Artigo. E pretendeis possuir a verdade, e vossa opinião aprisionará o amor – por André Magnelli

Publicamos hoje, no Fios do Tempo: Análises do presente, um artigo de André Magnelli (livre-pesquisador e diretor do Ateliê de Humanidades). A partir das citações que Bolsonaro faz em seu twitter do versículo “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, Magnelli reflete sobre os usos da religião nas atuais “políticas de autenticidade” que, ao pretenderem possuir uma franca verdade, acabam por aprisionar o amor, diluir a política e minar a ciência.


E pretendeis possuir a verdade, e
vossa opinião aprisionará o amor

Rio de Janeiro, 21 de agosto de 2019

A política e a religião casaram-se enfim; ao menos no discurso dos que estão no poder e pretendem possuir a verdade que unirá o país e libertará a nação.

Sabemos que Bolsonaro ganhou as eleições tendo por mote um versículo do Evangelho de João: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (8:32). Ele o escolheu quando decidiu ser candidato em 2014. Lá pelos idos de 2016, já o twittava (3 de maio); após dois anos, proferiu-o nos programas e o fez circular em memes como uma bandeira da campanha. Seu discurso de posse por ele começa; e sua rede social o menciona como a missão que guia o governo.

Agora, neste mês de agosto, a passagem evangélica se tornou uma série no “twitterflix” presidencial. Com o nome “João 8:32”, tivemos já quatro episódios com “verdades” expressas em um máximo de 280 caracteres…

Opiniões escatológicas

Em 5 de agosto, Bolsonaro remeteu a João 8:32 para questionar a existência da fome no Brasil, alegando que há muito dinheiro destinado aos pobres. No dia seguinte, ele fala da laicidade, afirmando que é cristão assim como a maioria dos brasileiros, arrematando com um “se Deus é por nós, quem será contra nós?”. No dia 10 de agosto, vem mais um episódio onde apela à reunião de “Forças” dos brasileiros de “caráter sadio” contra as “mentes algemadas pela ilusão das vantagens pessoais e do poder”. Em 18 de agosto vem o último quando menciona o “possível retorno da turma do Foro de São Paulo” na Argentina.

Qual é a unidade disso tudo? É a pretensão de possuir uma verdade dita com “franqueza”, sempre em oposição a inimigos por ele declarados. E isso é feito em detrimento do estabelecimento da verdade dos fatos, bem como da prática amorosa de sua confissão.

Dizendo defender a nação, ele denega a gravidade da fome e do desmatamento, controlando instituições científicas, alegando interesses escusos, desprezando países parceiros e minando a credibilidade do Brasil. Ao falar em nome de uma maioria cristã, ele menospreza minorias e desconhece a diferença entre crença privada e função pública. E ao apontar para os algemados por vantagens pessoais, ele desvia o foco de seu filho, indicado por ele para embaixador nos EUA.

Sentimos, desta forma, um cheiro de paradoxo: como um governo que tem como lema uma libertação pela verdade pode ter tal desprezo pela verdade, fazendo-nos mergulhar em opiniões proferidas a golpes de twitters, palavrões e chavões?

É claro que existe muito de estratégia política em jogo; e há muitos estudos sobre isso extraídos das experiências totalitárias do século XX, bem como dos populismos de hoje. Mas proponho analisar aqui a questão por outro ângulo: o do uso da religião por uma “política da autenticidade”. Afinal, importa saber por que seus seguidores o levam tão a sério.

Molduras religiosas convenientes

Estamos em uma era da autenticidade. Nela, os indivíduos querem possuir verdades e valores convenientes, que estejam à medida de suas expressões, sentimentos e opiniões. Neste sentido, Bolsonaro representa uma figura cada vez mais comum: a do indivíduo “conservador” que “pensa o que quer”, “fala o que vem na boca” e “está nem aí para a tradição”. O que importa é sua postura “autêntica” contra o lado oposto. Desta forma, a religião aparece como um recurso de persuasão e imposição. As passagens bíblicas servem de moldura para embelezar os dogmas pessoais e sacralizar uma visão de mundo autorreferente (ao falar de moldura, aproprio-me aqui de um conceito trazido por Volney Berkenbrock no nosso Ciclo de Humanidades sobre a “Revanche de Deus”). É assim que a Bíblia é lida com a profundidade de um meme: descontextualizada, tira-se dela o que se quer, com a vantagem de dizê-lo através de Deus…

Para Bolsonaro, a citação de João serve de carta branca para emitir opiniões. Nele, é encontrada a comprovação de sua posse pessoal da verdade, como algo que vem na sua boca e que vai goela abaixo. Na era de um divino subjetivado e customizado ao próprio gosto, a verdade é dita como vinda do coração, sem necessidade de qualquer prova. Eis a lógica banal do presidente quando interpelado: minha verdade é do coração, é um sentimento compartilhados por muitos, e isso basta! Ou terá que provar isso, p****”?

Tais opiniões dogmáticas buscam deslegitimar o trabalho da razão e das ciências, seja o das comunidades científicas, seja o da reconstrução da verdade histórica. Assim, estamos arriscando a troca da franca verdade das coisas pela opinião dos que se querem francos. Está aí uma espécie de “neomedievalismo pós-moderno”.

Falas em nome do amor em vão?

Temos que nos perguntar: de qual verdade cristã trata João 8:32? Não há suspense: a de que “Deus é amor”. Mas, curiosamente, nenhum dos twitters do presidente fala de amor. Falam, sim, de amor à pátria, mas não de amor ao próximo; não de caridade aos fracos, pobres, humilhados, ofendidos; não de generosidade, benevolência, humildade, compaixão…

Ironicamente, João 8:32 está no mesmo capítulo do ensinamento de Jesus diante da adúltera posta a ser apedrejada: “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. Todavia, os pretensos homens “de bem” estão dispostos a trocar pedras por fuzis, preferindo comemorar, como dádivas da justiça divina, as violências contra pecadores em geral. E querendo um Reino para si neste mundo, transformam-se facilmente de “pacíficos” em “pacificadores”, como cavaleiros das novíssimas cruzadas do nosso tempo.

“Não tomarás o nome do senhor, teu Deus, em vão”, diz um dos mandamentos do Velho Testamento. Será que tal passagem se aplica aos combates profanos em redes sociais? Ao se falar de religião em vão, resta tão somente vaidade? E assim, não se tornaria o mandamento do amor uma mera arma de combate político?

Em face a um governo que pretende possuir a verdade, mas que aprisiona o amor, dilui a política e mina a ciência, não se pode ser passivo e deixar de relembrar a essência encoberta do cristianismo, belamente sintetizada nas palavras de Santo Agostinho em uma de suas Homilias sobre a Primeira Epístola de João: “Ama, e faz o que quiseres”. Pois se há verdade ética a ser conhecida, que vai muito além de uma religião específica, é a do amor em suas várias formas (eros, philia e ágape) como princípio das virtudes e fonte dos sentidos: o amor não apenas a si, a seus amigos, à sua família, à sua nação e à sua religião, mas também ao próximo e, eis o escândalo do cristianismo, a seus inimigos…

Se isso é coisa impossível de fazer na política, está aí uma forte razão para que a religião se mantenha, para seu próprio bem, bem longe dela.

André Magnelli

Livre-pesquisador e diretor do Ateliê de Humanidades

Fonte da imagem: Bolsonaro participa de culto na Câmara dos Deputados. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)


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por Anders Noren

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