Na sequência de nossas análises sobre o Governo Bolsonaro, trazemos hoje no Fios do Tempo mais um artigo de Nelson Lellis, que reflete agora sobre a infame Reunião Ministerial. Fazendo inteligente articulação entre passagens bíblicas e teorias sociológicas, como a de Erving Goffmann, Lellis aprofunda em suas análises sobre as imbricações contemporâneas entre religião e política. E, mais ainda, mostra como o “vídeo bombástico”, longe de desfazer “ilusões”, só faz com que sejam reafirmadas a militância e a fé bolsonaristas.
A. M.
Fios do Tempo, 26 de maio de 2020
A reunião ministerial:
“A boca fala do que está cheio o coração”
Campos dos Goytacazes, 23 de maio de 2020
Não é comum a citação de textos bíblicos como parâmetro em análise sociológica. Há, contudo, algumas passagens que me vejo na obrigação de transcrever neste exercício:
“A boca fala do que está cheio o coração”
(Mateus 12,34)
“Não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que sai da boca, porque procede do coração”
(Mateus 15,18-19)
“Porventura a fonte deita da mesma abertura água doce e água amargosa? Assim, também, uma fonte de água salgada não pode jorrar água doce”
(Tiago 3,11)
O “vídeo-bomba” reafirma a fachada bolsonariana
No dia 22 de maio, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Celso de Mello divulgou o vídeo da reunião do presidente Jair Messias Bolsonaro com seus ministros, ocorrida no dia 22 de abril. Acompanhei, em diferentes canais, comentários acerca do esperado “vídeo-bomba” que arruinaria a carreira política e até mesmo o mandato do executivo.
Alguns governadores, deputados e senadores filiados a partidos de (centro-)esquerda se pronunciaram como que segurando um troféu em suas mãos. O máximo que puderam afirmar é que as declarações de Bolsonaro reforçam a suspeita de interferência na Polícia Federal. Já os discursos de muitos outros militantes da esquerda surfaram nas redes sociais apontando as maiores atrocidades ditas pelo presidente e por ministros como Abraham Weintraub, que chamou os membros do STF de “vagabundos” e que deveriam ser presos; Ricardo Salles, cuja ideia era “aproveitar” o momento da pandemia e a desatenção da mídia diante de outros assuntos, para “passar a boiada” de seus projetos mudando as regras de proteção ambiental; Damares Alves, a única mulher presente – e a única que testemunhou a aparição de Jesus na goiabeira – e que sugeriu a prisão de prefeitos e governadores alegando violação de direitos humanos quanto ao isolamento social; Paulo Guedes, a imagem d’O Economista, que afirmou a desimportância das microempresas quanto ao seu retorno e, por isso, não deveriam receber apoio do governo.
Por outro lado, não foram poucos os que concluíram: o vídeo será recebido por muitos como propaganda política, pois endossa, de maneira dogmática, a política de Bolsonaro. O vídeo-bomba, que muitos aguardavam ansiosamente, não teria passado daquele “pum do palhaço” – fazendo menção aqui à frase de Regina Duarte, ex-ministra da cultura, ao tentar definir cultura no Brasil.
Poderíamos descrever a reunião ministerial a partir do que Erving Goffman chamou de aspectos da fachada. O problema é que, para haver fachada, é necessária a presença de observadores, porque a fachada é parte do desempenho de um indivíduo enquanto outros recepcionam sua representação. O que torna essa relação interessante é que os bastidores dessa cena (reunião ministerial) vieram à tona e os espectadores agora têm acesso às conversas sem forjar aparência. E a aparência, ou seja, aquilo que é demonstrado ao público, foi justamente aquilo que, de maneira hiperbólica, se viu e se ouviu na reunião com os ministros. A fachada é exatamente aquilo ali, que estava nos bastidores.
As aparências, segundo Goffman, são os estímulos que funcionam no momento para nos revelar o status do ator. Esses estímulos são chamados de maneira (que informa como o indivíduo desempenha na interação). Por exemplo: maneira arrogante, agressiva, humilde escusatória. O Messias da Bíblia diz: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”; o Jair Messias traz a retórica/maneira militar e que já se apresentou como a própria Constituição. Sua postura como Chefe de Estado não permite o diálogo com o diferente (= inimigo).
O que se pode perceber, como pauta que perpassa os assuntos discutidos, é uma tentativa de homogeneização no Congresso, onde – lançando mão de Goffman – “os indivíduos situados num dado grupo […] são obrigados a manter a mesma fachada social em certas situações”. A ideia, portanto, é institucionalizar a política do Messias para que a fachada se torne uma só “representação coletiva”. Quem demonstra isso é Weintraub, cujo discurso reflete a ideia de ministros militantes.
O “vídeo-bomba” reafirma a militância bolsonariana
A tarefa central do status de determinado ator deve ser transmitir suas qualidades e atributos. E tudo isso é destacado no vídeo da referida reunião como fatos confirmatórios, na linguagem goffmaniana. A maneira como Bolsonaro conduz a reunião, com total falta de decoro, xingamentos, palavrões, é plenamente compreensível diante das expectativas de seus seguidores mais fundamentalistas. Os bolsonaristas poderiam dizer: “É isso mesmo!”, pois Bolsonaro é a incorporação e o maior exemplo dos valores reconhecidos por esse grupo. Portanto, não há manutenção da fachada, há um reforço desse estereótipo.
