Trazemos hoje no Fios do Tempo mais um artigo de Nelson Lellis com uma análise do cenário político-religioso contemporâneo. Diante da convocação de mais um jejum nacional, feita agora em meio a uma crise econômica ainda mais profunda, Nelson revisita a questão interpelando-nos de forma renovada: por que e para que um Jejum? O que significa remeter tal “convocação aos cristãos” ao Jejum do rei Josafá? Por que não relembrar a visão religiosa do jejum em Isaías?
Sob a atmosfera do sagrado, brinca-se com a desgraça alheia na forma do “seu rei mandou dizer…”. Este texto me faz lembrar do palimpsesto do amor de Gabriel Restrepo, que publicamos no Pontos de Leitura no final de 2020. Em uma rápida viagem, podemos reconhecer o quanto a “simonia” atravessa os séculos e povoa nossas terras; mas percebemos também que, à revelia dos que em seu nome negociam e que jazerão no sepulcro da história, as sedes de amor (e justiça) ultrapassam os templos e transpassam os tempos.
Desejamos uma ótima leitura.
A. M.
Fios do Tempo, 22 de março de 2021

A fome dos desgraçados e
o jejum dos “sagrados”
Porciúncula, 19 de março de 2021
Às portas de uma estagflação, conforme análise do economista Samuel Pessôa (FGV), o Brasil registra um aumento da taxa Selic de 0,75 para 2,75%. Tendo o teto da inflação de 5,25%, nos últimos doze meses acumulou-se de inflação o número de 5,2%. Durante esse período, o óleo de soja teve um aumento de 90%, enquanto o preço do arroz subiu 70% e o feijão 60%. Em 18 anos é o maior aumento nos alimentos que ocorre no país.
Segundo o IBGE, o 4º semestre de 2020 registrou no Brasil os seguintes números:
- Desempregados: 13,9 milhões
- Taxa de desemprego (desocupação): 12,4%
- Desalentados: 5,8 milhões
- Taxa de subutilização: 28,7%
Em setembro/2020, o número de desempregados era de 14,6%, representando 14,1 milhões de pessoas, segundo os dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal. A uberização do trabalho e a regulação no capitalismo contemporâneo, de acordo com as pesquisas de Ricardo Antunes (IFCH – Unicamp) e Vitor Filgueiras (Unicamp), demonstram, juntamente com os dados divulgados pelo IBGE que, embora o número de desempregados tenha diminuído sensivelmente, o trabalho informal através de aplicativos aumentou consideravelmente. Neste campo, segundo os sociólogos em tela:
A negação do assalariamento é elemento central da estratégia empresarial, pois, sob a aparência de maior autonomia (eufemismo para burlar o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho para recrudescer a exploração e sua sujeição.
Ou seja, essas “novas formas de trabalho” (sem regulação) legitima e incentiva tanto a exploração do trabalho quanto a precarização de suas condições. Em janeiro de 2021, quase 40 milhões de pessoas foram computadas em condições de extrema pobreza no Brasil, cuja renda per capita era de até 89 reais mensais.
Esses números não denunciam apenas uma dificuldade dos últimos anos de governo do PT desde a crise financeira de 2008. Aliás, Lula tem seus méritos, mas não protagoniza sozinho os anos em que o país conseguiu respirar enquanto alguns países da Europa foram diretamente atingidos. Lula transformou a população pobre em consumidora. A economia girou. A crise gerada pela pandemia da Covid-19 traz outros elementos como a própria uberização do trabalho. Com a Reforma Trabalhista (2017), a relação entre empregador e funcionário beneficiou ainda mais o CNPJ em detrimento do CPF. Todo esse cenário não deixa muitas alternativas para alguém que precisa sustentar-se ou sustentar sua toda uma família.
É cômodo o home office, todavia, o sujeito uberizado “precisa” burlar determinados decretos e leis a fim de trazer algo para sua dispensa. O discurso de Bolsonaro encaixa-se perfeitamente nesse grupo que não tem um leque de escolhas, um cardápio minimamente digno para apontar o dedo e decidir. Óbvio, o atual presidente não está preocupado com a dispensa do trabalhador, e sim, com a economia girando. Se estivesse preocupado teria aceito desde o início o auxílio emergencial de 600 reais e não ter, para o ano de 2021, assinado uma Medida Provisória cujo auxílio será pago a partir de abril com valores de 150, 250 ou 375 reais (o que dependerá da família). Nesta segunda etapa, serão beneficiadas 45,6 milhões de pessoas. Ano passado foram 68,2 milhões de brasileiros assistidos. O valor da cesta básica varia de acordo com os estados, mas uma breve pesquisa na internet, é possível encontrar preços que vão de 69 a 695 reais.
