Você poderia escrever uma análise sobre o contexto político brasileiro sob o novo governo? Foi com esta difícil pergunta que recebi um convite para escrever um texto que, em breve, será publicado na França. Tomando esse convite como um estímulo generoso a concretizar meus pensamentos, escrevi algumas reflexões sobre os desafios do novo governo. Publicamos hoje no Fios do Tempo a versão integral deste texto em português, antes dele sair em uma versão resumida em francês.
Escrito com um espírito de independência, busco me ater aqui às questões e aos acontecimentos, sem interromper a crítica por qualquer adesão político-partidária a priori. Faço isso porque considero que esse é o risco que precisamos assumir para que pensemos, substantivamente, os problemas políticos atuais.
Após uma breve contraste entre as encenações presidenciais de Lula e Bolsonaro – porque a mise en scène é coisa fundamental da vida política – , o texto entra de fronte no problema: o que precisa ser feito para desanuviar a atmosfera política no país? Apresento o que considero os vetores de força que conduziram à ascensão do populismo de direita no Brasil – com quatro diferenças em relação aos populismos em outros países – e busco expor, para cada um deles, propostas à pergunta política por excelência: o que fazer?
Em seguida, detenho-me em outras questões relativas à economia, aos movimentos sociais, às relações internacionais, ao debate público, à sociedade civil, a fim de propor tanto o que pode ser feito de bastante possível, quanto o que se poderia fazer de utopicamente realista.
Estará o novo governo ciente de que é preciso não repetir os mesmos erros e ter a coragem de assumir um novo projeto de país para além da pequena política? Saberá ele sair das bolhas autocongratulatórias que logo estouram impiedosamente para assumir os problemas políticos em sua própria grandeza?
Não estou certo de que isso será feito, mas busco contribuir humildemente com o que penso ser, em grandes linhas, o que podemos fazer a partir de agora.
Desejo, como sempre, uma excelente leitura!
André Magnelli
Fios do Tempo, 15 de março de 2023
Ps.: Agradeço a amigos pela leitura e comentários ao texto: Felipe Maia, Paulo Henrique Martins, Marco Aurélio Nogueira, Philippe Chanial, Nelson Lellis e outros mais. Isento-os claro de qualquer responsabilidade sobre o que aqui é dito.
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Uma democracia em busca da
convivialidade perdida:
uma análise independente dos desafios do novo governo
André Magnelli
A derrota de Jair Messias Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais brasileiras é o começo da saída de um purgatório político. Mas temos uma longa travessia a percorrer, plena de tateios, pois o horizonte é pouco nítido em meio à espessa penumbra no ar.
De partida, algo que deve estar nítido para todos: quem venceu as eleições presidenciais no Brasil não foi a esquerda, mas sim uma ampla frente democrática, que inclui forças políticas de centro-esquerda e centro-direita, incluindo também, de um lado, partidos de esquerda mais radical e, de outro, forças liberais e mesmo conservadoras. Lula teve um apoio considerável do establishment econômico, político e midiático, que estava ansioso por defenestrar a sinistra figura de Bolsonaro junto com seus séquitos.
O ex-presidente Bolsonaro, além de usar ilegalmente a máquina estatal e tomar as Forças Armadas como instrumento de ameaça constante, investiu no velho imaginário anti-comunista, incitando um medo de que o retorno ao poder do Partido dos Trabalhadores (PT) iria acarretar o fim da propriedade privada, a estatização da economia, a privação das liberdades, o controle das mídias, a destruição da família “tradicional”, a perseguição das Igrejas e a propagação de uma “ideologia de gênero”.1 Fazia-se isso com um aceno à base eleitoral conservadora, chegando a associar a “esquerda” ao próprio diabo. Por isso, com sua habilidade política contumaz, o presidente Luís Inácio Lula da Silva se esquivou de uma estratégia populista voltada a uma polarização entre “nós, os de esquerda” contra “eles, os de direita”.2 Caso tivesse polarizado desta forma, a derrota seria certa, pois a maioria do eleitorado a rejeitaria visceralmente, não apenas por causa das propagandas “anti-comunistas”, mas também porque existe um desencanto em parte considerável da população com a “traição” feita às esperanças depositadas no PT, por causa dos casos de corrupção e do desmoronamento da economia em 2015 no governo Dilma Rousseff.
