Durkheim, na Alemanha um ‘’quase’’ filósofo formado em Direito, Weber, e na Bélgica, por sua vez, foram engenheiros e também profissionais do Direito. Na Universidade Livre de Bruxelas, a renovação teve como embate um conflito interno entre espiritualistas e positivistas (cujo debate não cabe à nossa proposta). Foi uma renovação da Universidade onde houve um diálogo entre lógica, direito e o projeto de engenharia social e transformação social. É o ponto mais importante para nós.
Chaïm Perelman irá se formar neste projeto, onde se formam institutos de consolidação da Sociologia, como o Institut des Hautes Études en Sciences Sociales e o Institut de Sociologie Solvay (com o patronato de um grande burguês belga). Institutos estes que hoje em dia seriam extremamente estranhos e anômalos no mundo universitário. Perelman publicava estudos de Lógica em uma revista no instituto de Sociologia, o que era perfeitamente aceitável à época, prática esta que, se hoje executada, de publicar estudos de Lógica em um instituto de Sociologia, não renderia, muito provavelmente, um parecer favorável, o que na época não acontecia, pois eram muito conectadas estas questões entre os estudos de lógica, direito e sociologia.
Sua tese de doutorado foi sobre Frege, Études sur Frege, o que mostra a sua influência da lógica, pois Frege foi um dos grandes lógicos do início do século. Perelman foi também orientado por Marcel Barzin, um filósofo da matemática muito importante na época e que também se tornou político belga, sendo considerado um liberal, possuindo uma trajetória política notória. Ele foi assistido por Tadeusz Kotarbinski, que era um lógico polonês e um dos principais representantes da Escola Lógica Polonesa. Desta forma, Perelman, na década de 1930, era um lógico que sequer imaginava se tornar um teórico da retórica, não conhecendo inclusive nada – e isto é revelado pela sua assistente intelectual Lucie Olbrechts-Tyteca – sobre a arte retórica na época. Perelman dominava a lógica e Lucie era uma cientista social e erudita em humanidades, uma exímia leitora de literatura e intelectual.
Dentro da Escola Livre de Bruxelas, Perelman teve forte influência de Marcel Barzin, conforme mencionamos, porém sua principal influência foi um dos maiores pensadores belgas, hoje em dia curiosamente pouco trabalhado e conhecido mesmo na própria Bélgica, estando quase todos os seus livros já esgotados. Estamos falando do filósofo belga Eugène Dupréel, uma figura importantíssima na filosofia belga. Dupréel foi ao mesmo tempo importante na sociologia belga, tendo escrito inclusive tratado de sociologia geral, e nos estudos da moral, sobretudo em algo que é completamente anômalo hoje em dia no mundo moderno, onde ao mesmo tempo em que ele é um importante sociólogo na Bélgica, ele é fundamental como uma das primeiras pessoas que resgata a tradição sofística, publicando dois livros de análise dos sofistas e de retomada do debate sofístico como sendo fundamental para tratar de questões básicas sobre os fundamentos do conhecimento, relação entre teoria e práxis, relação entre juízos de realidade e juízos de valor.
Dupréel tratou principalmente do grave problema de como se analisar noções confusas, pois nem todo conhecimento é claro e distinto, sendo boa parte de nosso saber envolvo em noções confusas, não como sendo um problema, mas sim como sendo a própria natureza da linguagem e da racionalidade humana lidar com tais noções confusas. Existe um saber às voltas com as noções confusas, segundo Dupréel, que deve ser analisado. A lógica não dá conta desta questão, mas sim uma outra racionalidade, que é a proposta do autor com sua retomada da tradição sofística. Não somente para debater questões de epistemologia (fundamentos do conhecimento), mas porque ele via uma proximidade muito grande entre os sofistas e a sociologia. Esta discussão proposta por Dupréel hoje em dia se perdeu pelo caminho e quase não se encontra mais seus livros, limitando-se a sebos. Até na própria Bélgica seus livros se encontram esgotados.1
Portanto, podemos concluir que a formação de nosso autor, Chaïm Perelman, consiste em uma combinação de estudos de lógica, com uma influência forte da Escola Lógica Polonesa e se situando na Universidade Livre de Bruxelas, com uma retomada da sofística e uma perspectiva de estudos dos fundamentos do direito e, por fim, sob a égide de um projeto de transformação social, contra uma tradição espiritualista mais vinculada a alguns antigos poderes estabelecidos.
Interlúdio (1940-1945): atividades de resistência encoberta na II Guerra e a Declaração dos Direitos do Homem
Como já foi dito, há um interlúdio na vida do autor, que é o início da Segunda Grande Guerra em 1940, com a ocupação alemã na Bélgica, onde a vida acadêmica belga, assim como a Bélgica como um todo, foi completamente transformada pela ocupação. Depois do doutorado, Perelman já entra como professor na Universidade Livre de Bruxelas, onde fez toda sua carreira acadêmica, na faculdade de Filosofia e Letras. Porém, após 1940 ele é afastado. Há uma história da academia belga vinculada a movimentos de resistência. A Academia de Bruxelas foi uma universidade muito importante na resistência contra a ocupação alemã, onde os professores se recusaram a obedecer aos comandos dos ocupantes, onde diversas sanções recaíram sobre os professores, onde muitos foram demitidos. Perelman e alguns de seus colegas se recusaram a obedecer às ordens dos ocupantes e foram obrigados a se demitirem; entretanto, Perelman estrategicamente saiu da Universidade, dando um intervalo no exercício de sua função, mas tendo sua remuneração mantida, como que por um “contrabando” (indiretamente), que foi o que o financiou durante este período da Segunda Guerra Mundial.