Soma-se tudo isso com o cenário de 2018, em que já tínhamos cerca de 10 milhões de pessoas em situação de fome no país – isso após a desvalorização do salário e da distribuição de renda. Em 2019 o Brasil retornou para o mapa da fome. Em janeiro desse ano, já eram 15 milhões em situação de fome. A projeção para 2021 é de 20 milhões, conforme o economista Francisco Menezes, que é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e colaborador de ActionAid.
Em época de miséria crescente, os gastos com alimentos do governo federal teve um decréscimo de R$ 3.668.929.752,21 (2019) para R$ 2.816.459.947,95 (2020). Seria motivo para reconhecer o esforço e parabenizar não fossem gastos bilhões com produtos como leite condensado, achocolatado, bombom, chocolate, molho de pimenta… o único item que obteve aumento. Molho de pimenta! De R$ 10.757.167,88 (2019) para R$ 11.937.579,45 (2020).
No dia 17 de março deste ano, Bolsonaro orientou a liderança do governo no Congresso para que revogasse o veto que impedia o perdão de dívidas tributárias contraídas por templos religiosos. Assim ocorreu em sessão deliberativa da Câmara e confirmada posteriormente pelo Senado. O artigo vetado pelo presidente concede isenção às igrejas no que se refere tanto ao pagamento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido quanto às multas por não quitação do tributo. Segundo o Ministério da Economia, o perdão representa uma renúncia de R$ 1,4 bi entre os anos 2021 e 2024. Sim, é uma estratégia política. Desde o início. Inegavelmente. E como entrelaçar ainda mais esse apoio religioso? A partir de ritos religiosos que busquem legitimar seu “zelo” e “preocupação” com o povo brasileiro, bem como sua proximidade com evangélicos.

Neste contexto de pandemia e de estratégias políticas, Bolsonaro conclama, pela segunda vez em seu governo, um jejum nacional em favor do Brasil. A primeira conclamação, já refletida no Fios do Tempo, ocorreu durante uma entrevista para a rádio Jovem Pan em 2 abril de 2020:
Sou católico e minha esposa, evangélica. É um pedido dessas pessoas. Estou pedindo um dia de jejum para quem tem fé. Então, a gente vai, brevemente, com os pastores, padres e religiosos anunciar. Pedir um dia de jejum para todo o povo brasileiro, em nome, obviamente, de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível.
Um dia após o perdão da dívida para as igrejas, um grupo de líderes evangélicos foi recebido no Palácio do Planalto por Bolsonaro para discutirem sobre o fechamento dos templos por causa do avanço diário de vítimas da pandemia. O deputado federal e pastor Marco Feliciano (PSC) chegou a gravar um vídeo afirmando que a igreja está sendo “perseguida” nestes tempos por determinados políticos. Um vídeo cheio de notícias falsas e sensacionalismo. Como diz o Dj Guuga: “O golpe tá aí. Cai quem quer”.
Outro personagem que gravou vídeo após a reunião com o presidente é o pastor Silas Malafaia, sempre presente nas redes sociais quando se trata de defender Bolsonaro. No vídeo, faz-se o convite ao jejum nacional agendado para o dia 29 de março. O apóstolo César Augusto (fundador da igreja Fonte da Vida) inicia o vídeo citando uma narrativa do Antigo Testamento: “Como Josafá fez chamando todo o Israel para jejuar…” E Malafaia complementa: “… Nós queremos chamar todo o povo de Deus, todas as pessoas cristãs que queiram fazer um jejum em favor da nação brasileira… para que haja paz, para que haja prosperidade na nossa nação…”. Ao término, Bolsonaro coloca-se na primeira pessoa do plural (como forma de identificação): “Agradecemos a todos que nesse jejum estão fazendo pelo futuro do nosso Brasil”.
