Fios do Tempo. Os desafios na pós-democracia brasileira – por Nelson Lellis

O que é pós-democracia? Estamos a viver em uma? A quem convém a lógica pós-democrática e como podemos sair dela? Publicamos hoje no Fios do Tempo mais um texto de Nelson Lellis, que sempre em boa prosa, com acesso aos leigos sem perder a qualidade acadêmica, toca questões importantes para pensar na crise de nossa democracia: a crise do neoliberalismo; o empobrecimento da linguagem e a anti-política do imigo a ser batido.

Desejamos uma excelente leitura, ou escuta!





Os desafios na
pós-democracia brasileira

Campos dos Goytacazes, 18 de agosto de 2020

O Brasil é generoso para com os pesquisadores. Não é de hoje que nos esforçamos para entender seus sistemas políticos e os atores que compõem os espaços públicos. O desafio que proponho neste ensaio ocorre durante algumas leituras, sobretudo de análise política em países europeus, mas cujas ferramentas teóricas servem para a América Latina. Enquanto escrevo minha tese que contempla a interface religião e política no Brasil, não há como desconsiderar as mudanças ligeiras que ocorrem com um mundo aparentemente parado por causa da pandemia causada pela Covid-19. Todavia, como já dizia o poeta: “o tempo não para”, e as chances de se repensar a sociedade continuam presentes.

Neste esforço de reflexão (dobrar sobre si mesmo) durante o isolamento social, pretendo apresentar sumariamente alguns desafios na pós-democracia brasileira. Embora a palavra “democracia” apareça, o seu sentido é esvaziado na plataforma mecânica do neoliberalismo. Para Jacques Rancière, pós-democracia

é a prática de governo e a legitimação conceitual de uma democracia depois do demos, uma democracia que eliminou a aparência, o erro na conta e o litígio do povo, redutível assim ao jogo único dos mecanismos de Estado e das combinações das energias e dos interesses sociais.

Quem primeiro propôs o termo foi Colin Crouch. Na análise do cientista político inglês:

A causa fundamental do declínio democrático na política contemporânea é o desequilíbrio agora em desenvolvimento entre o papel dos interesses corporativos e aqueles de praticamente todos os outros grupos. Tomando em conjunto, com a inevitável entropia da democracia, tem levado a política a se tornar novamente um negócio de elites fechadas, como foi nos tempos pré-democráticos.

Sim, vivemos uma pós-democracia no Brasil. Este texto tem por objetivo destacar três elementos deste cenário que surgem como desafio e novas oportunidades em meio à crise do neoliberalismo: a) as classificações de mercado na sociedade brasileira produzidas pela cultura do próprio neoliberalismo; b) os desdobramentos do empobrecimento da linguagem, e; c) a construção da imagem do inimigo a ser combatido e eliminado.

Neoliberalismo

O Estado pós-democrático é totalmente compatível com o neoliberalismo que, consequentemente, precifica objetos e pessoas. É o neoliberalismo que conduz um país à pós-democracia, segundo Pierre Dardot e Christian Laval. Tal era produz o esvaziamento da democracia participativa e regula a dinâmica social pela “ideologia do êxito” (meritocracia). Esse tipo de Estado que atende ao Mercado, cujos protagonistas são os detentores do poder econômico, não inclui, em seus projetos, os pobres e os “inimigos políticos”. Existe uma transparência sobre o objetivo de separar cada vez mais as classes sociais.

Neste ambiente, até o combate à corrupção é mercadoria. Existem consumidores ávidos pelo tema porque foram formatados para louvarem quaisquer notícias. A publicidade é uma face curiosa neste processo: por um lado, o rendimento de proprietários dos meios de comunicação de massa, por outro, seu uso político para a construção de “verdades” por conveniência, ou seja, as fake news.

Diante de tantas notícias fabricadas, a verdade é que a pandemia da Covid-19 ajudou a atestar a crise do neoliberalismo. Contudo, sua ação ainda vigora. O exercício intelectual de alguns autores e autoras que levam essa crise em consideração, pensam a reconfiguração da sociedade por uma “ordem hegemônica diferente” (Chantal Mouffe).