A experiência da ocupação nazista, vinculada à Universidade de Bruxelas, que foi uma Universidade bastante combativa na resistência, assim como o engajamento por parte de Chaïm, de sua esposa, Félicie Perelman, e de sua assistente Lucie Olbrechts-Tyteca, foram decisivas. Perelman foi co-fundador do Comitê pela defesa dos judeus, e no exercício de suas atribuições, salvou cerca de 4000 judeus, sobretudo crianças.2 Também foi vice-chefe e posteriormente chefe da Associação dos Judeus da Bélgica, sendo esta associação responsável por cuidar dos judeus durante a ocupação. Perelman foi um falso colaborador, trabalhando na “zona cinza da moral”. Já isso mostra uma certa “racionalidade prática” que prenuncia a retórica. Com a falsa colaboração por parte de Perelman, fez resistência por “debaixo dos panos”, tanto na emigração de judeus, sobretudo crianças, quanto na busca por acesso a comida e mantimentos, contrabandeando e dando para pessoas que necessitavam, trabalhando na parte de prover suprimentos, alimentos, roupas e coisas essenciais para atender aos judeus.
No pós-guerra nosso autor participou de uma associação que ajudava os judeus a emigrarem para a Palestina, que dava apoio aos judeus. Participou também dos comitês de especialistas, no pós-guerra, para restabelecer os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi referendada na Assembleia Nacional da ONU, sendo o sustentáculo, como fundamento, de uma ordem jurídica internacional. Perelman participou da restauração dos princípios universais dos direitos humanos, com a ideia de fundamentar os direitos universais. Há um livro neste debate de restabelecimento dos direitos universais, que defende a tese que é nesta tentativa de fundamentar os direitos humanos que surge o projeto de uma racionalidade deliberativa, de uma outra forma de racionalidade que consiga dar fundamento aos direitos humanos.
O fato é que no pós-guerra há uma virada retórica, há uma virada não apenas linguística, mas, sobretudo, retórica, ainda não muito conhecida, sendo esta virada, na filosofia, denominada de virada linguística, com Habermas, com os filósofos analíticos da linguagem, com a filosofia pragmática. Portanto, no pós-guerra, houve uma virada retórica em uma busca de novo fundamento do saber, por exemplo, temos o próprio Chaïm Perelman e Hannah Arendt (que não fala muito sobre a retórica, mas é inquestionavelmente uma retomada da retórica, ainda que menos explícita). A obra de Perelman não faz somente uma virada, mas é uma retomada teórica da retórica. [Esqueci de dizer: neste interlúdio, há uma experiência de resistência onde “Fela”, sua esposa, que participou da organização de ajuda aos judeus, como em uma escola para crianças judias, que servia também como apoio à resistência].
Segunda fase (1945-1958): descoberta da retórica e construção da Nova Retórica
Após este interlúdio, inicia-se propriamente a segunda fase, que é onde começa o projeto, a partir de sua retomada da arte retórica. Em 1945, Perelman retorna à Universidade Livre de Bruxelas e se torna professor de história, lógica, metafísica, filosofia e moral, ou seja, ministra aulas em vários campos acadêmicos. E é ainda em 1944 que ele começa a escrever um texto muito importante intitulado Sobre a Justiça, onde o autor tenta buscar os fundamentos da justiça, chegando ao que ele denomina de “núcleo da justiça formal”, ou “o núcleo formal da justiça”.
Perelman, nesta busca pelos fundamentos da justiça, que ele começou a escrever e publicou logo no fim da guerra, defende a seguinte tese, esta que ele irá seguir ao longo de sua vida: que “a justiça pode ser definida por um núcleo formal, que é tratar igualmente a todos que pertence a uma categoria semelhante”; porém não iremos entrar neste campo de debate acerca do que vem a ser a justiça. O que importa é que estabelece o que ele chama de “regra da justiça”, que consiste em tratar todos pertencentes a uma mesma categoria de forma igualitária. Ele chega a elencar seis tipos de justiça a partir desta regra formal, onde há conflitos entre estes tipos de justiça, uma indecisão sobre que princípio de justiça serve quando se trata de dizer se alguma coisa é justa ou não, chegando Perelman a uma conclusão aporética, onde ao mesmo tempo que ele busca fundamentar o que é a justiça, ele diz que o fundamento último é decisionista (é decidir), não havendo como fundamentar o que é justo e o que não é.