Uma questão. Quem é Josafá? Na narrativa bíblica, descendente do sanguinário rei Davi. Josafá foi rei e significa “Jeová tem julgado”. Diante da ameaça dos exércitos amonitas e moabitas, Josafá conclama um jejum em todas as cidades de Judá. Trata-se de um evento bélico, reunindo exércitos contra exércitos. O quadro é pintado de sangue e dele caem os cadáveres aos sons de louvores a Jeová.
Assim “como” Josafá conclamou o povo a jejuar com a finalidade de vencer os exércitos com a intervenção divina, líderes evangélicos e o presidente da república apregoam o jejum no país da fome. Era e é um jejum descabido, de barganhas. Lá, buscava-se intervenção divina para matar. Aqui, os que jejuarão também terão sangue nas mãos. Agendado para o dia 29 de março, uma segunda-feira. Quem jejuaria segunda? Um trabalhador uberizado cristão ou um líder religioso em home office com a boca do gazofilácio aberta em sua sala?
Não seria o tempo de perguntar há quanto tempo os brasileiros, cristãos ou não, estão em jejum sem direito à escolha?
Um jejum em favor da nação? Uma nação que Deus está acima de tudo? Um Deus cego que não enxerga a dor no estômago do miserável e que carece desesperadamente de um sacrifício de continuar não comendo para, enfim, abençoar a nação? O que é esse Deus? Esse Deus, e aqui devemos tudo a L. Feuerbach, é a imagem de Bolsonaro, Malafaia e cia. Deus dirá o que esse grupo disser. Basta lembrarmos da brincadeira seu rei mandou… Esse rei que julga é Josafá. É gente. O jejum é só um meio para tornar sagrado o ato da guerra. Esse Deus que espera pelo jejum no Brasil, ou seja, pelo total engajamento de cristãos nessa corrente, tem nome de Messias, mas já declarou que não faz milagres. É um jejum para identificação política. Não tem nenhuma conotação religiosa. Ainda que tivesse, sem valor.
Um jejum para que haja paz? Que paz? Pax romana? Paz bolsonariana conquistada através das armas, da coerção violenta da polícia nas favelas com pessoas negras? Paz que se define a partir da destruição, do fuzilamento do outro, do diferente, do inimigo?
Um jejum para que haja prosperidade? Prosperidade para quem? Dos líderes religiosos que agora contam com o perdão bilionário, cujo valor poderia ser revertido para minimizar a crise sanitária? Prosperidade para os bancos, empresários, elites? Porque já dizia a canção “A Cidade”, de Chico Science & Nação Zumbi: “o de cima sobe e o de baixo desce”.
Assim “como” Josafá… Há outras alternativas na bíblia sobre o jejum. Talvez devessem fazer “assim como em Isaías 58”, que vale a pena transcrever:
1Clamem com uma voz como de trombeta! Denunciem claramente ao meu povo a sua maldade, aos descendentes de Jacob os seus pecados!
2 Porque eles pretendem dar uma aparência de piedade, de religiosidade! Vêm todos os dias ao templo e quem os vê parece que estão deleitados a ouvir a leitura das minhas leis, como se quisessem sinceramente obedecer-lhes, como se não desprezassem, de forma alguma, os mandamentos do seu Deus! Julgar-se-ia até que estão ansiosos por cumprir corretamente os preceitos da justiça e até parecem ter vontade de se aproximar de Deus!
3 “Jejuamos na tua presença!”, dizem. “Por que é que não ficaste impressionado com isso? Por que não reparaste nos nossos sacrifícios? Por que é que não quiseste ouvir as nossas orações? Fizemos tanta penitência e não te deste conta de nada!” A razão está em que, no dia do vosso jejum, correm atrás dos vossos próprios desejos e negócios, e continuam também a oprimir os vossos trabalhadores.
4 É que jejuais entre rixas e contendas, disputando entre vós, guerreando brutalmente uns contra os outros. Essa espécie de jejuns não tem qualquer efeito comigo, pois assim a vossa voz não se fará ouvir nos céus.
5 Alguma vez eu quero que vocês façam esse tipo de penitências e se inclinem até ao chão como juncos batidos pelo vento, ou que se vistam de saco e se cubram de cinza? É a isso que vocês chamam jejum e dia agradável ao Senhor?
6 Não! A espécie de jejum que eu quero é esta: libertem os que foram presos injustamente e também o jugo que transportam; libertem os oprimidos e quebrem toda a espécie de opressão.
