Fios do tempo. Dar asas a uma filosofia educativa – por André Magnelli (prefácio a “A propósito do labirinto)

O livro “A propósito do labirinto”, de Marcus Tadeu, é um relato de memórias narradas com a arte de um contador de histórias. Em meu prefácio, proponho que ele nos traz uma filosofia educativa para uso nas escolas prisionais, e em todo nosso sistema de educação.

Poupo minhas palavras neste editorial, para que você possa mergulhar de imediato na beleza destas memórias filosóficas, cujo espírito busco apreender no meu humilde prefaciamento.

A. M.
Fios do Tempo, 14 de setembro de 2022



Dar asas a uma filosofia educativa

André Magnelli

A propósito do labirinto é um relato de memórias feito com a arte de um contador de histórias. Sua narração compõe erudição com oralidade, conceitos com afetos, e valores universais com uma vida feita de carne, osso e sangue. Deste lugar do esquecimento humano, erguido com o peso estridente do concreto e das grades – a prisão –, o autor traz à luz as histórias que se entrecruzam no recôndito da sociedade com seus momentos de valor, humor e fraternidade. Ao tratar da experiência de educador prisional, ele nos convida a uma viagem filosófica, percorrendo temas como a liberdade, o destino, a alteridade, o bem, o mal, a crueldade, o amor, a superação, a beleza, a transcendência, a dor.

O livro é mais do que uma narrativa de experiências na prisão, pois o autor transpassa suas memórias de professor prisional com relatos de outras pessoas e suas próprias experiências biográficas. Escutamos, assim, o fiar de uma herança incorporada, tecida pelo antepassado pioneiro, pelo avô brincalhão e prosador, e pela mãe sensível e educadora; e percebemos o desdobrar de uma vida rica em atividades que se integram num modo próprio de estar no mundo. Quem conhece Marcus Tadeu reconhece logo as marcas de sua personalidade ímpar em cada linha escrita, conjugando as facetas de historiógrafo, filósofo, professor, conservador patrimonial, historiador da arte, intelectual humanista e artista amador. Temos o deleite de lê-lo narrando suas memórias entremeadas com mitologia, arquitetura, história urbana, sociologia, artes plásticas, literatura e, claro, muita filosofia.

Este livro é escrito com a atitude de um humanista, pois tem sua motivação na educação do ser humano. Para que escrever mais um livro de memórias sobre experiência prisional, afinal? É porque as posturas de denúncia, que reproduzem ad nauseam lugares comuns de vulgatas marxistas e pós-estruturalistas, nos cansaram e se esgotam; e também porque se fortalecem em seu lugar, de modo assustador, expectativas de justiçamento mais perversas do que a esmagadora maioria dos crimes cometidos por encarcerados. Seria fácil se o autor reagisse à barbárie em curso reiterando discursos costumeiros, com relativizações éticas que remetem à nossa cruel desigualdade e tentam apagar a liberdade humana e seus problemas morais com a borracha das causações sociais e psíquicas. Mas, como diz Marcus, “não se combate a barbárie com a omissão, nem com a própria barbárie”. O que precisamos é de algo bem diferente: trata-se de falar novamente aquilo que é audível por todos; trata-se de retornar ao realmente humano em sua complexidade constitutiva e em seus valores universalmente inteligíveis; trata-se de cultivar em geral a potência represada de uma humanidade comum.

De forma lúcida, Marcus nos lembra, assim, que é nos campos incógnitos da ignorância que as posturas radicais e intolerantes afloram com mais rigidez. Se falamos cheios de certeza sobre crimes, criminosos e prisões, é porque nos confortamos em nosso não-saber a respeito do que se passa neste espaço feito para ser esquecido, como se fosse um porão onde depositamos seres humanos e segredamos a pior parte de nós mesmos. A entrada do autor no ensino carcerário foi feita por acaso, e por acaso também suas evidências foram sendo quebradas. Por isso, o livro é um convite para reconstruir as experiências que se transformaram em pensamentos, como ocorre em todo bom filosofar. Nesta toada, o repúdio à injustiça social convive com uma consciência moral diante do existir e suas relações com os outros e com o mundo. Por isso, os prisioneiros, professores, carcereiros, seguranças e policiais são retratados como pessoas em sua integralidade, cujos contornos e feições são tão-somente humanos. Quando lemos as suas pinturas dos caráteres individuais e das suas ações neste espaço, percebemos, de fato, o quão difíceis são as condições de uma escola prisional, mas entrevemos, em igual medida, como os valores existem e emergem em todo lugar, desde que sejam criadas condições e, sobretudo, desde que se acredite que isso é possível.