Ciente dos riscos, Lula fez um discurso de conciliação nacional, reivindicando um retorno à política para pacificar e dar rumo ao Brasil, pondo-se como um mediador experiente e experimentado, apto a recuperar a capacidade do país de reunir, convivialmente, as diferentes partes em uma mesa de diálogo, negociação e consenso. Sua performance foi muito focada na nostalgia de realizações dos governos passados, com um discurso pouco programático sobre voltar para um Estado ao mesmo tempo atento aos pobres e aos trabalhadores e gerador de lucros inigualáveis para empresários e banqueiros; mesmo que ainda insistisse na fórmula desgastada do “nunca antes na história deste país…”, sua força popular conquistou votos tanto entre os eleitores esperançosos com a volta dos tempos de abundância, quanto entre os que não gostariam de seu retorno, mas que priorizaram tirar Bolsonaro do poder. Além disso, mesmo sem serem de esquerda ou “lulistas”, muitos votaram em Lula por estarem cientes de que ele sabe ser maior que o PT e, mesmo, maior que a própria clivagem entre esquerda e direita.3
Uma travessia na escuridão
A força do novo governo foi desafiada logo nos primeiros dias, como se sabe. No dia 08 de janeiro de 2023, o mundo assistiu assombrado a um déjà vu: mimetizando a invasão ao Capitólio por trumpistas, bolsonaristas invadiram os poderes da República com um vexaminoso espetáculo de depredação. A reação imediata do Estado, mostrando a força da lei e das instituições, foi fundamental para debelar qualquer pretensão de golpe de Estado.4 Além disso, Lula soube transformar este acontecimento em um ato simbólico de expressividade, fazendo uma encenação pública que, por natureza, faz parte da ação de governantes em uma democracia.
09 de janeiro de 2023, 20 horas e 34 minutos, após uma reunião de emergência com representantes de todos os 27 estados da República Federativa do Brasil (incluindo governantes “bolsonaristas”), o presidente desceu a rampa do Palácio do Planalto com as demais autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, atravessando a Praça dos Três Poderes na escuridão (porque a energia elétrica também tinha sido alvo de vândalos) em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF). Simbolicamente, foi traçada aí uma “travessia com”, num sinal de união de todos os poderes e instituições em torno do presidente.
Diante da cena, me veio à mente a lembrança de um ato simbólico de sentido inverso, ocorrido no dia 07 de maio de 2020, quando do ápice da pandemia de Covid-19. O presidente Bolsonaro percorreu o mesmo caminho, com ministros e empresários amigos, a fim de constranger de surpresa o presidente do STF para escutar seu protesto contra a garantia constitucional (decidida pelo colegiado da Corte) de que os governadores dos estados podiam ter suas medidas autônomas de combate à pandemia, sobretudo de confinamento e vacinação, contrabalançando a inação do governo federal. Assim, foi traçada uma “cruzada contra”, num confronto de Bolsonaro contra as instituições do Estado e, mesmo, contra o mais básico bom senso cívico.
Deste modo, a travessia encenada no dia 09 de janeiro de 2023 teve um simbolismo expressivo, que se juntou a outro que ocorreu na passagem da faixa presidencial, quando foi marcada a presença de representantes de um povo plural a dizer que os cidadãos mais vulneráveis voltariam a participar da construção da nação.
Estão aí dois atos que encenam simbolicamente a interrupção de uma putrefação da civilidade, com uma promessa de restaurar as condições básicas de uma convivialidade democrática. Contudo, não é só com símbolos que o governo terá sucesso, pois é preciso fazer coisas concretas, a começar por desmontar a bomba autoritária que foi armada.