7 Quero que partilhem a vossa comida com os que têm fome e que sejam hospitaleiros para com os que vivem desprotegidos, pobres e desamparados. Que deem roupa aos que têm frio e que não se escondam daqueles que, sendo até vossos familiares, precisam da vossa ajuda.
8 Se fizerem estas coisas, Deus fará brilhar sobre vocês a luz da sua própria glória! Dar-vos-á saúde; a vossa vida com Deus será a força do vosso progresso; a vossa justiça tornar-se-á o vosso escudo de proteção e a glória do Senhor vos protegerá à retaguarda!
9 Então, quando chamarem, o Senhor responderá. “Sim! Estou aqui!”, será a sua rápida resposta.
Tudo o que precisam de fazer é deixar de oprimir o fraco, abandonar a falsidade, não fazer falsas acusações, nem espalhar mentiras!
10 Deem de comer ao faminto! Ajudem os necessitados e aflitos! Então a vossa luz brilhará nas trevas e a escuridão à vossa volta será como a brilhante claridade do dia.
11 O Senhor vos guiará continuamente e vos encherá de toda a sorte de coisas boas, dando-vos bem-estar e saúde. Serão como um viçoso jardim bem regado com frescas águas; serão como uma fonte jorrando continuamente água abundante.
12 Os vossos filhos tornarão a reconstruir as ruínas antigas, edificando sobre velhas fundações do passado; serão conhecidos como o povo que reconstrói as suas muralhas e cidades.
13 Se guardarem o santo sábado, não se divertindo nem trabalhando nesse dia, antes honrando-o e tendo prazer nele, como o dia santo do Senhor, honrando o Senhor em tudo o que fizerem, não seguindo os vossos próprios desejos e prazeres, nem mantendo propósitos e conversas ociosas e inúteis,
14 então o Senhor será todo o vosso prazer. Eu farei com que cavalguem nas alturas e obtenham a totalidade das bênçãos que prometi a Jacob, vosso pai.” É o Senhor mesmo quem diz isto!
Claro! Não é o “Senhor” quem diz isto. É a escola posterior a Isaías que promove esse discurso e coloca as palavras na boca de Deus. Quem diz é o ser humano com interesses – sempre – políticos. Independentemente de quaisquer crenças, o jejum que poderia promover resultados é o de Isaías, não o de Josafá. E por que Isaías não interessa? Porque esse discurso foi classificado como “de esquerda”. A esquerda é inimiga que deve ser derrotada. Bolsonaro já disse sobre a necessidade de uma guerra civil para matar mais uns 30 mil. A verdade é que já temos computado quase 300 mil mortos. É o país da morte, da fome e das estratégias de poder tendo o sagrado como brinquedo, cuja função é (des)educar, entreter e manter infantis os adultos que portam seu título eleitoral. É o lugar em que a bíblia, muito mal interpretada, toma o espaço da Constituição; que a pregação religiosa e seus ritos se avolumam na sociedade brasileira alienando, aprisionando e mantendo fiéis acomodados em suas condições de miserabilidade enquanto muitos líderes se lambuzam com as panelas de carne e cebola. Há um vídeo, inclusive, que circula nas redes em que determinado pastor afirma: “quem não der o dízimo, será corno!”. Essa declaração veste como luva em uma nação machista, patriarcal, cujo presidente hétero ainda publiciza sua preferência em “comer gente” e condena homossexuais.
O jejum de Isaías não interessa politicamente à extrema-direita porque ele tende a humanizar o olhar – ainda que utilizando a teologia como legitimação da ação social. Esse governo não se interessa por números senão as cifras. Seres humanos deixaram de ter estômago para virarem estatísticas. Essa gente come os pobres. E os pobres não têm o que comer. Mas, se são cristãos, estão na lista de convocação para o jejum.
E aqui termino citando um trecho de “Preguntitas sobre Dios”, de Atahualpa Yupanqui. Nada melhor para esclarecer, de uma vez por todas, de que lado está o Deus desse grupo:
¿Que Dios vela por los pobres?
Talvez sí, y talvez no.
Pero es seguro que almuerza
En la mesa del patrón
[Que deus vela pelos pobres?
Talvez sim, talvez não.
Mas é certo que almoça
na mesa do patrão]
Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).
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