Ficou insatisfeito com esta análise, o que foi importante para começar sua refundamentação, pois, no princípio, ele não consegue chegar a uma fundamentação da justiça, mas apenas cai em um decisionismo, que não é propriamente o que ele estava buscando, uma decisão que não tem racionalidade. Boa parte da teoria retórica trabalha em cima de como decidir razoavelmente; e a aporia é justamente quando a esta questão não se consegue alcançar um fundamento razoável, portanto, concluímos que o problema para Perelman era a razoabilidade da decisão, não apenas decidir.
Perelman também tem debates neste período sobre o livre-exame e sobre a liberdade nas democracias modernas, havendo uma tensão entre a questão da liberdade e a verdade, ou seja: estabelecer o que é verdadeiro está em conflito ou não com a liberdade humana, sim ou não? O paradigma da verdade estaria em conflito com a liberdade humana? Ora, podemos diferenciar prontamente esta questão quanto à concepção de liberdade por nós adotada, pois se adotarmos uma postura monista, a tendência é o conceito de verdade se tornar autoritário e impositivo às pessoas, sem que seja necessária uma adesão. E esta discussão está diretamente vinculada ao paradigma da retórica, trata-se da questão da verdade e da opinião quando tratamos da democracia.
Perelman pensa: “o problema da verdade com relação à liberdade é resgatar a questão da opinião”, a relação entre a verdade e a opinião. É o problema clássico da filosofia, pois quando você retoma a doxa e resgata os sofistas, sobre a relação entre verdade, saber e opinião (alétheia, episteme e doxa), automaticamente é retomado o debate clássico propriamente da democracia, que possui fundamentos pluralistas, onde a opinião não deve ser dispensada cartesianamente como uma ilusão e uma aparência, como se devesse ser posta em suspenso em prol de uma concepção de racionalidade que só aceito o que é indubitável. A tradição moderna acaba estabelecendo uma concepção de racionalidade onde boa parte do que é racional é posto como irracional. Ora, a maior parte da vida humana é relativa à doxa, e é relativa ao que é confuso e à necessidade de decidir acerca de diversas questões que estão em conflito e que necessitam de decisão diante de um tempo curto. Por exemplo, podemos tomar o político, pois quando da tomada de suas decisões, o mesmo não declara que irá realizar uma reflexão filosófica acerca do tema em questão para estabelecer um fundamento diante a sua decisão, pois ele não pode parar sua vida política para “filosofar”, pois o mundo da política não é concomitante ao mundo da filosofia. O mundo da doxa era tido como o mundo dos erros e de deliberações falsas e equivocadas, gerador de um mau resultado.
E Perelman faz uma reestruturação deste conceito com a sua nova retórica. A zona que era a zona quase que completa da experiência humana, na Grécia clássica, era a práxis, onde o que estava em jogo era uma racionalidade do provável, do plausível, do confuso, de uma decisão em torno de vários possíveis, e não uma fundamentação última. Assim, a questão é, portanto, como conseguir reconstituir essa concepção de racionalidade que corresponde a um verdadeiro império. Digamos que com a racionalidade humana, a racionalidade apodítica, da fundamentação última, é uma ilha num oceano de uma racionalidade improvável e implausível, havendo um verdadeiro, e Perelman fala isto em sua obra, “império retórico”, onde a retórica quase que toma toda a experiência humana. E aquilo a que se dedica boa parte da filosofia, que é a lógica e os fundamentos da matemática, é uma pequena ilha de uma experiência humana, que é uma experiência onde a possibilidade de formalizar um raciocínio não existe, e ao mesmo tempo é necessário se decidir de forma racional. Desta forma, o autor declara que um dos nossos grandes problemas da experiência moderna é que descartamos uma parte da racionalidade que nos é fundamental.
Digressão sobre importância da retórica na educação e na democracia
Há inclusive um lado educativo quanto a essa questão, onde a retórica deve ser retomada nas escolas, não para ensinar a arte da persuasão de pessoas, mas para as pessoas aprenderem a pensar, onde para aprender a pensar é necessário trabalhar esta racionalidade, que é uma racionalidade da dialética e da retórica em um sentido aristotélico do termo, e não da lógica unicamente. Pensar retoricamente, segundo o autor, é fundamental para uma sociedade democrática, pois há uma relação umbicular entre a democracia e a retórica, pois em um regime de liberdade, observa-se que o que cresce é a retórica e a experiência retórica, e é esta a tese de Perelman, onde há toda uma discussão na história da retórica que deveria ser colocada.
Mas há, sobretudo, uma relação muito próxima entre a retórica e a democratização, pois a expansão da liberdade é a necessidade do uso do estudo da retórica, porque a democratização vem junto com a necessidade de lidar com a pluralização dos valores e as formas de pensamento, bem como com uma necessidade de decidir e tomar atitudes, agindo diante de uma ordem plural e livre. Portanto, há indubitavelmente uma relação muito próxima entre a arte retórica e a experiência democrática do mundo; porém em nosso mundo a retórica é posta como desnecessária. Orientamos o estudo de lógica, mas nosso pensamento fica entregue à pior retórica possível, que é aquela que você não aprende. E isto podemos ver no mundo contemporâneo através das mídias sociais, em que são utilizados os piores artifícios retóricos sem ao menos se ter consciência disto, há um bando de “sofistas” sem saber (sofistas no sentido negativo e pejorativo do termo, que não é fiel à tradição dos sofistas) a todo tempo. Podemos dizer que a melhor imunidade para a retórica, no sentido negativo do termo, é aprender a arte retórica, aprender a utilizar da retórica e a não se deixar entrar em um jogo de um malogro de persuasões que são sofísticas.