Estas memórias alimentam em seu todo uma filosofia educativa, voltada à formação de um senso moral para a liberdade, com uma reflexão sobre os abismos e encantos da existência humana. Neste sentido, a metáfora do labirinto, que batiza o livro, tem um brilhante lugar de imagem-formadora do mundo aqui desdobrado. Pois pensar a liberdade do ser humano é, em igual medida, refletir sobre os labirintos da vida. “O labirinto é uma prisão sem portas”, diz-nos; o que quer dizer, também, que a prisão é sua mais terrível expressão material: um labirinto que se encerra em grades. Sendo labiríntica tanto por sua arquitetura quanto por seu lugar limítrofe na nossa geografia moral, ela é figurada aqui como Minotauro, um monstro que só é lembrado por aqueles pelo qual o destino passa. Mas Marcus Tadeu mostra que existem também outras formas de se perder, se deixar aprisionar e se encarcerar: distrações, tentações, maus atalhos, vias fáceis, excessos de caminhos, quedas repentinas, confusões de objetivos, desvios sutis, explosões momentâneas, perdas de direção… Não faltam modos de entrar em labirintos pelas escolhas e caminhos que fazemos na vida; e quando olhamos para trás, a saída não está mais lá. A filosofia humanista destas memórias nos faz pensar, portanto, em todos esses aprisionamentos em ciclos de heteronomia que nos enredam. Muitas vezes, tornamo-nos prisioneiros no interior de nós mesmos antes de terminarmos encarcerados fisicamente. Por isso, muitos caem na prisão quando já haviam se perdido nas encruzilhadas da vida, o que nos revela como a liberdade é difícil; todavia, outros caem nela pelas tramas trágicas do destino, o que nos lembra o quanto a liberdade é frágil. Por isso, escutamos Marcus dizer, desde as primeiras linhas, que aprendeu “ser a prisão uma tragédia da qual ninguém está livre”. Uma entrada casual em briga de torcida; uma distração em revistas protocolares; um remédio que se esquece na bolsa; uma relação amorosa proibida; uma tentação de ganho pecuniário; o desafeto involuntário de um segurança carcereiro: não faltam meios de cair na prisão como num tombo. Neste sentido, a ilusão do conhecimento, a convicção de que se está no caminho certo, é um dos meios mais fáceis de se perder, pois terminamos sempre prisioneiros de algum modo quando não pensamos bem, ou quando mal refletimos, agindo como “uma criança emaranhada num novelo desfeito” em que “quanto mais tenta livrar-se, mais o fio de lã a prende”.

Se cair na prisão pode ser fácil, sair dela é mais trabalhoso, porque os corpos conseguem evadir sem que suas almas irrompam as grades que os levaram para lá; e é por isso, claro, que é tão fácil retornar. Outras vezes, todavia, a libertação ocorre já na prisão, quando se toma consciência do que o encarcera, começando a renascer de alguma forma. Uma análise das razões sociológicas dos ciclos repetitivos de heteronomia é fundamental, sendo encontrada em momentos do livro; contudo, o olhar estético-filosófico de Marcus chama a atenção para uma perspectiva não percebida e que, por isso, deixa de nos possibilitar a intuição adequada do nosso quadro: trata-se do esquecimento de que “a palavra é a essência da condição humana” e que, por isso, o logos é um caminho, por excelência, de libertação. É muito comum, tanto fora como dentro da prisão, haver aquela “bolha de silêncio e tensão”, como diz ele, que esmaga a palavra com a brutalidade humana, esta pedra bruta capaz de oprimir o aluno em seu aprendizado, o professor em seu ofício e o ser humano em sua formação, mutando e desencantando, assim, o nosso mundo. 

