Fios do tempo. A antiética evangélica que ajuda a distrair o espírito do capitalismo – por Nelson Lellis

Nesta semana o Fios do Tempo traz uma série de artigos inéditos sobre religião. Começamos com mais um texto do sempre lúcido, bem informado e sagaz Nelson Lellis, que reflete sobre o recente perdão de dívidas das Igrejas evangélicas: como isso expressa a forma pela qual os evangélicos se relacionam com o capitalismo e o modo como o capitalismo se realiza no Brasil?

A seguir publicaremos dois textos que contribuem para pensar o que é, afinal, religião: primeiramente, discutindo com Lactâncio e Durkheim, Fábio Costa levanta uma interrogação sobre a concepção clássica de religião como “religação”: religar o quê, afinal?; e, em seguida, Wellington Freitas nos proporciona uma reflexão sobre o que é sagrado e como ele está, hoje, a ser simplesmente “encaixotado”.

Acompanhe-nos. E desejamos, como sempre, uma excelente leitura, ou escuta.

A. M.
Fios do Tempo, 09 de setembro de 2020




A antiética evangélica
que ajuda a distrair
o espírito do capitalismo

Campos dos Goytacazes-RJ,
8 de setembro de 2020

A Editora Vozes lançou, há alguns meses, a edição integral do livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, incluindo Anticríticas, Igrejas e seitas na América do Norte e As seitas protestantes e o espírito do capitalismo. É importante que se diga que tal edição chega durante forte acento do discurso religioso evangélico no cenário político-econômico nacional que sofre as calamidades trazidas pela pandemia da Covid-19. A aliança feita com o atual governo, o negacionismo, o ataque à ciência, a ode ao capital e a proteção às grandes empresas são temas presentes que são sublinhados pela ética de parte dos líderes evangélicos. Há que se dizer que o segmento evangélico é apenas um bloco importante no cenário político, mas talvez seja muito mais uma distração para que a sociedade não enxergue para onde o capitalismo está nos levando.

O capitalismo, que tem sido esbofeteado pela pandemia da Covid-19, resiste com seu espírito contagiante e propagandista. Trabalhadores testemunham a Lethal Weapon desse sistema onde os fracos não têm vez. A proposta do ministro da economia Paulo Guedes, enviada ao Congresso Nacional em julho deste ano, pretende aumentar a carga tributária para trabalhadores e aliviar banqueiros. Como o próprio Guedes declarou na reunião do dia 22 de abril com o presidente da república: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequeninhas”. 

Como é comum ouvirmos por aí, “nada é novo debaixo do sol”… Recuando poucos anos em nossa história, durante o período em que Michel Temer esteve na cadeira do executivo, perdoou R$ 47,4 bilhões de dívidas de empresas. Além disso, garantiu perdão da dívida de quase R$ 30 bilhões dos bancos Bradesco, Itaú e Santander. Na campanha de 2018, Bolsonaro prometeu perdoar dívidas do agronegócio e, em 2019, já eleito, foi pressionado pela bancada ruralista para perdoar dívidas bilionárias do agronegócio com o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural). Segundo o site da ANASPS (Associação Nacional dos Servidores Públicos da Previdência e da Seguridade Social), “a decisão é um escárnio. O agronegócio fraudou o FUNRURAL, não contribuiu, o Supremo mandou que pagasse, ele não pagou e agora quer anistia. O agronegócio além de não pagar o FUNRURAL, como acontece com os trabalhadores que também não pagam, ainda recebe benefícios previdenciários (renúncias) anuais de R$ 7 bilhões na exportação de produtos agrícolas”. Ou seja, os grandes empresários e banqueiros ainda têm forças para eleger candidatos e, ainda assim, permanecerem no leme desse país. Não fosse isso, Lula não teria modificado seu discurso ampliando seu apoio a esses setores para conseguir a presidência do Brasil.