Desmontar a bomba e desanuviar a atmosfera
Muito embora a América Latina seja associada normalmente ao populismo de esquerda, o Brasil foi um laboratório perfeito para o populismo de extrema direita. Ainda em 2018, era muito raro em nosso país pautar o tema do populismo sem identificá-lo à esquerda. Inclusive, quando escrevi dois artigos no Jornal do Brasil (JB) em maio de 2018 com uma análise dos riscos do populismo no Brasil, os leitores tiveram dificuldade de entender que eu estava tratando do que ocorreria nos meses seguintes: a ascensão de um populismo autoritário, com contornos “antissistema”.5 Com sua derrota eleitoral em 2022, Bolsonaro foi embora do país e o seu regime populista foi interrompido. Contudo, existe uma atmosfera bem contaminada, da qual ele foi o veículo mas que pode ultrapassá-lo e perseverar por outros meios.6
Durante os quatro anos, o governo Bolsonaro preencheu bem quase todas as características da anatomia do populismo, descritas por Pierre Rosanvallon: visão de povo-Uno; soberania polarizada, imediata e direta; representação-encarnação através do homem-povo; e regime de paixões e emoções (de posição, intelecção e intervenção/ação).7 As exceções principais são a ausência de recurso ao referendo (apesar das tendências de democracia plebiscitária) e a complexidade da sua filosofia nacional-securitária – pois ele se apoiou numa visão de segurança dos pontos de vista territorial e psicológico, mas não o fez da perspectiva econômica, tendo em vista que sua soberania “antiglobalista” se compatibilizava com uma economia neoliberal subserviente aos interesses dos EUA de Trump. Note-se também que, uma vez governante, Bolsonaro fez poucas formações de compromisso para ampliar sua base de apoio, continuando a se dirigir cotidianamente para as minorias mais fanáticas (cerca de ⅓ do eleitorado).8 Fato que fez com que vivenciássemos, muitas vezes, a situação esquizofrênica de um governante atuando no cargo como se fosse oposição.
Para o que nos interessa aqui, a experiência populista brasileira teve também contornos bem próprios, em decorrência de quatro elementos: (A) o impulsionamento do movimento populista pelos efeitos das operações jurídico-policiais da Lava Jato; (B) a politização das Forças Armadas; (C) a organicidade do populismo de extrema direita com a parte selvagem do capitalismo brasileiro, incluindo grupos criminosos organizados na cidade, no campo e na floresta; e (D) a presença de atores religiosos e de um simbolismo messiânico na política. Analisemos estes vetores de força, propondo como é possível desanuviar a atmosfera populista.
(A) A ascensão do movimento populista liderado por Bolsonaro esteve em sinergia com os descaminhos da Operação Lava Jato. Como analisei em outro lugar9, formou-se entre 2015 e 2018 um circuito entre juízes federais e promotores do Ministério Público, operações da Polícia Federal, mídia sensacionalista e despolitização da cidadania, que criou uma atmosfera de “democracia negativa” conforme a lógica “que se vão todos”, que sitiou a ação política.10 Este processo foi motivado por um desencantamento democrático vindo da incapacidade do sistema político de responder criativamente às reivindicações que tomaram as ruas de todo o país em 2013, conhecidas como “Jornadas de Junho”. Sendo muito plurais, essas manifestações tinham um vetor forte de ética na política, de consolidação de direitos sociais e de democratização da ação pública; contudo, as forças progressistas foram bloqueadas e enfraquecidas com a vitória defensiva de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, restando um vetor negativo de desilusão e cinismo junto com o sitiamento de um governo reeleito já fragilizado, o que fortaleceu as forças conservadoras como porta-vozes da contestação. A insatisfação cidadã passou a ser traduzida pela luta anticorrupção e em prol de valores conservadores e, cada vez mais, reacionários.
Em função do esfacelamento da credibilidade dos distintos grupos políticos, tanto antes quanto após o impeachment forçado da presidente em 2016, minorias até então inexpressivas foram ganhando força com demandas autoritárias de intervenção externa a fim de “limpar” o Estado dos corruptos e “resolver” os problemas da nação. Sabe-se como tudo isso se consumou na prisão de Lula em 2018, tirando-o da competição eleitoral. Evitando analisar as intenções e estratégias (incluindo as ilegalidades) cometidas nestes anos, sinalizo que estavam dadas as condições em 2018 para a vitória de uma liderança “antissistema” como Bolsonaro – um homem “salvo por Deus” e “apoiado pelas Armas” –, sobretudo quando o PT manteve sua candidatura com a prisão de Lula, pois isso ofereceu o polo ideal para a liderança populista emergente impulsionada por um antipetismo disseminado por toda a sociedade. Assim, pela primeira vez, o Brasil elegeu um governo explicitamente contrário aos pilares da Constituição Federal de 1988, quebrando o consenso democrático reinante desde o fim da ditadura, com o apoio – mais hipócrita do que ludibriado – de parte significativa das elites econômicas e políticas autoproclamadas “liberais”. De modo irônico, tendo surfado na onda da Lava Jato e nomeado como ministro o “herói” do combate à corrupção – o juiz Sérgio Moro –, foi Bolsonaro que enterrou de vez tais operações, a fim de salvar a sua própria pele e a de seus filhos.