Na contramão deste silenciamento ensurdecedor, a escola prisional é o lugar de liberação do logos pelo saber. Sendo o espaço vocacionado para uma libertação interior, ela é a antiprisão no interior da prisão. Os alunos, presos, podem ser liberados em um processo de interlocução, que restitua a parcela de humanidade perdida pelo encarceramento. Este fato é expresso com beleza tanto no relato do trabalho da professora Adriana, quando é dito que “uma palavra de reconhecimento poderia ser a primeira que muitos deles ouviram em toda a sua vida”, quanto nas palavras da professora Andrea, quando escutamos que “o principal motivo que traz os alunos de uma escola prisional de volta às salas de aula não é a ressocialização […] mas um contato com o mundo”. Os professores podem ser, desse modo, “uma janela para a humanidade”, pois diante de seus olhares “o preso deixa de ser preso e passa a ser um ser humano como outro qualquer em demanda [tanto] de conhecimento”, quanto de reconhecimento como alguém detentor de humanidade.

Esta filosofia educativa apela para uma atenção ao que cerceia ou aniquila a formação humana em sua integridade física, intelectual e espiritual. Se ela nos faz refletir sobre o labirinto, ela se volta para a criação de asas para dele sair. Como criá-las para alçar voo? Antes de tudo, pela educação através do saber, o que depende de uma crença na capacidade de aprender do aluno. De fato, isso é comumente difícil, ainda mais quando se trata de um apenado por cometer crimes. Todavia, ele nos relata a possibilidade de uma educação prisional bem sucedida, como na sua experiência de mudança no ensino de filosofia para vinculá-la a assuntos de interesses próximos da realidade e do cotidiano dos prisioneiros. Além disso, ele afirma a necessidade do incentivo de um conhecimento sistemático, ordenado e disciplinado, que promova um sentido de autossuperação e transcendência. Afinal, muitos dos apenados careceram exatamente disso em suas vidas, enquanto que o estudante bem sucedido é um “lutador, que cai e levanta, mil vezes se necessário for”. Quando incentivados desde cedo, tais valores são decisivos para as trajetórias individuais, muitas vezes mais importantes do que as condições sociais de origem. No ensino prisional, isso importa tanto para os prisioneiros com deficiências cognitivas, como para aqueles que têm capacidade de raciocínio e de defesa de princípios éticos, mas que possuem comportamentos que os negam sistematicamente. O fato é que a grande maioria não praticou estudos, nem teve possibilidade de se desenvolver com uma interlocução dialógica, crítica e sistemática, estreitando sua capacidade de intelecção e superficializando o seu mundo. Portanto, um dos principais desafios da educação está na edificação de uma vida além do imediatismo e de seus fetiches ilusórios, reféns que são, muitos dos presos, de um triplo cegamento disseminado por toda sociedade: afetivo, estético e espiritual.

Por isso, além da palavra, Marcus fala do amor e do belo. Enquanto nossa ignorância das complexidades tende a transformar todo criminoso no Minotauro, o livro nos traz belos exemplos de como os prisioneiros têm sua ética e seus valores, com comoventes momentos de solidariedade. É o caso, por exemplo, de quando Marcus se vê trancafiado na escola, o que leva aqueles homens tidos por malditos e amaldiçoados a darem uma lição de respeito acionando uma rede de solidariedade em cadeia a favor do professor; é o caso dos sábios dizeres do preso Romário, que afirma que “nossa vida é como uma corrente: um elo depois do outro. Tá tudo ligado”; é o caso, em especial, do interesse voluntário daqueles alunos do Comando Vermelho, “perigosos, amontados”, mobilizando-se para assistirem a um ciclo de palestras sobre… o amor! 