Retomando o fio
A retórica está diretamente ligada a este projeto. Perelman participa ativamente da revista Dialectica, que foi fundada por Gaston Bachelard, Paul Bernays e Ferdinand Gonseth, que são importantes epistemólogos no debate europeu (o mais conhecido hoje é o Bachelard). Além de nosso autor trabalhar com textos na Dialectica, ele veio a fundar o Centro de Lógica na Universidade de Bruxelas (Centro Nacional de Pesquisas em Lógica), juntamente com Leo Apostel e outros filósofos importantes inseridos neste contexto. O ponto importante deste empreendimento era criticar o positivismo lógico. E o resultado destes estudos e reflexões de Perelman logo no pós-guerra, durante o período de 1945 e 1949, é esta crítica ao positivismo lógico (ou ao que se denomina de empirismo lógico). O empirismo lógico, aquele apresentado pelo Círculo de Viena, não traz um conceito de razão que seja suficiente. Na distinção entre os juízos de fato e os juízos de valor (ou juízos de realidade e juízos de valor), o que diz respeito aos valores é posto por algo que é entregue ao campo irracional na tradição do positivismo lógico, e o que é necessário, portanto (e é esse o projeto de Perelman), é realizar uma lógica dos juízos de valor, de modo que seja possível fundamentar os juízos de valor; pois se fala bastante sobre os juízos de fato, e as ciências mostraram que conseguem explicar os juízos de fato, explicando as coisas quando elas se atêm apenas a fatos, porém como podemos estabelecer o que vem a ser bom, o que é justo, o que é o bem ou o belo?3 Como saber o que é o bom e o justo, afinal? A questão é, então, como estabelecer qual a racionalidade que pode estabelecer o melhor valor, que é onde a retórica se faz candidata para fundamentar esta racionalidade. Portanto, há uma crítica ao positivismo lógico, uma necessidade de uma lógica dos juízos de valor e de uma reconstrução pós-totalitária da racionalidade prática.
Façamos uso agora de uma citação feita pelo autor na ocasião de uma exposição realizada para seus alunos da Universidade Livre de Bruxelas, logo no pós-guerra. Trata-se de uma exposição em que ele fala sobre o que é o livre-exame e qual é sua importância no mundo moderno, lembrando que a Universidade está muito envolvida com esta perspectiva do livre exame, que é tipicamente protestante, por direito de tomar decisões tomadas pelo livre exame, na deliberação do foro íntimo do que é certo de fazer ou do que é justo, ou seja, não se submeter a argumentos de autoridade e por ter o direito de fazer uso de sua própria razão, assim, o autor nos traz que:
Nem a Universidade nem o livre exame vos dirão jamais: é preciso “Crer, obedecer e combater“4. Mas, na realidade, aquele que se inspira no princípio do livre exame de fora da própria ciência, trará para a consideração de problemas práticos a mesma atitude intelectual do que aquela que é familiar aos pesquisadores científicos, isto é, ele fará antes de tudo apelo ao seu espírito crítico, que é o início absolutamente primeiro de toda opinião bem fundada. Em seguida, ele buscará as razões por ou contra toda solução vislumbrada e aderirá a uma dentre elas tomando ele mesmo a responsabilidade de sua decisão5. À obediência das regras impostas por outrem, nós opomos a adesão a uma convicção que é formada por si mesmo. E, no fim das contas, ele se servirá desses argumentos para convencer estes interlocutores e obter seu acordo. À máxima fascista “Crer, obedecer, lutar”, nós opomos outra, que seria: “Duvidar, se decidir, convencer”; máxima que opõe o primado do pensamento àquele da força6.
Isto posto, podemos entender que, de acordo com a citação, é muito mais fácil você crer, obedecer e lutar, pois você remove certas seguranças próprias da “doxa”, no sentido negativo do termo, que é uma crença não fundamentada e refletida, porém a retórica, para Perelman, vai ser retomada para se começar a pensar nesta reflexividade, uma racionalidade que é reflexiva e pensa os fundamentos de sua própria ação, isto é, uma racionalidade que não vai primeiramente estabelecer um núcleo dogmático e depois convencer as pessoas de que este núcleo dogmático é a melhor forma de fazer, como certos grupos de políticos que possuem seus respectivos núcleos dogmáticos e como solução adotam sofistas para convencer o populacho de que a melhor forma é crer, obedecer, combater e ir para a luta. Algo que é muito presente nas sociedades pós-modernas no campo político, que é o uso dos sofistas, que são pagos para convencer as pessoas com as piores mutretas já decifradas por Aristóteles do que não é de forma alguma convencível, utilizando lugares comuns mal trabalhados e fazendo certas reflexões que não têm fundamento para alguém que conhece de arte retórica.
