Pontos de leitura. As origens da arte de bem-falar no mundo grego e a Sofística – por Rita Codá

Começamos nossa saga épica pela história da retórica nesta semana, com o início do curso Retórica Clássica, com a professora Rita Codá. Neste contexto, publicamos aqui no Pontos de Leitura um texto de introdução ao nascimento da arte retórica na Grécia, escrito por Rita Codá, enquanto material de estudos do conteúdo da primeira aula.

Desejamos uma ótima leitura.

A. M.

Pontos de Leitura, 03 de junho de 2021



As origens da arte de bem-falar
no mundo grego e a Sofística

A Retórica, como arte de bem-dizer e de persuadir, conheceu três gêneros: o demonstrativo, o deliberativo e o judiciário. Estes três gêneros encerram e compreendem tudo o que se passa entre os homens no comércio da vida civil. Mas nada assegurava aos clássicos que ela não pudesse também estar a serviço de uma causa imoral ou criminosa. Destarte, os manuais de retórica, além da definição de retórica, davam algumas propostas para se obter um bom orador: um homem de bem, conhecedor da arte oratória, que se ponha ao serviço de fazer triunfar a verdade e a justiça. Assim, a virtude do orador era a principal condição da eloquência. “Vir bonus dicendi peritus”: ”: 1) O orador convencerá pelos argumentos se, para bem dizer, ele começou por bem pensar; 2) ele agradará pelos modos se, para bem pensar, ele começou por bem viver; 3) o orador suscitará emoções se, antes de querer comunicar a emoção ao auditório, ele começou por estar ele próprio emocionado. Na retórica clássica, a gramática, a lógica, a moral e a psicologia estão interligadas. Esta interrelação foi estudado por Aristóteles e recebeu uma tríplice designação: éthos, phátos e logos.

A pergunta “Quando começa a retórica?” não tem muito sentido porque desde que os homens dominaram a sua linguagem, há a oratória. Outra coisa é perguntar quando se estuda e se ensina sistematicamente esta arte de expressar-se bem, em público.

Estudos etnológicos e históricos mostram que artes oratórias se desenvolveram em diferentes civilizações, mas sem apresentar a complexidade de classificação como a dos gregos e dos romanos: China; culturas orais da África e da Austrália; civilização egípcia; judaísmo (Yehoshua Gitay analisou os modos de argumentação próprios do judaísmo); o “Kavyalankara” ou a ciência dos ornamentos poéticos que estão nos poemas sânscritos com o nome de “kavya”; tudo isso pode se aparentar à elocutio, mas sem a complexidade daquela dos gregos e depois dos romanos. Sendo assim, a retórica é uma disciplina de tradição europeia, que o direito, a política e a oratória em si exportaram para o mundo.

A honra de criadores da arte retórica (técnica retórica) deve-se aos gregos, pois nenhum outro povo na Antiguidade, reconheceu que a linguagem humana é o maior e único diferencial entre o homem e os demais animais, e puseram-se em busca daquilo que consideravam a totalidade do humano. E essa totalidade se fundamentava justamente em dois filões que se tornaram a maior característica da cultura grega: “[…] ser capaz de dizer bons discursos e pôr em prática grandes ações” (μύθων τε ρητῆρ` ἔμεναι τρηκτῆρά τε ἔργων) (Ilíada, canto IX, v. 443). Neste hexâmetro homérico, não foi sem razão que os gregos viram e conceberam a mais abrangente formulação do ideal de formação do homem: o domínio da palavra e a excelência em suas ações significavam a soberania do espírito. Neste mesmo canto IX da Ilíada, Homero nos mostra a outra virtude do guerreiro (dos aristocratas): todos eles proferem discursos. Nestor, o mais velho dentre todos, e Aquiles, o mais jovem, discursam três vezes, no mesmo canto IX. Todos tentam persuadir Agamêmnon a não capitular e continuar lutando contra os troianos. Vê-se, aí, que a forma mais grandiosa da expressão oral se obtém quando um homem, só com sua palavra, domina uma multidão, a persuade, a arrasta ou paralisa. Isso é a oratória, a eloquência, a arte retórica.

Resume-se que os gregos fizeram da arte oratória a sua égide, como já vimos na Ilíada de Homero, mas a criação de uma técnica para tornar essa característica humana em excelência e prerrogativa do homem e do cidadão (polítes) nasceu na Sicília, Magna Grécia, após a expulsão dos tiranos, por volta de 465 a.C. E sua origem não é literária, mas sim judiciária. Após uma guerra civil entre cidadãos e tiranos, estes usurpadores das terras campesinas, surgem inúmeros conflitos judiciários, pois os camponeses queriam a anulação da expropriação de suas terras. Não havia, no entanto, advogados, mas era preciso dar aos litigantes um meio de defender a sua causa.