Pois bem… No dia em que comemoramos a independência do Brasil, uma notícia: o Congresso Nacional aprovou um texto que pode anular dívidas tributárias de igrejas com a Receita Federal. Trata-se de trechos propostos ao PL 1581/2020 pelo deputado federal David Soares (DEM-SP). O texto diz que autuações feitas às igrejas anteriormente passam a ser nulas. Em outras palavras, todas as dívidas acumuladas passariam a não mais existir. Importante esclarecer aos leitores e leitoras que David Soares é filho do missionário R.R. Soares, pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus. Segundo o Estadão, a referida igreja possui R$ 37,8 milhões inscritos na Dívida Ativa da União. 

No final de 2019, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) já havia se queixado de questões tributárias que colocavam lideranças evangélicas diante do Leão (desta vez não o Leão da tribo de Judá). É de conhecimento de todos que igrejas não pagam uma série de impostos no país, mas como instituição devem recolher taxas dos funcionários que empregam, como INSS. A reportagem de Mariana Zylberkan, publicada em 24 de janeiro deste ano na Revista Veja, apresentou as principais dívidas de denominações evangélicas com a Receita Federal no Brasil:

IgrejaValor
Igreja Internacional da Graça de DeusR$ 139,7 milhões
Igreja Mundial do Poder de DeusR$ 85,9 milhões
Igreja Renascer em CristoR$ 31,3 milhões
Igreja Evangélica Assembleia de DeusR$ 9,8 milhões
Igreja Batista da LagoinhaR$ 9,4 milhões

Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda, a TV Rede Mundial de Comunicação, cujo proprietário é o pastor Valdemiro Santiago (IMPD), tem uma dívida de R$ 6,1 milhões em impostos. Em relação a outras empresas privadas de líderes evangélicos, aparece também a gravadora Central Gospel Music, de Silas Malafaia, com R$ 1,2 milhões de impostos não pagos. A Rádio Difusora de Itapetininga e Rádio e TV Araucária, de Luciano Hernandes, sobrinho de Estevam Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, somam o valor de R$ 1,7 milhão. A Graça Editorial, de R.R. Soares, com R$ 958.800,00.

O Estado de São Paulo apurou a quantia de quase R$ 1 bilhão – valor que poderá ser perdoado através de sanção do presidente Messias Bolsonaro no dia 11 de setembro, data em que as torres gêmeas, símbolo do poder econômico estadunidense, foram atacadas e receberam conotação religiosa. Para mim, coincidência simbólica interessante. À época, o evangelista estadunidense Jerry Falwell afirmou que “os pagãos e os abolicionistas e as feministas e os gays e lésbicas ajudaram os ataques a acontecer”. Deus teria ficado “zangado” e permitiu que os “inimigos da América” dessem o que eles mereciam. Em outras palavras, enquanto o ataque trazia críticas ao capitalismo, o fundamentalismo religioso norte-americano fazia com que o mundo interpretasse toda a ação como um ato religioso produzido por pagãos fundamentalistas.

Aqui, no Brasil, os templos religiosos são protegidos com todo o cuidado porque entendem que eles ajudam a esconder o capitalismo. Além disso, são de interesse do executivo para angariar votos e fidelizar apoio. Contudo, os números e os discursos desses religiosos brasileiros escancaram como as igrejas estão encharcadas de uma ética que busca maquiar o Estado nacional para prostituir-se com os EUA atestando sua submissão com o nome de Deus. E quem quiser contrariar essa aliança não é outra coisa senão um inimigo da nação, um inimigo do próprio Deus.

Os grandes líderes evangélicos citados aqui já construíram uma narrativa de perseguição política quanto aos tributos. Adivinhe a que governo eles reputam por perseguidor? Sim, o PT. Mas foi Michel Temer quem instituiu a plataforma eSocial, capaz de detectar as dívidas fiscais do país com mais eficácia. É por isso que se pode desconfiar que as igrejas, em sua grande maioria, não agem dentro da lei em relação aos salários não tributados. Para Tathiane Piscitelli, professora de direito tributário da FGV, “algumas entidades cresceram tanto que possuem estrutura de grandes empresas e realizam atividade comercial […] é dever do Estado tributar isso”.