Dessa forma, para Perelman, você busca razões pró e contra para ter a liberdade de decisão e responsabilidade com sua decisão, em contraposição à obediência imposta por outrem. Podemos pensar sobre qual seria o fundamento da política, “a força, o poder do mais forte ou a razão” para a obtenção de uma ordem política bem fundamentada.
A retórica irá trazer uma concepção de política que não é aquela de Hobbes, porque o problema hobbesiano é um problema que remete a uma concepção epistemológica de mundo que é cartesiana, elaborado em uma perspectiva niilista, onde você tem que ter o fundamento último pela ordem política, então, quando você erige o soberano, a soberania se impõe a todos, o que de uma forma diferente também notamos em Maquiavel, com a questão do problema eminente da natureza humana. Em Hobbes temos a possibilidade de uma “guerra de todos contra todos” que impõe o fundamento da ordem política dado por uma autoridade que detém o monopólio do uso da força.
Perelman, podemos dizer, está vinculado a uma tradição kantiana de filosofia política, e não hobbesiano-maquiavélica, ainda que o autor não se determine um kantiano propriamente. Descartes, por exemplo, fundamenta a ciência moderna numa racionalidade apodítica ou pretende o fazer, mas isto se mostra insuficiente quando se trata da fundamentação do campo político, deixando o autor para as autoridades vigentes esta fundamentação. Esta perspectiva de tentativa de busca do fundamento último nos leva a dois extremos, a crença de que se conseguirá fundamentar, sendo necessária toda uma transformação da realidade para adequar a este novo fundamento, ou partindo do pressuposto de que não é possível fundamentar, ficando assim tudo a cargo das autoridades estabelecidas, um típico dilema do mundo moderno, ou seja, fundamentar as questões de competência da racionalidade prática sem cair no dilema entre revolução absoluta ou conservadorismo absoluto. O problema no absolutismo, no sentido filosófico do termo, está em filosofias que buscam um fundamento absoluto das coisas. Em suma, a questão básica é, conforme o próprio autor traz:
Como distinguir o que é essencial do que não o é, o que importa do que é desejável? Eu me dava conta, desta forma, de que esta distinção não podia ser feita sem recorrer a juízos de valor, que nesta época me pareciam perfeitamente arbitrários e logicamente indeterminados. Como se pode raciocinar sobre valores? Existem métodos, racionalmente aceitáveis, que permitam preferir o bem ao mal, a justiça à injustiça, a democracia à ditadura? A resposta cética dos positivistas me havia deixado insatisfeito7.
Ainda mediante esta insatisfação, com as criticas positivistas e nesta sua fase de desenvolvimento de sua obra, ele nos traz outra questão quanto à preocupação com esta insuficiência para se obter a fundamentação dos juízos de valores:
É neste clima filosófico, em 1929, o mesmo ano que viu a publicação do Manifesto do Círculo de Viena, que meu próprio desenvolvimento filosófico iniciou. A Filosofia, como a disciplina complementar das ciências, foi reduzida à axiologia, ao estudo sistemático de julgamentos de valores, e foi exposta a críticas incessantes dos positivistas que viam a filosofia arrastada entre intuições incomunicáveis e expressão literária de emoções puramente subjetivas. A elaboração de uma filosofia baseada nas razões tornou-se impossível, porque era necessário escolher entre um método racional que esvaziava a filosofia de todo conteúdo e uma filosofia significante cujos métodos pareciam subjetivos e irracionais. Foi, no entanto, difícil ficar resignado ao positivismo que declarou como igualmente arbitrários todos os julgamentos de valores, quando todo nosso ser estava revoltado contra as ideologias totalitárias, que zombaram da dignidade humana e dos valores fundamentais de nossa civilização, liberdade e razão. Como nós nos livramos deste dilema caso seja sustentado que os métodos científicos, dedutivo ou indutivo, não nos permitem estabelecer julgamentos de valor e passar daquilo que é ao que deve ser?.8
Então, recapitulando, nós estamos na segunda fase do autor, e lemos citações extraídas de textos de um momento onde Perelman ainda não conhecia muito ainda a retórica em si, porém o problema da retórica já estava posto, já em 1940. A questão era ele (o autor) conhecer a tradição, ora não conhecida, o que foi acontecer mais para o final da década de 1940 e início da década de 1950.
