Fios do Tempo. A política de invisibilidade do Governo Bolsonaro – por Nelson Lellis

Como controlar sua imagem pública diante de um cenário de riscos fora do controle e um cenário de grave crise? Uma das formas de fazer isso é com uma política de invisibilidade. É isso que propõe o artigo de Nelson Lellis a partir de uma oportuna leitura do último livro do sociólogo do risco Ulrich Beck (A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade, publicado postumamente).

Por exemplo, pode-se invisibilizar as mortes mudando o foco fazendo papelão… Mas um detalhe não pode ser esquecido: a política de invisibilidade perde sua eficácia se o sujeito cuspir demais para cima.

Desejo uma excelente leitura.

A. M.
Fios do Tempo, 12 de novembro de 2020



A política da invisibilidade do
Governo Bolsonaro

Nelson Lellis

Campos dos Goytacazes-RJ, 11 de novembro de 2020

Em 2016 foi publicado na Inglaterra (Polity Press, Cambridge) o livro póstumo de Ulrich Beck intitulado The Metamorphosis of the World. A edição brasileira saiu em 2018 pela Jorge Zahar, com tradução da premiada psicóloga e psicanalista Maria Luiza Borges e revisão técnica da historiadora e antropóloga social Maria Claudia Coelho. Isto é, uma edição que podemos considerar responsável e ainda bem fresquinha – levando em consideração o intervalo de apenas 2 anos da primeira publicação.

O livro no Brasil conservou o título original, mas acrescentou subtítulo: A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. A tese de Beck é que a forma do mundo está se alterando devido a uma série de questões. Uma delas é o aquecimento global, que força os países a criarem um projeto de reeducação comportamental para seus cidadãos – o que os fazem pensar (ou deveriam, pelo menos) não a partir de um nacionalismo metodológico, mas de maneira cosmopolita, para além dos limites geográficos. Outro exemplo é a própria parentalidade que traz o debate das “barrigas de aluguel” para se pensar o “capitalismo pré-natal” que “desloca o centro de gravidade da vida social – maternidade – de uma união sagrada, biológica, tradicional para uma ‘cosmopolização invisível’, criando e integrando formas sociais e territoriais de paternidade e maternidade biológicas ‘à distância no destino dos filhos’”. 

Contudo, é o capítulo 6 (Para onde vai o poder? Política da invisibilidade) que nos concede um rico material teórico para analisar o cenário brasileiro. Beck parece um profeta apocalíptico prevendo o que aconteceria no Brasil. O autor procura responder sobre quem pode ser responsabilizado por deter recursos de dominação que permitem “estabelecer definições e redefinições sociais”, uma vez que as relações de poder estão ligadas às relações de definição no sistema capitalista. Um desses recursos é a política da invisibilidade. Antes, precisamos conceituar o que é a invisibilidade natural e invisibilidade fabricada (que se trata do que a política pode realizar).

A invisibilidade natural é aquela capaz de multiplicar o poder institucional da definição de risco. Ou seja, caso o indivíduo não tenha condições de tornar visível o que o ameaça, quem definirá o risco serão as instituições, como o Governo, as indústrias, dentre outros sistemas. Já a política da invisibilidade, segundo Beck, trata-se de uma estratégia para “estabilizar a autoridade do Estado e a reprodução da ordem social e política pela negação da existência de riscos globais […]”. Neste processo de fabricação da invisibilidade, a invisibilidade natural pode ser instrumentalizada.

A Covid-19 tem trazido efeitos catastróficos pelo mundo. Há países, contudo, que buscaram minimizar a potência caótica e destrutiva do vírus e ainda hoje são alvo de um número crescente de vítimas fatais. É o caso dos EUA (com mais de 10 milhões de casos e mais de 340 mil mortes) e Brasil (quase 6 milhões de casos e ultrapassa 160 mil mortos). 

A era Trump-Bolsonaro corresponde à instrumentalização política da invisibilidade. No caso do atual governo brasileiro, a exoneração constante de ministros da saúde com a intenção de desconsiderar alertas da OMS e demais órgãos de saúde, o ocultamento de números de vítimas e dados sobre a pandemia no país, a defesa da hidroxicloroquina como medicamento viável contra o vírus (mesmo sem a chancela científica), a proibição de vacinas etc. Beck diz que esse é um efeito da política da invisibilidade: promover “falsos debates onde há consenso científico, silenciando críticos, orquestrando estudos para neutralizar mesmo fortes evidências de dano […], apresentando um atraso na monitoração como uma ausência de efeitos sobre a saúde”.