Córax e Tísias: a pré-história da retórica jurídica

Eis que surge um certo cidadão chamado Córax, discípulo do filósofo Empédocles, junto com seu aluno Tísias, ambos naturais da Sicília, Magna Grécia, e publicam um pequeno manual de arte oratória (tekhné rhetoriké), com preceitos práticos para uso dos cidadãos que precisavam recorrer à justiça. O próprio Córax define essa técnica como “criadora de persuasão”. E como não havia advogados, os logógrafos (escrevedores de discursos), espécie de escrivães públicos, redigiam as queixas para que cada litigante lesse diante do tribunal. Córax foi o inventor do argumento que leva o seu nome – o córax –, que consiste em ajudar os defensores das piores causas, afirmando que uma coisa é inverossímil por ser verossímil demais. Córax e Tísias valorizam mais a probabilidade, o verossímil, que as evidências.

– Argumento simples: todas as evidências estão contra ele.

– Córax 1: Se ele sabia que seria o primeiro suspeito, logo não seria verossímil que cometesse o crime.

– Córax 2: Mas, justamente por isso, ele poderia cometê-lo, sabendo que não suspeitariam dele.

Conclusão: O pleiteante insinua que os verdadeiros criminosos aproveitam-se da verossimilhança para cometer impunemente o ato criminoso. Nesse caso, o córax pode se voltar contra seu próprio autor, por achar suspeito demais que dele suspeitassem.

Sendo assim, a retórica judiciária de Córax e Tísias não argumenta a partir do verdadeiro, mas a partir do verossímil (eikos). E isso é o fundamento da retórica judiciária: se se conhecesse a verdade, não haveria razão para o judiciário.

A sofística

Os sofistas (“intelectuais”) eram, em primeiro lugar, homens práticos, rétores itinerante que davam cursos de retórica, e eram provenientes de diversas culturas – Protágoras de Abdera, na Trácia, Górgias de Leontino, no sul da Sicília (Magna Grécia), Trasímaco de Calcedônia. “Eles se endereçavam a quem quisesse adquirir a superioridade requisitada para triunfar na arena política”, e a Atenas de Péricles favorecia o pôr-em-prática das habilidades desses intelectuais. A educação aristocrática dos gregos não os preparou para as novas condições democráticas de vida. Não houve capacitação teórica nem prática nas áreas da religião, da gramática e da interpretação dos poetas. Os sofistas se moveram nesse vazio cultural e seus interesses práticos por ensinar supriram uma urgente necessidade. Tornaram-se, assim, professores e foram a principal causa da nova educação. Professaram, sobretudo, a retórica do discurso persuasivo. O poder de persuasão se havia convertido em uma necessidade política na Atenas democrática para aqueles que aspiravam a postos na política da Cidade-Estado. Devido ao amplo conhecimento de gramática e informação sobre diversas culturas, tanto como a ampla experiência oriunda de suas viagens e do exercício da docência em diversos lugares, os sofistas possuíam o necessário para adestrar os novos cidadãos atenienses. O discurso claro e o poder de persuasão eram essencialmente indispensáveis numa assembleia popular onde resultaria desastroso o debate entre oradores inábeis, incapazes de expor as próprias ideias ou descobrir os erros do oponente.

A retórica se converteu numa faca de dois gumes, que podia ser usada tanto para o bem quanto para o mal. Essa capacidade ambivalente da retórica foi amplamente facilitada pelo ceticismo e pelo relativismo dos sofistas, fato que os tornou suspeitos. Eles cobravam caro por seus ensinamentos e só os ricos podiam pagar-lhes. Sócrates estudou com os sofistas mas, como era pobre, fez apenas um breve curso. Platão os acusa de “traficantes de mercadoria espiritual”. Protágoras é considerado o “pai da erística”, a arte da controvérsia; Górgias era conhecido pelo trabalho do estilo em seus textos epidícticos, desenvolve uma prosa de arte para substituir a métrica e a musicalidade do verso e inaugura o gênero epídictico (estilo demonstrativo que emprega a ostentação).

O ensino dos sofistas, de resto, se fundamenta em quatro métodos: as leituras públicas de discursos, as sessões de improvisação de um tema qualquer, a crítica dos poetas (Homero e Hesíodo) e a erística (arte da discussão).

