Fios de Tempo. “Muita cachaça e nada de oração” – por Nelson Lellis

As redes se divertiram bastante sobre a declaração do Papa Francisco de que no Brasil estamos perdidos porque “tem muita cachaça e nada de oração”. Um momento de descontração, para rir de nós mesmos em meio ao pesadelo no qual mergulhamos com afinco. Mas… o que mais podemos pensar a respeito desta frase? O que é esta salvação que se espera? Há pouca oração? Há muita cachaça? O que dizem a cachaça e a oração sobre o país que nós vivemos? Como a forma pela qual a esquerda recebe este tipo de frase diz muito sobre o mau passo em que está?

Nelson Lellis reflete despretensiosamente sobre tais perguntas, em boa prosa, fazendo um exercício próprio do pensamento crítico, que extrai de insuspeitas frases um pretexto para diagnosticar o social.

Desejo uma ótima leitura.

A. M.
Fios do Tempo, 28 de maio de 2021



“Muita cachaça e nada de oração” 
Breve reflexão a partir da declaração do papa

Porciúncula, 28 de maio de 2021

No final de 2019, o Datafolha divulgou que no Brasil havia cerca de 50% de católicos, 31% de evangélicos e 10% sem religião (o que não significa obrigatoriamente ateus). Em 2014, os católicos eram 61% e mais de 80% dos brasileiros foram criados neste segmento. A configuração da Igreja Católica no Brasil é plural devido ao encontro com várias outras matrizes religiosas, como o espiritismo, o candomblé, as igrejas evangélicas. Portanto, é fato que o país goza de uma presença religiosa exponencial e, consequentemente, tem rituais de oração em montes, templos, casas e até mesmo em espaços marcadamente políticos, como em câmara de vereadores, de deputados e de senadores, em reuniões ministeriais no Palácio do Planalto com o presidente da república etc.

Não poucas vezes tenho dito e escrito (na Revista Senso e pelo Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades), por exemplo, sobre as campanhas de oração de igrejas pela nação – óbvio!, com claras intenções políticas.

Por outro lado, em 2013, a Unifesp divulgou uma pesquisa (do 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas [Lenad]) em que metade dos brasileiros consome bebida alcoólica e 54% das bebidas comercializadas são consumidas por 20% das pessoas que bebem. À época, constatou-se que 11,7 milhões de brasileiros eram dependentes do álcool. Segundo o organizador da pesquisa, o professor Ronaldo Laranjeira, “apesar de 50% não consumirem bebida alcoólica, os que bebem, bebem de maneira abusiva”. 

Somada às excêntricas ações do presente (des)governo (sentença de minha própria conta e risco), a pandemia possibilitou o aumento de vendas online de bebidas alcoólicas em 93,9%. Alguns países baniram a bebida durante a pandemia, enquanto outros defenderam dizendo ser um “bem essencial” neste momento. De uma forma ou de outra, o mundo não nos permite a sobriedade o tempo todo. E esse ópio, claro, pode ser obtido ou na religião, ou na bebida alcoólica, ou nos diversos tipos de arte… 

Mas a sobriedade eterna é impossível. Presumo que as anestesias também ajudam a pensar isso.

E no dia 26 de maio viralizou um pequeno vídeo em que o padre João Paulo Souto Victor, que viajou para Roma a fim de realizar seu mestrado sobre a influência das redes sociais na formação da consciência cristã, pede ao papa para que reze pelo Brasil. Ao que o papa, em tom descontraído (como classificou a mídia brasileira e propagado pela esquerda) responde: “Vocês não têm salvação. Muita cachaça e nada de oração”. O padre Carlos Henrique, que também estava presente, ressaltou: “De uma autoridade se espera formalidade. Ele [o papa] desconstrói isso para mostrar que é próximo. Que é muito próximo do seu povo”, e que o papa disse, após a brincadeira: “Eu rezo sempre pelo Brasil, tenho um carinho grande pelos brasileiros”. E que depois teria traçado o sinal da cruz sobre a cabeça do padre dando-lhe a bênção.

Recebi o vídeo por diferentes grupos apenas com a frase do papa. E o que se analisa é apenas a “brincadeira”. A maioria dos contatos enfatizando o contexto “descontraído”. O Jornal Nacional mostrou o vídeo, mas não comentou. Logo veio o intervalo comercial. Fez bem não comentar. A grande maioria dos contatos que tenho entre cristãos que se classificam progressistas disseminaram em suas redes e grupos de Whatsapp: “tom descontraído” do papa. 

Ok. Algumas considerações a partir da declaração do papa. E faço isso mirando muito mais o contexto brasileiro que a fala “descontraída” do santo padre.

1. “Vocês não têm salvação”. Essa frase denota que: a ausência de oração não salva. Infelizmente o cristianismo interpretou “salvação” muito distante da “salvação” crida no Primeiro Testamento. Lá, judeus criam na salvação (do verbo hebraico natzal) com sentido de arrancar o sujeito de perigo mortal. Esse tipo de salvação só se alcança com ação política. O atual governo buscou alianças com o deus dos católicos e evangélicos (tornado um diabo para muitos outros) promovendo ações, campanhas e até mesmo duas (2020 e 2021) convocações de oração e jejum pela nação. O problema é que as pessoas ignoram a consciência política, suas responsabilidades de, após participarem democraticamente das eleições, continuarem acompanhando seus candidatos eleitos e cobrando as promessas de campanha, além de cobrar dos órgãos responsáveis melhores serviços em suas comunidades, cidades… Como eles não fazem isso, voltam-se para as reuniões de oração para que haja, no apelo religioso, alguma mudança estrutural na saúde, educação, segurança… Ora, nem um deus não fará isso.