Outra estratégia da invisibilidade é “deslocar o foco”. Bolsonaro pretendeu deslocar o foco da pandemia para a economia. Beck sentencia: “deslocar o foco dos efeitos sobre a saúde para os custos econômicos e os problemas econômicos-administrativos – isto é, enfatizar as restrições econômicas” é uma maneira de querer redefinir o risco e promover uma outra narrativa sem a segurança científica e dados empíricos. Parece que Beck, ao falar do desastre de Chernobyl em 1986, está fazendo uma leitura do Brasil de 2020.

No que se refere a Chernobyl, o processo de invisibilidade foi tão impactante, que algumas pessoas diziam preferir morrer de radiação a morrer de fome. E foi justamente aí que o governo brasileiro apelou: para a situação econômica. Nas palavras de Beck fazendo uso da teoria marxiana, “as relações de definição estão subordinadas às relações de produção”. Em abril de 2020 o número de desempregados ultrapassou 12 milhões de pessoas, todavia o emprego informal, considerado precarizado, passou dos 40% da população ocupada, que representam quase 40 milhões de brasileiros, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). São trabalhadores sem direitos, mas que movimentam a economia do país. É nisso que Bolsonaro apostou. Isso explica, por exemplo, o crescimento da aceitação do governo no período em que a classe precarizada recebeu o auxílio emergencial de 600 reais durante 6 meses. A pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) divulgou que no período da pandemia a aprovação do governo subiu de 51,7% para 57,1%; enquanto a desaprovação caiu de 42,3% para 39,1%. 

E por que é difícil publicizar os efeitos colaterais dos riscos? Porque dependendo do governo, não se saberá controlar sua própria imagem. A política da invisibilidade promovida por Bolsonaro é exatamente a imagem construída ao longo de sua carreira política: considerar os poderosos e negociar (levando sempre a desvantagem) com os EUA, suprimir grupos identitários, combater políticas contrárias e tratá-las como antagônicas (ou seja, inimigas a serem eliminadas, no termo de Chantal Mouffe), aliar-se aos militares, exaltar torturadores e assemelhar-se a eles, abrir-se aos interesses de elites, mostrar-se preconceituoso e sexista. Portanto, considerar o risco é chamar o que já ceifou a vida de milhares de pessoas de “gripezinha”. 

Há uma cortina erguida no governo Bolsonaro, e muitos mitólogos (como no livro A República, de Platão) contam e pregam as inverdades desse governo, baseando-se também em dogmas religiosos. Todavia, não se trata de algo que seja instransponível. A saída que Beck aponta são os meios especializados. Ou seja, ainda que haja uma política da invisibilidade, as pessoas continuam dependendo de “meios científicos e administrativos de visibilidade”. É tornar democrática as informações sobre os riscos, pois os que mais sofrem no âmbito socioeconômico são aqueles que pertencem a uma construção social do desconhecimento. Lanço mão da frase da cientista social Adriana Petryna: “o não conhecimento tornou-se crucial para a utilização de conhecimento fidedigno”. É o que ocorre não apenas em grupos de Whatsapp, mas em vários outros canais, redes sociais que disparam notícias falsas que se tornam “verdadeiras” nos meios bolsonaristas. Uma bola de neve. O governo brasileiro conseguiu organizar a desinformação e a irresponsabilidade, buscando alterar não as narrativas, mas a própria dimensão heurística. Bolsonaro teve um aumento de sua popularidade justamente em meio à classe mais precarizada. Não porque tenha pensado nela, mas porque soube, estrategicamente, mudar o foco. E seguimos para uma nova rixa: Biden, o presidente eleito nos EUA, e Bolsonaro, que já disse que na ausência de saliva, resta a pólvora. Que pólvora diante do país que possui os exércitos dos exércitos? Bolsonaro não está contra os EUA. Ele já prestou continência para a bandeira estadunidense. Sua crítica é a estrutura que pode ameaçar seu jogo, sua instrumentalização quanto à Amazônia. Talvez seja melhor Bolsonaro reunir mais saliva para tentar apagar o fogo dessa relação de forma diplomática. Daí, fica a sugestão: pare de cuspir para cima que sobra.

Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).


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