Digamos que há uma revelação quando Perelman e Olbrechts-Tyteca se deparam com um livro de Jean Paulhan intitulado “Les Fleurs de Tarbes” ou “La terreur dans les lettres”, este que é um crítico literário que acabou utilizando do conhecimento de técnicas de retórica para fazer críticas literárias e ensaios, sendo considerado um importante literato francês que retomou a questão da retórica para tratar de problemas de literatura, sobretudo de estilística. Jean Paulhan, com este livro chamado “O Terror nas Letras”, coloca no final do livro excertos de retórica, de Brunetto Latini, que é um importante retórico do Renascimento. Perelman e Lucie leem isto e percebem uma identificação com esta obra, sendo uma espécie de iluminação, pois ambos, ao ler o problema que Paulhan coloca em sua obra, se dão conta que é justamente esta a tradição que eles necessitavam, e extraem ainda uma pequena parte do excerto de Brunetto Latini. Assim, eles concluem que a mais alta ciência do governo é a própria retórica clássica, a ciência do falar, porque se não tivesse havido a palavra, não haveria tido cidades, estabelecimentos de justiça e nem humana companhia, sendo a retórica a mais alta arte política, portanto. No entanto, isto não é tudo, pois Paulhan se utiliza de uma retórica típica do falar, e a retórica como arte política pode ser uma forma de resistência ao terrorismo das letras, sendo estranha, para Paulhan, nossa condição, que é onde o autor diz:
É estranha a nossa condição, que seja fácil encontrar razões para atores singulares, difícil para atos comuns […] é como se houvesse segredos para as ações banais, mas razões para os atos estranhos. E, verdadeiramente, vê-se que as pessoas ordinárias são misteriosas e inexplicáveis, como se elas pertencessem a uma sociedade secreta. Não existe ciência mais banal do que a retórica, é aí que eu gostaria de chegar. Tão banal quanto falar, porque ela é falar; tão banal quanto escrever, porque ela é escrever; porque ela é, com dificuldade, um pouco mais de atenção dada à escrita, ao falar. E eu não ensinarei nada a ninguém, se eu digo que não existe hoje nada de mais misterioso, e aparentemente inútil ou absurdo. No entanto, os historiadores admitem voluntariamente, desde os trabalhos de Christopher Dawson, que a Europa nasceu no dia em que pôde explicar, nas escolas, o Orador de Cícero10. Donde vem, com evidência, que, se a Europa nos dá hoje inquietação, é por falta de retórica. Enfim, qualquer que seja o segredo dos velhos retóricos, vale a pena sem dúvida redescobri-lo.11
Pois bem, de Brunetto Latini, Perelman chega a Marco Túlio Cicero e toda a tradição de retórica grega e romana, e eles, Perelman e Olbrechts-Tyteca, se debruçaram então na retórica até resgatar a tradição, sobretudo Aristóteles, que veremos mais adiante, acerca de sua arquitetônica, onde podemos falar que Aristóteles tem uma concepção de pluralidade de razões que está vinculada a uma ontologia, uma metafísica que concebe uma pluralidade do ser.
Temos vários escritos de Aristóteles, “Analíticos”, que trata da lógica, “Tópicos”, tratando da dialética, no sentido aristotélico do termo, ou seja, distinta da dialética hegeliana, “Retórica”, que estava esquecida, e, por fim, “Refutações Sofísticas”, que trata de argumentos sofísticos, sendo esta uma série de escritos aristotélicos onde infelizmente no mundo moderno o que predominou da obra de Aristóteles foi a Metafísica e os Analíticos, que consistem em estudos de lógica, ficando os escritos sobre Dialética e Retórica praticamente esquecidos. Assim, Perelman retoma esta parte da obra de Aristóteles sobre retórica e dialética, que trata de uma faceta da racionalidade humana, que é nossa racionalidade sublunar, a racionalidade de um mundo do provável, do indeterminado, em última instância, do que é plausível, sendo esta racionalidade uma racionalidade dialética e retórica, cuja diferença iremos ver no decorrer do curso, sendo elas duas artes distintas.
Portanto, já no final da década de 40 e 50 começam a surgir resultados, onde Perelman fala sobre Liberdade e Raciocínio (1949), entra em um debate entre Filosofias primeiras e regressivas (1949), que não será tratado neste programa, e fala sobre A Busca do Racional (1950), até sair o primeiro escrito que se trata de um esboço do Tratado da Argumentação, intitulado Lógica e Retórica (1950), escrito juntamente com sua assistente Lucie Olbrechts-Tyteca;12 A consumação da obra de Perelman e Lucie se dá, finalmente, em 1958, com a publicação do livro Tratado da Argumentação – A nova retórica.
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Bom, abordamos o início da vida intelectual do autor, a fase de produção de sua obra que trata sobre a nova retórica, porém, até então, não vimos o que vem a ser propriamente a Retórica e sua definição. Deixaremos, propositalmente, em suspenso esta questão para a próxima aula, onde trabalharemos o que vem a ser a retórica para Chaïm Perelman.
Ficaremos com a seguinte pergunta em suspenso: Afinal, o que vem a ser essa Retórica que é tão importante e cheia de virtudes que o professor está falando? Percebemos que há uma assimilação entre a argumentação e a retórica, onde a retórica vem a ser uma arte da argumentação (ou arte da persuasão ou convencimento, através do logos argumentativo). Muitas vezes entendemos a retórica como a arte da oratória, porém a retórica vai muito além da oratória oral, pois a própria escrita é também retórica, não sendo, todavia, a retórica reduzida apenas a uma arte de manipular, de se dar bem ou de influenciar outrem sem com isso estar bem fundamentado, associada a uma concepção negativa da sofística (o mau uso do logos), o que não corresponde aos sofistas históricos. Isto, essa visão negativa dos sofistas, se dá por causa de uma visão platônica da arte retórica, onde a mesma é vista como um cosmético. Platão diz que o retórico se assemelha à figura do cozinheiro que prepara uma comida aparentemente deliciosa e boa, mas sabendo que irá fazer mal à pessoa que a ingerir; assim, pela aparência ele convence a pessoa a comer esta comida por meio de um embelezamento (ele faz uma cosmética, no sentido etimológico do termo), onde, ao final, a pessoa é seduzida a fazer algo que não fará bem a ela mesma.