Por que restituímos como se deu este processo? É porque ele permite compreender como pensa boa parte de quem votou em Bolsonaro, que foram votos anti-PT e anti-Lula. Para boa parte dos eleitores, Lula é o “candidato do sistema”, chamado pejorativamente de “descondenado”, que teria sido salvo por um establishment jurídico-político que queria salvar a si mesmo. Para eles, a eleição de Lula expressaria o fracasso das ações da Lava Jato em “mudar o país” e a resiliência da corrupção entre nós. Portanto, parte da população está ressentida com a ideia persistente de que viveríamos uma falsa democracia, cujas características bem velhas – corporativismo, patrimonialismo, corrupção, autoritarismo, desigualdade – seriam reforçadas com os governos do PT, sob liderança de um político que, segundo eles, deveria estar preso, ao invés de retornar como presidente.11 Certamente, é bizarro para quem olha de fora como tais argumentos poderiam justificar o voto em um político como Bolsonaro (um filhote menor do sistema político, incompetente e incivilizado, com provas de corrupção pessoal e indiferente aos destinos do povo); todavia, o fato é que esse é um componente central da atmosfera populista atual, que pode se alimentar do fato de Lula ser presidente para continuar desacreditando da boa fé das autoridades públicas e do funcionamento da democracia.
O que fazer diante disso? Antes de tudo, é preciso que o presidente Lula tenha um governo sóbrio nos gastos presidenciais, que evite relações pessoais com indivíduos e grupos que tenham trajetórias manchadas por corrupção12, e que seja ágil e sério na apuração de eventuais escândalos. Esta conduta pessoal deve se estender à forma de construção da governabilidade na relação entre o Executivo e o Legislativo, estabelecendo limites claros e intransigentes quanto às demandas dos grupos políticos por um uso dos cargos e órgãos do Estado. Além desse protocolo de conduta, o governo deve envidar esforços para recuperar o discurso da ética na política e do combate à corrupção, que foi uma agenda histórica do PT antes de se tornar governo, mas que foi abandonada pragmaticamente e, posteriormente, apropriada pelos conservadores. Para fazer isso, o governo tem que evitar o egoísmo partidário e a reprodução de uma retórica de polarização dissimulada, que foi muito usada para se esquivar de críticas e sustentar sempre quando conveniente a posição de vítima injustiçada e perseguida. O terceiro governo Lula deve ser exemplar no discurso e na ética, pondo-se como comprometido com a República, com a formação de consensos legítimos, com a valorização do serviço público e com o bom funcionamento das instituições, engajando-se em diálogo constante do Estado com a pluralidade da sociedade brasileira, evitando performar demais numa retórica feita para afagar os militantes partidários. Compatibilizando discurso e prática, será possível que Lula resgate a credibilidade diante da parte desencantada do povo brasileiro, não apenas de sua própria pessoa e do partido, mas também dos poderes republicanos, das forças progressistas e da promessa de democratização. Caso saiba estar fora de bolhas autorreferentes e evite fazer mentiras convenientes para auditórios particulares (que, com as mídias digitais, são logo reverberados para os outros auditórios, degradando a credibilidade pública do governante), Lula pode pôr em ação um “bom governo”, no sentido de Rosanvallon: isto é, ser capaz de personificar um governo que age de modo próximo, interativo, atento e responsável, comprometido em escutar as pessoas e em um “falar verdadeiro e veraz” (parler vrai), restituindo deste modo, após o período autodestrutivo de democracia negativa, uma legibilidade social e um horizonte de futuro no Brasil.13 Se ele se mostrar à altura desta missão, estará aberta a oportunidade de um aprendizado político que desvaneça a atmosfera populista e oxigene o espaço público, fazendo-nos ingressar em uma nova fase da democracia recente.