Com efeito, o amor é o leitmotiv de todo o livro, que pode ser visto como uma apologia à experiência amorosa de mundo e de saber. É que, para voltar a falar das coisas audíveis a todos, precisamos trazer à tona esta presença invisibilizada tanto pela sociedade quanto pela crítica social: o fato de o amor ser um tema e experiência fundamentais para todo e qualquer ser humano. Mas há, além disso, uma segunda dimensão represada de nossa humanidade comum: a sensibilidade para ver, a arte do olhar, enfim, a alfabetização no belo. Aqui o professor de filosofia se funde com o historiador da arte e o artista amador. Em várias passagens, aprendemos a ver o mundo desvelando-o pelas artes; e o próprio livro é uma exposição de ilustrações feitas por Marcus (e por Patrícia Pedrosa) a fim de ressoar o texto pelo medium da expressividade artística. Contudo, o aprendizado do belo não está somente nas artes, pois nosso autor mostra como ele diz respeito, sobretudo, à forma como nos relacionamos com as coisas, as pessoas e o mundo. Neste ponto, seu relato sobre o trabalho das colegas é comovente, uma vez que mostra como a escola pode transformar seus alunos com a simplicidade dos gestos cuidadosos; com o uso criativo de papel, caneta, cola e tesoura na vivificação expressiva de um ambiente fisicamente inóspito; e com o estímulo na aquisição de um deslocamento e profundidade de perspectiva. Tal relação estética com o mundo diz respeito, em inteiro teor, com o desafio da ressocialização do prisioneiro: trata-se da aquisição de emoções do bem. Para aludir ao sociólogo alemão Hartmut Rosa, trata-se de formar os alunos para uma nova coragem de se relacionar com o mundo, que não seja mais pelos “pontos de agressão”, mas sim pelo fazer as coisas ressoarem.

Eis uma filosofia educativa para uso libertador nas escolas prisionais, e em todo nosso sistema de educação. Ela não traz nenhuma invenção da roda, pois apenas nos lembra, de forma criativa e atual, do que os clássicos já haviam descoberto sobre a natureza do humano. Para encerrar este Prefácio, gostaria de retornar à metáfora do labirinto, a fim de trazer uma última faceta do senso de complexidade proporcionado por nosso autor. Como ele diz, no mito do Labirinto, algozes e vítimas podem alternar os seus papéis: é assim que Dédalo, o criador, acaba por se tornar, ele próprio, prisioneiro de seu invento; e é assim também que o Minotauro, o monstro, pode ser tirado de seu silêncio e ganhar feições mais humanizadas em obras modernas como as de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges e Pablo Picasso. Para trazer à nossa questão, isso quer dizer que o labirinto prisional é criado para encarcerar nossos minotauros, mantendo-os em silêncio, mas este labirinto do esquecimento pode se tornar a prisão de seus criadores, multiplicando nosso enredamento em labirintos crescentes. Para nos proteger da violência monstruosa do cotidiano, multiplicamos minotauros indiferentes às fontes dos quais abundam. Esquecemos com isso que esta barbárie contra a qual lutamos reside em nossos labirintos interiores; e que o maior dos riscos é, como lembra Marcus, a criação dos próprios labirintos. Não por acaso, estes labirintos prisionais aumentam junto com os encarceramentos cotidianos em nossas casas e almas. Por isso, vale a pena deslocar o foco acompanhando nosso autor, lembrando que Dédalo, Minotauro e Teseu não compõem uma história de heróis e bandidos; e que se há um ato heroico decisivo, ele está em Ariadne, que soube, com sua sabedoria feminina, dar uma saída da prisão fazendo uso da inteligência ao invés da força, através de um simples fio fixado em um ponto a ser usado como guia seguro e flexível nos caminhos a percorrer. É desse fio de Ariadne que precisamos no fragmentado labirinto de nosso tempo. As escolas prisionais têm seu fio a fornecer aos nossos apenados. Mesmo que não haja certeza no resultado do que é feito em meio a tantas dificuldades, podemos esperar que, quando irrompem seus labirintos tendo em suas mãos alguns fios de palavra, saber e sabedoria, alguns de nossos terríveis minotauros são capazes de se retromorfosearem naquilo que eram em suas origens: nada mais que humanos, e demasiado humanos.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com). 
 Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do  presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.


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