Terceira fase: da nova retórica à filosofia do direito
Por fim, temos a terceira fase da vida de Chaïm Perelman, que se trata dos desdobramentos da arte retórica, onde o autor vai se firmando como um filósofo do direito e da justiça, um dos mais importantes do século XX, fundando o Centro de Filosofia do Direito. Ele vai trabalhar em duas frentes, no Centro de Pesquisas de Lógica e no Centro de Pesquisas de Direito.
O Centro de Filosofia do Direito foi fundado juntamente com Paul Fourier e Henri Buck, na Universidade Livre de Bruxelas. Perelman começa a analisar um setor da argumentação que ele considera, digamos, o melhor vocacionado para a fundamentação da racionalidade retórica em uma análise do raciocínio jurídico. Para o Círculo de Viena, o setor de raciocínio mais vocacionado – melhor dizendo, o único – que pode dizer o que é razão é a própria lógica matemática, sendo, portanto, nesta perspectiva de fusão que se tem a fundamentação. Para a retórica, o setor mais vocacionado, por sua vez, é o direito, mas Perelman não se volta apenas ao estudo do direito, mas se debruça sobre argumentos filosóficos, pois a filosofia tem uma pretensão muito especial em relação às outras formas de argumentação, que é a busca da verdade (um consenso universal), e este tipo de argumento é muito interessante para se estudar, pois como se convence voltado para um consenso universal? Assim, se faz mister estudar que técnicas de argumentação os filósofos utilizam.
O direito se preocupa com a questão do justo, sendo suas melhores contribuições não o estudo das argumentações filosóficas, ainda que se utilize delas, mas suas fortes argumentações estão voltadas para as questões da justiça e da ética, sobre o que é bem ou mal. Perelman chega a sinalizar também que é importante se estudar argumentos teológicos monoteístas, isto para elucidar aspectos da argumentação que outros setores possíveis não trazem, que é a questão da prova, tanto do Ser primeiro, quanto da criação última das coisas, bem como suas derivações, podendo a retórica entrar com uma pretensão secular e laica de apreensão das formas de fundamentação teológicas, filosóficas, jurídicas, éticas, dentre outras.
Perelman contribui para a elaboração de um raciocínio jurídico e para elaboração de questões éticas de filosofia da justiça. No final da vida, se tornou um barão, recebendo este título de nobreza em 5 de Dezembro de 1983 pelas suas contribuições com relação à expansão da cultura belga e do conhecimento, tornando-se para o mundo um aristocrata, sinal de que ele conseguiu se tornar um bom retórico… Mas, logo após receber este título de nobreza, veio a falecer, fatalmente, em 22 de janeiro de 1984, na ocasião de um jantar com amigos em celebração do título de nobreza recebido, vítima de um ataque cardíaco, desaparecendo repentinamente do evento. A efeito de curiosidade, em seu epitáfio, está escrito uma leitura bíblica – Perelman era judeu, apesar de não ser praticante – como uma suma da razão forte de sua vida: “A Justiça, a Justiça seguirás…” (Deuteronômios, 16:20).
Considerações finais
Neste ponto do curso é possível assimilar o argumento formulado acerca da contribuição de Perelman sobre a teoria retórica, mediante o contexto de refundamentação da racionalidade que trabalhamos, sob um ponto de vista retórico, e não apenas da lógica formal, bem como conhecer um pouco de sua vida. Trabalharemos na próxima aula a distinção entre demonstração e argumentação, onde a demonstração é realizada pelo lógico, enquanto que o retórico se utiliza da argumentação, da arte retórica.
Podemos nos indagar sobre a contribuição de Lucie Olbrechts-Tyteca, sua assistente, acerca da elaboração desta nova retórica, uma mulher que não recebeu reconhecimento como pessoa por esta obra, se destacando exponencialmente apenas Perelman. Seria isso sexismo? Se fosse outro homem, seria dado a ele o mesmo reconhecimento conferido a Perelman com esta obra?13
Lucie não era judia, mas participou da resistência e já era amiga de Fela, esposa de Perelman, e ambas trabalharam juntas na escola de crianças judias. Possui formação em ciências sociais e era casada com um famoso estatístico belga, e como já vimos, era uma erudita em humanidades e literatura, deste modo contribuiu grandiosamente para a elaboração da teoria retórica, juntamente com o autor, onde Perelman compôs o projeto e o quadro conceitual, contribuindo Lucie, com sua erudição, com os exemplos para a obra. O que é claramente percebido quando nos debruçamos sobre os escritos de Perelman desde a década de 1950, justamente devido ao grande número de exemplos literários, filosóficos, políticos e sociológicos utilizados. Entretanto, Lucie publicou um livro que foi uma contribuição específica à Nova Retórica, intitulado “Sobre o Cômico do Discurso” (Le Comique du Discours), em 1974, além de ter sido uma pessoa que escreveu um dos melhores textos de introdução à retórica e história da nova retórica, que é “O Encontro com a Retórica”, um artigo em francês, um texto breve onde ela apresenta boa parte do que tratamos nesta primeira etapa do curso. Lucie, indubitavelmente, foi uma pessoa de muita competência e sabia tanto ou mais sobre retórica quanto Perelman, a questão é que Perelman teve uma contribuição maior no quadro conceitual, o que acabou lhe rendendo maiores créditos. Se as razões com relação à discrepância entre o reconhecimento com a obra foram sexistas, não seria possível afirmar por ora. Lucie, por sua vez, não buscou também este reconhecimento e renome, muito por uma questão de dinâmica intelectual, pois não teve posto acadêmico. Lucie Olbrechts-Tyteca vinha de uma família bem abastada e relacionada e optou por não ter relação acadêmica (posto institucional), podendo este ser um motivo pelo qual os créditos com a obra realizada em conjunto com Chaïm Perelman tenha concedido maior visibilidade ao autor.