(B) Para que esse bom governo seja possível, é preciso resolver outros problemas muito complexos. Uma das principais dificuldades está na relação entre o governo Lula e as Forças Armadas. Como se sabe, o governo Bolsonaro teve amplo suporte das Forças Armadas, que se comprometeram tanto explicitamente (dada a ampla participação de militares em seu governo e em seu apoio), quanto implicitamente (deixando-se usar como instrumento de ameaça de golpe de Estado e sendo, para muitos, quase que o “partido oculto” do presidente). As Forças Armadas no Brasil possuem uma relação muito problemática com os poderes republicanos, tendo atuado várias vezes na desestabilização de regimes eleitos na história. Ao longo da crise política recente, resgatou-se a ideia de que elas seriam mais do que uma simples instituição de Estado, pois lhes seria facultada a responsabilidade de um “poder moderador” capaz de intervir em caso de crise institucional para “restaurar” a normalidade e a paz. Eis um ponto reiterado no governo Bolsonaro como meio de ameaça às instituições, sobretudo ao STF. Após a derrota eleitoral, os militares deram chancela às manifestações acampadas na frente de seus quartéis, e também foram coniventes com os atos de invasão e depredação dos prédios públicos em 08 de janeiro de 2023. Tais fatos desencadearam uma crise que levou a uma mudança no comandante do Exército com menos de um mês de sua nomeação por Lula.
Deste modo, um alerta foi acendido no governo recém-empossado: o quanto as Forças Armadas estão comprometidas com o bolsonarismo? Qual é a proporção de seus membros que gostaria de uma intervenção militar? Do que eles são capazes de fazer, seja individual ou institucionalmente, para desestabilizar o governo Lula? Existiriam alas radicais que estão dispostas a se aventurar em ações terroristas de desestabilização?14 Este é um problema difícil, quase enigmático, porque a cultura das Forças Armadas é pouco afeita ao princípio da publicidade; por isso, depende de atenção constante e de tateios práticos.
Parece-me que a reação do governo Lula e das instituições após 8 de janeiro foi adequada, com um sinal claro de que quem manda é o poder civil. Além disso, é necessário evitar provisoriamente pontos de atrito – como querer enfrentar interesses corporativos dos militares (privilégios da previdência especial, conteúdo pedagógico da formação etc.) – e criar pontes de comunicação e trocas entre o governo e os chefes militares. Atualmente, setores do governo querem fazer uma emenda à constituição para retirar o artigo que supostamente dá um poder de intervenção às armadas. Alguns acreditam que é inútil este desgaste com as armadas (visto que o artigo é inócuo), outros afirmam que o momento é agora de tirar este “pretexto legal” para eventual golpe. De todo modo, é preciso formar algumas alianças entre o governo civil e os militares, acionando um ciclo de dádivas que pode criar algum nível de confiança mútua. Ironicamente, temos aí uma significação inesperada para o lema de Marcel Mauss (no Ensaio sobre da dádiva) e também o mote do movimento convivialista: “se pôr a dar, opondo-se uns aos outros, sem se massacrar”… De todo modo, qualquer generosidade não pode prescindir do enfraquecimento sistemático de bolsonaristas em posições de comando na corporação, de diminuição da participação dos militares no poder civil (mandando-os de volta para a caserna) e de avanço na investigação de eventuais comprometimentos de militares com o crime organizado. Além disso, se for retomada uma política de valorização das Forças Armadas, tal como foi feita nos governos anteriores de Lula15, isso deve ser conduzido com todo o cuidado para não fortalecer demasiadamente esta instituição, uma vez que ela já deu provas de que não está muito disposta a rever sua cultura autorreferente e repensar sua função institucional dentro da vida democrática, e que, portanto, não é tão normalizável quanto se acreditava.