E se por um lado interpretamos uma certa organização sócio-institucional, por outro, ao olharmos a sociedade, destacamos que os critérios de classificação se dá através de “comunidades emocionais”. Numa democracia representativa como a nossa, a sociedade (povo) não pode ser interpretada como um coletivo homogêneo. Vários subgrupos são guiados passional e diferentemente. Isso não se dá a partir meramente de ações, mas principalmente de retórica – como defende P. Charaudeau. Em termos weberianos, há uma dinâmica de tipo societária (antiautoritária) e comunitária (autoritária). A diferença entre ambas é o nível de passividade e mobilização da coletividade que se institucionaliza conforme os valores de um para o outro. O lulismo e o bolsonarismo, por exemplo, não podem ser colocados em pé de igualdade em todos os termos, mas se assemelham como coletivos guiados emocionalmente. E, independentemente do que o líder diga, apenas reforça a militância.
Em termos heurísticos, é importante observar: o fato de Bolsonaro dizer que é importante “estar no meio do povo” e preocupar-se com o arroz com feijão do pobre é apenas um jogo que pretende incutir na plateia a crença de que ele, o Messias, está relacionado com ela de um modo mais ideal do que o que ocorre na realidade. Goffman nos ajuda a revelar que essa plateia admite que o “personagem projetado diante dela é tudo que há no indivíduo que executa a representação”.
A sociologia goffmaniana alerta ainda: “devemos estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos”. É o que não conseguem ver os apaixonados. E o vídeo os contempla neste quesito, posto que a representação de Bolsonaro não apenas o transfigura, mas também fixa – o que poderia levar esse grupo a pensar: “Ele é isso aí mesmo: autêntico. Fala a realidade. Como o povo gosta de ouvir”. Sim, mas não todo o povo, entende? Há um outro povo que, passionalmente, não devota tamanho crédito. Para Kenneth Burke, por exemplo, a plateia pode ser mantida em estado de mistificação com relação ao ator (neste caso, o líder). A percepção dos seguidores diante do Messias é o próprio controle e regulação social existente. O contrato ocorre na crida “transparência” do líder e nos valores compartilhados: “Povo armado jamais será escravizado”; “É fácil impor uma ditadura aqui. Facílimo”; “Quem não aceitar as minhas bandeiras: Deus, armamento, família, liberdade econômica […] Quem não seguir estas bandeiras está no governo errado”.
O “vídeo-bomba” reafirma a fé bolsonariana
Bolsonaro não tem em mente apenas pautas para um “governo correto” ou “governo errado”. Ele aposta nisso em âmbito nacional. A minoria, que não é cristã, não tem voz em seu governo. Os terríveis e tão citados comunistas não podem viver neste país. Em sua declaração, logo após a divulgação do vídeo, destacou, como de costume, que o Brasil possui um presidente que acredita em Deus e que família é tão somente o que a Constituição e a Bíblia dizem. Caso haja alguma emenda na Constituição sobre o conceito de família (pai e mãe), ele respeitaria, mas seria impossível uma emenda na Bíblia.
Um presidente que acredita em Deus, que segue a Bíblia, como consegue lidar com os textos citados no início deste ensaio? Frédéric Vandenberghe e Jean-François Véran disseram, em texto publicado aqui no Fios do Tempo (“O autoritarismo desconfinado de Jair Messias Bolsonaro”) que:
Bolsonaro se vê como chefe de uma campanha para “libertar” a população das agruras do isolamento. Seu slogan “trabalho, união e verdade nos libertará” [sic] ressoa como uma mistura improvável de Auschwitz com o Evangelho de São João (Jo 8,32). O resultado é visível nas ruas.
Pois bem, isso não está claro para seguidores da ala religiosa, que após ouvirem palavras como: “merda” (5 vezes), “bosta” (7), “porra” (8), “foder” (2), “putaria” (4), “puta que o pariu” (2), “filho da puta” (2), “cacete” (1), permaneceram em apoio ao “escolhido de Deus”. Foram cerca de 37 palavrões na reunião. 29 ditas por Bolsonaro.
Horas depois da divulgação do vídeo, tive acesso a postagens em redes sociais sobre campanhas de oração em favor do Brasil. Elas traziam a imagem de Bolsonaro com sua esposa Michele. A maioria das convocações com foco no dia 23 de maio (sábado): “O Brasil vai se ajoelhar, jejuar e orar pela nação”. Acima da imagem do casal, de olhos fechados como no rito da oração, a frase: “Quebra de maldição”.
Religiosos associam a oração pelo Brasil ao presidente por um motivo muito simples: o apoio a um “legítimo representante” dos valores que lhes são caros. Na verdade, o que nos parece, é que todo o rito de oração e jejum dirigidos a Deus não pretendem o descortinar das discrepâncias (que alimentam suas aparentes realidades), e sim, de acobertar as ações do diabo. Alguém que se converteu a Jesus em quase todos os eventos evangélicos que participou e que foi (re)batizado no rio Jordão, deveria, minimamente, entender que o Jesus das narrativas evangélicas o teria como gente contaminada e que contamina.
Ao contrário da Covid-19, o vírus-Bolsonaro autoriza seus seguidores a interpretarem a Bíblia com a mesma seletividade, o que traz como consequência outro tipo de morte: da consciência crítica. Sua sina é adotar em seu discurso pautas morais e enxotar as palavras que fariam dele um possível discípulo do Messias, o Cristo: seu interior está contaminado; arrependa-se! É impossível, da mesma fonte, saírem águas diferentes. E não há cloroquina que mude isso. Não há.
Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).
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