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O Tratado da Argumentação se trata de um texto difícil, que requer certa paciência e dedicação para ser devidamente compreendido. Há uma outra obra escrita pelo autor no final de sua vida intitulada ‘’O Império Retórico’’ (L’Empire Rhétorique), que se trata basicamente de um resumo de sua obra principal. Perelman também teve publicada uma obra intitulada Ética e Direito, que trata sobre a parte de filosofia do direito de sua obra, consistindo em uma compilação de artigos, não um livro propriamente sistemático como O Tratado da Argumentação.
Passamos, portanto, pela apresentação do curso e pela introdução da obra e na sequência do programa veremos a diferença entre Lógica, Retórica, Dialética e Filosofia. Mergulharemos na estrutura trilógica orador-logos-auditório, Ethos-Logos-Pathos, trabalhando a fundamentação da nova retórica, conhecendo o processo argumentativo e as técnicas de argumentação. Dedicaremos uma aula sobre Argumentação e Ética e, por fim, concluiremos o curso abordando a questão dos elementos de sociologia da retórica.
Notas
* Transcrição de aula lecionada por André Magnelli no curso livre “A Nova Retórica de Chaïm Perelman”, realizada no dia 28 de junho de 2016 na Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Transcrição feita por Raphael Condessa. Observações laterais do professor foram passadas a notas de rodapé.
1 Não sei falar quais as razões de Dupréel ser hoje em dia desconsiderado, o que o levou a ficar um pouco esquecido. Foi a própria dinâmica acadêmica, talvez podemos supor que o pensamento belga não é muito central no mundo europeu, e que nossa influência é mais oriunda da França e Alemanha, sendo, portanto, seu esquecimento proveniente de uma dinâmica política, social e intelectual. Em sua morte, quem faz sua notícia bibliográfica é o próprio Chaïm Perelman, que sempre se declarou tributário deste autor.
2 Tiveram várias formas de resistência, e Perelman não chegou a ser penalizado mais severamente por ter adotado uma postura de “falso cooperador”, trabalhando na “zona cinza” entre fingir que estava colaborando e salvar judeus, e entre esta interface conseguiu liberar 4000 judeus, chegando este cálculo a ser informado por 11000, porém adotamos o cálculo mais baixo para não exacerbar este número.
3 Perelman preocupa-se mais com questões referentes à ética e à Justiça.
4 Referência ao Nazismo, e podemos nos estender também ao stalinismo,leninismo e a certo marxismo, que normalmente é baseado em ordens hierárquicas, que tem um comando central ou um líder de partido, e que a militância, seja de esquerda ou de direita, obedece ao comando.
5 Isto é, você pensa os prós e os contras para bem fundamentar uma decisão, pensando as possibilidades, e isto é dito por Aristóteles referente à vida política, pois assim você conseguirá fazer uma adesão ao que é mais bem fundamentado porque há uma propensão da razão humana para o que é tido como verdadeiro, assim, a falsidade será repelida porque você bem realizou este balanceamento entre os prós e contras, o que é justo e o que é injusto e o que é bom e o que é mau, por exemplo.
6 PERELMAN, 2009, p. 145-6.
7 PERELMAN, Ch. L’Empire Rhétorique, p.10.
8 PERELMAN, 1979, p. 55.
9 Do que a Retórica, a “arte de escrever”.
10 Então há a própria vinculação entre a origem da civilização europeia e a arte retórica, e a influência, naturalmente, da cultura romana e grega na formulação da civilização europeia, que atua na própria tradição cristã, isto a partir dos estudos, sobretudo, da oratória sagrada.
11 PAULHAN, Jean, Fleurs des Tarbes, p. 125.
12 Boa parte destes artigos se encontram em uma obra intitulada “Retóricas”, escritos desde o final da década de 40 até o final da vida do autor.
13 Há estudos acerca desta questão, sobre o motivo de Lucie não ter recebido o devido reconhecimento, assim como Perelman recebera, porém são artigos publicados em revistas americanas, que por tradição ficam em bases de dados bem restritas, artigos este que falam sobre qual foi a contribuição da assistente de Perelman acerca do Tratado da Argumentação.

É idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
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