(C) O governo Bolsonaro foi marcado por uma ambiguidade pulsional: de um lado, o apelo à ordem, à autoridade e à disciplina, feito por uma população em busca de um superego provedor de segurança, que acreditou encontrar isso com militares de volta ao poder; de outro, uma pulsão “libertária”, desejosa de uma liberdade individual sem forma e anárquica, tendo uma relação perversa com a lei e sendo orientada muitas vezes tanatologicamente. Mesmo que muitos dos eleitores tenham investido seus anseios de autoridade em Bolsonaro por causa da identificação com as Forças Armadas, o fato é que, se havia uma estrutura libidinal em seu governo, ela era de caráter essencialmente perverso. Sua visão de sociedade está enraizada na lógica do poder das milícias paraestatais – isto é, do crime organizado armado, extrativo e predador –, capilarizadas em todo o território de seu rincão eleitoral, a cidade do Rio de Janeiro. Diga-se claro, a sociedade idealizada por ele e seus séquitos era mais parecida com o bang-bang do faroeste norte-americano do que com um Estado militar autoritário.
Por essa razão, sempre tive uma certa estranheza: como que os militares aceitavam o fato de que o presidente represente os interesses de milícias paraestatais, que são os inimigos primordiais de uma instituição como as Forças Armadas que é, por princípio, responsável pelo monopólio do uso da violência no território nacional? Além do fato mais trivial de que aqueles que tinham cargos tinham boas razões utilitaristas de manter seu apoio (alguns com supersalários “generosamente” dados), pode-se trabalhar com a hipótese de que o esclarecimento de alguns apoios está nos meandros das forças bolsonaristas com o crime organizado nas cidades (milícias, traficantes de armas e eventualmente de drogas), nas zonas rurais (os setores mais predadores da agroindústria, os “grileiros”) e das florestas (grupos organizados ilegais em garimpo de minérios, extração de madeira etc.). Neste sentido, a ação de desmantelamento das instituições de regulação, fiscalização e controle, tais como o Ministério do Meio Ambiente, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) etc., visou atender, sobretudo, aos interesses de organizações criminosas, e muitas vezes paraestatais. Tratava-se de pôr em curso um movimento de ocupação de território e de extração de valor típicos de um capitalismo predatório de caráter extrativista.16
Diante deste cenário, o governo Lula deve atacar todas estas organizações criminosas empoderadas nos últimos anos (seja por ação, seja por omissão), utilizando de inteligência policial e de recursos do Estado para reconhecer, desfazer e punir as redes de financiamento e as operações ilegais realizadas no território nacional. Isso envolve, claro, a reconstrução das instituições que foram atacadas, responsáveis pelo meio ambiente, pela regulação sanitária, pelo monitoramento aéreo, terrestre e aquífero das florestas e fronteiras, pela transparência do Estado e pela garantia dos direitos dos grupos mais vulneráveis (como os indígenas). Ações já estão sendo feitas com a revogação dos decretos que flexibilizaram a aquisição de armas pelos cidadãos (que, além de aumentar a violência ao armar indiscriminadamente os civis, proviam meios de desvio de armas para grupos criminosos), com a quebra de sigilos arbitrários impostos por Bolsonaro a informações de interesse público e com a atuação estatal no território dos Yanomami, a fim de prover assistência médica, asfixiar o garimpo ilegal e frear o genocídio a conta-gotas intencionado pela omissão governamental. Estes tipos de ação devem se ampliar, criando uma política intersetorial que convirja Ministérios e entes da federação para o combate ao tráfico de armas e drogas e, no caso do Rio de Janeiro, para realizar ações planejadas de longo prazo visando desmantelar os poderes das milícias e do narcotráfico na cidade, que estão infiltrados, em igual medida, no aparelho estatal.