Górgias, inspirado nos pitagóricos (poder encantatório das palavras), pronuncia um discurso que encanta os atenienses, com um poder extremamente literário, portanto figurativo, de sua eloquência. Ele sabia de que tipo de plateia se tratava, daí a adequação oratória (psicagogia) ao auditório. Até então, os gregos só conheciam o emprego de figuras de estilo na Poética (poesias épica, lírica e dramática). A prosa restringia-se a transcrever a linguagem oral comum. É Górgias quem introduz o discurso de aparato ou epidíctico, ou seja, elogio público e, para esse fim, cria uma prosa eloquente, eivada de figuras, que irradia uma erudição jamais vista no âmbito da oratória. O ritmo está presente como se se tratasse de poesia, de versos literários. São, por um lado, figuras de palavras: assonância, rimas, paronomásias, ritmo da frase; por outro, figuras de sentido e pensamento: perífrases, metáforas, antíteses. Vejamos aqui um fragmento do Elogio fúnebre aos heróis atenienses: “Assim, apesar de terem desaparecido, o ardor deles com eles não morreu, porém, imortal, vive em corpos não imortais, ainda que eles não vivam mais”. No famoso Elogio de Helena, vemos a técnica sofistica de Gógias:

Em mais de um homem, ela despertou mais de um desejo amoroso; só por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontáveis corpos, uma multidão de guerreiros… […] O discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento material de pequenez extrema e totalmente invisível alça à plenitude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo, dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade
(Górgias, frag. In: Pré-Socráticos).

Helena fora arrebatada à força: ou decreto dos deuses e do destino, ou foi persuadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Em nenhum desses casos ela estava livre, em todos fora subjugada por uma força maior. Conclui-se que a retórica de Górgias é bastante sofística. Helena não partiu por espontânea vontade. Foi o poder encantatório das palavras de Páris Alexandre. Apoteose do poder do lógos.

Como todos os sofistas, Górgias, Protágoras, Hípias de Élis (que pretendia saber tudo), Pródicos de Céos (um dos primeiros a estudar a linguagem e a gramática) Crítias etc, como professores ambulantes, cobravam por cada aula o valor de 100 minas, o equivalente ao salário diário de dez mil operários.

Qual a relação entre retórica e sofística?

Não se pode negar que os sofistas criaram uma arte do discurso persuasivo – retórica, como ensino sistemático que se fundamentava numa visão de mundo relativista, em que a verdade nada mais é que um acordo entre interlocutores, que resulta da discussão. Daí a importância do kairós, adequação do discurso ao momento, a alma de qualquer retórica viva. O mundo do sofista é um mundo sem verdade, um mundo sem realidade objetiva; o discurso sofista não tem nenhum critério a não ser o próprio sucesso: a aptidão para convencer pela aparência de lógica e pelo encanto do estilo. A única ciência possível é a do discurso, a retórica. A doxa (opinião) é o que vale, não a verdade e o verdadeiro conhecimento. A única ciência possível é a do discurso, a retórica, que equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem réplica. E não está mais devotada ao saber, mas ao poder, ao saber fazer a serviço do poder.

Protágoras de Abdera (Trácia) é o sofista mais destacado. De acordo com Platão, ele foi o verdadeiro sofista, pois não se preocupava com a ordem do saber, mas sim com os efeitos do seu saber sobre os demais. Ensinava eloquência e filosofia e ganhava quantias fabulosas. Ele é o verdadeiro elo entre a sofística e a retórica, e traz a retórica para Atenas, com a finalidade de assegurar a superioridade à causa mais fraca, pois os homens agem mais pela opinião do que pelo conhecimento. E tão logo chegou à Pólis ateniense, fez a sua profissão de fé agnóstica: “Quanto aos deuses, não estou em condições de saber se existem ou se não existem, nem mesmo o que são”. Por esta assertiva, ele foi condenado à morte, mas livrou-se, fugindo. Mas não se pode negar que foi um autor enciclopédico e o precursor do gramático, no mundo grego, assim como da erística (controvérsia) na arte oratória: para Protágoras qualquer assunto pode ser sustentado ou refutado, e para isso recorre aos mais abjetos sofismas: “Pode-se ser branco e não branco ao mesmo tempo, posto que o etíope é negro (na pele) e branco nos dentes” (apud Olivier Reboul, Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.7).

Eis um trecho emblemático de O elogio de Helena, de Górgias, que sintetiza a retórica sofística: “Quando as pessoas não têm memória do passado, visão do presente nem adivinhação do futuro, o discurso enganoso tem todas as facilidades”. Com a sofística, a arte retórica torna-se uma tirana despótica e ilegítima. A tentativa, doravante, é salvar a arte oratória da sofística. Levantam-se, com todas as armas possíveis contra os sofistas, Platão e Isócrates.

Rita Codá é doutora (PhD) em Literatura Comparada (Lingua e Literatura Gregas) pela UFMG; mestra em Literatura Brasileira e Língua Grega Professora Universitária; Professora Aposentada do Colégio Pedro II (IFTTEC) e membro da Academia Luso-Brasileira de Letras (Cadeira n°. 38)


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