O país não tem salvação porque não ora… O brasileiro ora – e muito! Até demais!… mas a grande maioria não faz força para arrancar pessoas de perigo mortal. Esse é o problema. O sujeito enche a cara desse ópio até que seus olhos se fechem completamente para a realidade social. Como defende o cientista político Cláudio Couto, “fora da política não há salvação”. A questão, portanto, e aqui não é em tom descontraído, é que falta oxigênio e UTI’s em determinados hospitais e cidades, falta vacina, falta política pública. É por isso que não há salvação. Poucos são arrancados da enorme boca da morte. Estamos avançando para meio milhão de óbitos por Covid-19 e a CPI (da Covid) em pleno funcionamento tem demonstrado como o atual governo rejeitou ofertas de vacinas, promoveu aglomerações, ofereceu informações falsas sobre medicamentos, dentre outras tantas irresponsabilidades. Estados nacionais, como Manaus, já vivenciaram colapsos em hospitais por falta de oxigênio. Por causa desses movimentos de ausência política é que a salvação não arranca pessoas do perigo de morte. Antes, as ludibriam com promessas de salvação eterna (nisso sim são bons políticos) ignorando suas responsabilidades com as salvações na terra.

2. “Muita cachaça, nada de oração”. Tanto o álcool quanto a oração são maneiras de se fugir da realidade. Sem reduzi-los a isso, é claro. Inebriam-se e saem de si em experiências distintas. Possivelmente, muitos bebem porque a oração já não faz mais sentido; outros, oram para não serem tentados pelo álcool. A verdade é que ninguém consegue viver sóbrio o tempo todo. O papa sabe disso. O clero, em suas reuniões “descontraídas”, sabe disso. O próprio livro do Eclesiastes ensina sobre isso diante da brevidade da vida: “[…] não existe nada melhor do que comer, beber e se alegrar no trabalho que realiza” (Ec 2,24); “[…] vai e come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com o coração contente (Ec 9,7)”. Talvez o mais enfático seja este: “Portanto aconselho que se desfrute o melhor que a vida pode proporcionar, porquanto debaixo do sol não existe nada mais feliz para o ser humano do que simplesmente: comer, beber e alegrar-se. Essa é a felicidade que nos ajudará a superar os difíceis dias de trabalho durante todo o tempo de vida que Deus nos conceder debaixo do sol” (Ec 8,15). Para o(s) autor(es) do livro (porque não é Salomão, sabemos disso), comer o pão e beber o vinho ajudam a superar os dias difíceis. Porque a vida em si não é indolor e nem contém automedicação. O autor não aconselha oração. Aconselha pão e vinho. Pão e vinho!

Estamos falando agora de pão e vinho em um país que retornou ao mapa da fome. Em abril de 2021, divulgou-se a pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia (com sede na Universidade Livre de Berlim), em que mais de 125 milhões de brasileiros sofreram insegurança alimentar na pandemia. Sobra a cachaça!, que trata-se de uma bebida barata, que não serve apenas para fazer caipirinha e vender por valores exorbitantes para elites e turistas, mas também para enganar a fome até viciar e esquecer-se da comida. O Brasil não distribui corretamente sua renda. Não tem pão para todo mundo. Não tem vinho para brindar com os amigos apenas para saborear um pouco da breve vida e anestesiar o cansaço do trabalho. Mas temos desemprego. No dia 27 de maio de 2021, o IBGE divulgou (Pnad Contínua) que o Brasil atingiu taxa de desemprego de 14,7% no primeiro trimestre deste ano. No quarto trimestre de 2020 era de 13,9% enquanto que no primeiro trimestre foi de 12,2%. Ou seja, batemos o triste recorde neste ano. 

3. “Tom descontraído”. Cristãos que se entendem progressistas não admitem o infeliz recorte acerca da declaração do papa e seguem querendo “salvar” sua imagem a partir – única e exclusivamente – daquela frase, do papa que é pop, que tem em seu histórico declarações em favor dos direitos humanos e em favor dos pobres. A mídia divulgou que o papa disse o que disse “em tom descontraído”. Os militantes cristãos de esquerda gostaram da ideia e embarcaram nessa classificação. Talvez a justificativa seja essa: que ao assumirem a crítica, poderiam minar mais uma referência aparentemente associada às pautas defendidas pela esquerda.

A política tem dessas coisas. O jogo possibilita “minar” o outro. E a esquerda já não possui mais tantas referências nesse jogo. As que possui, estão divididas. Mas trata-se de um grupo que ora e bebe. Enquanto que cristãos conservadores só oram (e se bebem, o fazem às escondidas, sob os panos, hipocritamente, enquanto condenam outros). Neste aspecto, estes estão em desvantagem. Os progressistas não assumem que, com tal discurso, de “salvarem” a imagem do papa, estão caindo na mesma cartilha tradicional dos conservadores: não podemos criticar nossos “modelos”. E assim, vamos criando um novo monstro no país que, se Lula vencer as eleições em 2022, veremos acontecer: o deus dos cristãos progressistas assumindo o poder. Daí, meus caros e minhas caras, haja cachaça!

Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).

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