Isso tudo conduz a um ponto sensível para as esquerdas: o fato de que o movimento bolsonarista tem muita força em comunidades populares que experimentam, em seu cotidiano, a perversa simbiose entre desassistência estatal, precarização econômica e violência de grupos criminosos (além da truculência das forças policiais). Apesar de discursos esquerdistas denegarem o problema a partir de uma polarização simplificadora, como se somente os “brancos”, as “classes médias” e “os ricos” tivessem dado suporte ao bolsonarismo, o fato é que ele possui um vasto apoio em classes populares (trabalhadores formais e informais, precariado, moradores de favelas, caminhoneiros, microempresários etc.) da maioria das regiões do país, exceto o Nordeste, que não se identificam com a agenda “de esquerda” e que apoiam uma política de segurança repressiva, e mesmo autoritária. Muitos chegam, até mesmo, a anseios de eugenia (por exemplo, quando se trata de usuários de drogas, principalmente os de crack). Nas camadas mais vulneráveis da população, que vivem em territórios urbanos onde inexistem direitos fundamentais como os de ir e vir, de propriedade, de segurança, de liberdade de expressão, entre outros, o ressentimento se volta contra a defesa dos direitos humanos, identificando-os como uma “defesa de bandidos” em detrimento dos direitos dos “trabalhadores” e dos “cidadãos de bem”. Essa reviravolta semântica é reforçada por um discurso escatológico pentecostal, veiculado pelas Igrejas capilarizadas nos territórios e detentoras de uma poderosa rede televisiva e radiofônica; isso porque este discurso tende a restringir os direitos de um ser humano aos sinais de eleição ou conversão, de modo que a justiça divina deve ser severa com os que já estão perdidos, que não foram livrados por Deus. Portanto, é preciso reconhecer: o Estado Democrático de Direito é uma abstração e pouco apreensível para as camadas mais vulneráveis e pauperizadas da sociedade.
Neste cenário, o governo Lula deve ter respostas à segurança pública que eliminem a raiz do autoritarismo ascendente, a saber, a insegurança econômica e existencial de largas fatias da população combinada com um desencanto sobre a capacidade das instituições democráticas darem respostas eficazes ao problema da violência disseminada. Um eventual fracasso do governo Lula em lidar com isso seria o principal motor para um retorno do populismo extremista ainda mais fortalecido. Deve-se quebrar a sensação de injustiça dos cidadãos diante de um Estado que, para eles, parece não querer combater crimes que os afetam diretamente.17 Para tanto, o novo governo deve assumir a importância de uma estratégia de segurança pública nacional para combater um crime organizado cada vez mais capilarizado em todo o território, que enfrente questões tais como: estabelecer uma ordem pública em regiões marcadas pela omissão estatal; retomar o império da lei sobre territórios com domínio de grupos paraestatais; combater a violência urbana que impacta especialmente as populações mais vulneráveis; fortalecer a inteligência policial para ceifar chefes e fontes de financiamento do crime organizado; e aumentar a eficácia punitiva do Estado sobre crimes de alto impacto (envolvendo violência contra as pessoas, posições de alto comando em organizações criminosas e crimes de “colarinho branco”). Além dessas medidas repressivas de caráter realista, as forças progressistas devem atuar sobre as raízes sociais do problema por meio de medidas voltadas à justiça social e aos direitos humanos, tais como: políticas de emprego, de habitação, de saneamento básico, de assistência social, de serviços públicos, de equipamentos urbanos, de bolsas de estudos e de esportes; o fortalecimento da vida associativa e econômica de comunidades vulnerabilizadas; a implementação de mecanismos de justiça restaurativa; e a humanização do sistema penitenciário brasileiro. Além disso, elas devem tanto construir uma política federal de proteção de defensores de direitos humanos, ambientais e indígenas18, como também empenhar-se em uma educação cívica, voltada à capacidade de agir dos cidadãos através do arcabouço democrático existente, a fim de que compreendam o sentido dos direitos humanos e sejam fortalecidos os mecanismos de intervenção cidadã sobre as instituições, dando mais concretude aos direitos de cidadania como instrumentos a serem apropriados no cotidiano.
A respeito disso, é preciso entender a clareza de uma lição: nos governos anteriores do PT, o modelo de desenvolvimento centrado no consumo abandonou qualquer pretensão de formação de cidadania, de forma que a despolitização em que se apoiou, acreditando se garantir no carisma de Lula, na continuidade da expansão do PIB e do “pleno emprego”, levou a ser abandonado e mesmo odiado pelos grupos anteriormente beneficiados; uma vez frustrados pela promessa de mobilidade social via aumento de renda e consumo, muitos aderiram ao movimento bolsonarista imputando à corrupção, sobretudo a do próprio PT, a causa de todos os problemas.