Por outro lado, temos outras tantas comunidades que possuem seu papel social, auxiliando moradores em situação de rua, crianças em estado de risco, mulheres que sofreram violências e que precisam de apoio para além da orientação em relação à justiça etc. São vítimas daquelas igrejas que apoiam o sistema neoliberal. Igrejas sendo vítimas de igrejas.

Parte das igrejas evangélicas que corrobora com o sistema capitalista não assume compromisso com a sociedade, pois não há interesse na formação de cidadãos e cidadãs com consciência crítica e capazes de cobrar, em audiências públicas ou através de outros recursos, a execução das funções devidas da esfera pública. Como não há generalizações nesse meio, os grupos que buscam interferir na sociedade, que utilizam seus recursos para a manutenção de creches, de alimentação e vestimentas urgentes, que trabalham, sobretudo, com voluntariado, mas também precisam contratar terceiros, sofrerão pela dívida das igrejas que se tornaram grandes negócios. E são essas últimas que apoiaram a campanha do presidente que fora eleito. O que fez Messias Bolsonaro para firmar essa aliança e fazer delas uma boa distração para suas puladas de cerca com os donos da bola?

Bolsonaro realizou algumas indicações junto ao Fisco, como o aumento do teto para R$ 4,8 milhões em relação às empresas, beneficiando diretamente igrejas. Além disso, a intenção de isentar templos religiosos da conta de luz. Não são poucos os ajustes que o executivo procura fazer para que os poderosos dos púlpitos brasileiros mantenham sua fidelidade ao Messias. Há tempos religiosos deixaram de temer o Leão da tribo de Judá (como é conhecida a pessoa de Jesus em algumas passagens da bíblia) para temerem ao Leão da tributação. E dessa cova, esses pastores trocam a oração pela negociação, estando dispostos a deixarem a alma para o diabo. Aliás, o que interessa não é o pão nosso do Pai nosso, é eliminar a dívida própria aumentando a tributação sobre os pobres fiéis. Ficamos na expectativa se o rebanho dessa gente perceberá que chegou o tempo de cobrar a dívida para que, enfim, o milagre na distribuição de renda, nos serviços públicos, sejam devidamente entregue à sociedade.

Por mais que haja um interesse flagrante de igrejas por seu envolvimento no Estado, não se pode afirmar que as mesmas protagonizam sozinhas o ethos de uma forma econômica nacional. Weber pode ter descrito a participação efetiva de protestantes há séculos, mas hoje, as igrejas evangélicas sofrem as consequências e pensam ser soberanas pelo seu envolvimento com o Estado. As igrejas são apenas a ponta do iceberg, são os braços do capitalismo, são a fachada radical de um sistema que não tem início em cartilhas religiosas, mas nos créditos bancários. A igreja apenas legitima os interesses. Nas palavras de Weber, a igreja legaliza a ambição de ganho ao “considerá-la como diretamente acordante à vontade de Deus”. Ou seja, ninguém confessará seu pecado da ganância ou avareza, antes, santificará o que é antiético em ética evangélica. O capitalismo, sem dúvidas, ajuda nessa conversão de valores. Os bens religiosos de salvação sofrem ressignificações, de modo que a salvação torna-se um elemento de posse. O salvo é conhecido por aquilo que tem: não apenas a crida salvação, mas em que essa salvação pode materializar. 

Para finalizar, o que essas igrejas pretendem é a manutenção de um lucro privado. Nada diferente das empresas, dos bancos. Essa ética não expõe, como sinalizado acima, o protagonismo da antiética evangélica. Nos dias de hoje, ela contribui somente para mascarar o capitalismo nada domesticado neste solo que há 198 anos declarou a independência do Brasil.

All right.

Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).



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