Ernesto Laclau dirá que, para que isso ocorra, deve-se levar em consideração os vínculos equivalentes. Isto é, para a construção de um “povo”, é necessária a vontade coletiva através das equivalências de diferentes grupos. Isso não quer dizer união dos políticos. Existem fronteiras, diferenças, e é justamente aí que se deve articular a cadeia de equivalências. Eis um desafio!

Empobrecimento intelectual

É comum que a política pós-democracia “invista” na ignorância congelando ou retirando dinheiro da educação, criticando o ensino público não-confessional, desconsiderando a ciência e seu avanço com pressupostos ideológicos e religiosos. A racionalidade do neoliberalismo impossibilita o que o jurista Rubens Casara chamou de “negatividade”.

O indivíduo que absorveu a lógica bolsonarista, por exemplo, rejeita (nega) a dúvida, o “não”, o conflito intelectual. Em sua racionalidade, aposta em modelos simplistas que, por sua vez, desconsidera pesquisas científicas, observações adequadas sobre determinados fenômenos, acionando suas afirmações baseadas no consumo acrítico de informações.

Essa simplificação conduz ao pensamento estereotipado, responsável pela produção de certas frases/slogans, como: “a culpa é do PT”, “mas… e o PT?”, “mas… e o Lula?”, “vai pra Cuba”, “bandido bom é bandido morto”, “querem tornar o Brasil uma Venezuela”.

O empobrecimento da linguagem nega análises mais sofisticadas e inclina-se ao anti-intelectualismo. Esse é papel do neoliberalismo: substituir a crítica pelo indivíduo acrítico e consumidor. As redes sociais favorecem a ligeireza da leitura. Pequenos textos adequados ao gosto do freguês justamente para tornar a informação atrativa, inclusive para o seu compartilhamento em grupos familiares, de amigos e outros.

Esse sujeito que usa a internet não está disposto a dialogar. Trata-se apenas de um monólogo, pois sua intenção é produzir efeitos de verdade àquilo que lhe foi imposto pelos grupos que se interessam em moldar a realidade de acordo com suas ideologias de mercado. E qual o resultado disso? A classificação daqueles que são os “cidadãos de bem” e aqueles que precisam ser eliminados.

Elucidar as informações, investir na educação (aproveitando a divulgação de cursos, aulas, palestras abertas de forma remota), produzir pontes inteligíveis (há progressistas que só escrevem para a academia), são esforços que devem ser encarados de maneira conjunta. Eis aí outro desafio!

O inimigo a ser eliminado

A anti-política é o combustível da pós-democracia. Ela não enxerga o outro como adversário político, mas como inimigo a ser eliminado. Para isso, é necessário construir uma imagem do inimigo e apresentar (propaganda) o perigo que ele traz consigo. Na trajetória de Bolsonaro, esses inimigos são claros: os comunistas, os esquerdopatas, aqueles que podem corromper a família tradicional, destruir a pátria, fazer fiéis descrerem do próprio “Deus” (cristão), o “marxismo cultural” etc.

Enquanto a democracia limita o poder, a pós-democracia retira seus limites. Ou seja, o autoritarismo egoísta e acrítico legitima um conflito nada saudável. Nesta senda, precisamos questionar: quem são aqueles que se apresentam como os “nós”? Quem são os “eles”?

As mentes guiadas pelos fatores econômicos neoliberais, que contabilizam mortos por Covid meramente através de números frios e não por nomes, tendem a classificar os “inimigos” como aqueles que trarão caos – e ilustram superficialmente com movimentos políticos de Cuba e Venezuela. Não apenas Moufee, mas também Mark Lilla e outros(as), sugerem que os progressistas coloquem as armas sobre a mesa e parem de atacar e de descrer. No caso Brasileiro, continuar tentando o diálogo com os adversários e não tratá-los como “inimigos”, e sim, como aqueles que precisam abandonar o modelo produtivista, anti-intelectual e antiético, uma vez que se pretende uma caminhada cidadã plural – plenamente democrática.

E se o ódio é um afeto identificado nesse grupo que busca eliminar o outro, a construção de um novo “povo” também passa por outros afetos. Freud disse que o que une o mundo são os afetos, portanto, a construção de identidades políticas não podem desconsiderar essa dimensão. E como já pensava Spinoza, só se pode deslocar um determinado afeto através de um afeto oposto, que seja mais forte. Desafiemo-nos, pois!


Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).


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