(D) Uma última característica do populismo brasileiro de extrema direita é a existência de uma liderança política messiânica. Na verdade, o messianismo na política é uma característica bem presente na América Latina como um todo e no Brasil em particular. A grande novidade está na participação crescente de religiosos na política, sobretudo de confissões evangélicas pentecostais e neopentecostais. Vale notar, inclusive, que traços messiânicos estão presentes tanto em Bolsonaro quanto em Lula. O presidente Lula se tornou uma figura quase mítica ao longo de uma história pessoal que se inicia como retirante pobre do Nordeste, passa pela liderança sindical no centro da vida industrial (o estado de São Paulo) e a criação do maior partido de massa (o PT), até se tornar, depois de ter passado por três derrotas eleitorais, o primeiro presidente de origem humilde e trabalhadora no Brasil, terminando seu mandato com uma popularidade de 87% e um reconhecimento da comunidade internacional. Mesmo que esta imagem tenha sido degradada nos anos subsequentes, é difícil compreender a força de Lula sem apreender a mística formada em torno dele em setores significativos da sociedade; e também a resistência contumaz, dentre aqueles que comungam dela, em realizar críticas aos governos ungidos por sua persona.
Por sua vez, o messianismo em torno de Bolsonaro é mais recente e inconsistente, podendo se esfumar com a perda do poder. Bolsonaro foi adquirindo popularidade há uma década por causa de sua presença midiática de caráter polemista e histriônico, que dizia coisas estapafúrdias e abjetas, veiculadas pelos mídias para sensacionalismo ou para fins de humor noir e sarcástico. Aos poucos, ele começou a ser levado a sério e suas palavras passaram a ser vistas como “autênticas” e “corajosas”, como um dizer a verdade para uma maioria silenciosa. Por essa razão, passou a ser chamado de “mito”. Todavia, para consolidar uma aura messiânica, ocorreram mais dois fatores. Primeiramente, mesmo sendo católico, ele se aproximou do mundo evangélico, tendo sido batizado no rio Jordão, em Israel; após casar com uma mulher evangélica, passou a frequentar pastores e Igrejas, usando-as como púlpito político. Como candidato à presidência, usou como lema a passagem bíblica “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32), que lhe dava um salvo conduto “religioso” para falar o que quisesse – como uma espécie de intuição instintiva e espiritualizada da verdade – contra quem quisesse. A pauta dos costumes, contra a depravação moral, a “ideologia do gênero”, o aborto, etc., foi sua bandeira, junto com uma defesa da ditadura militar – incluindo elogios ao aparelho de repressão e a torturadores –, dita como sendo uma verdade sufocada pela “hegemonia cultural” do comunismo. A cristalização de uma imagem messiânica cada vez mais fanática se deu, num segundo momento, com a representação do papel de mártir depois da facada recebida nas eleições de 2018, da qual teria “renascido” para ganhar as eleições a fim de redimir o Brasil. O fato de possuir “Messias” no próprio nome colaborou, obviamente, para a superstição. É preciso ressaltar, por fim, que as Forças Armadas brasileiras possuem também feições messiânicas – nascidas desde o início do período republicano em 1888 e aprofundada por volta de 1920 com o chamado “movimento tenentista” –; esses traços estão presentes na ideia de que o golpe militar de 1964 teria sido uma revolução que salvou a pátria dos comunistas. Eis então que o messianismo bolsonarista conflui a mística religiosa com a (auto)mistificação dos militares. Ao longo do mandato, ele foi consolidado entre os seguidores mais fanáticos, a ponto de se tornar impossível, para eles, que Bolsonaro errasse; por isso, quando tudo indicava (e indica) que havia (e há) um erro, mentira ou corrupção, eram (e são) criadas racionalizações que atribuem tudo às fake news ou a estratégias bem feitas de dissimulação por parte do líder para conduzir a guerra do Bem contra o Mal.19
Diante do novo cenário, a tendência é que o messianismo bolsonarista seja esvaziado nos próximos anos com seu afastamento do poder, pois a pessoa Jair não consegue sustentar o mito Bolsonaro. Talvez, o único elemento a contribuir para a manutenção de sua força é a possibilidade de uma prisão fortalecer a ideia de mártir, como se ele fosse um Jesus na cruz porque o povo teria escolhido Barrabás (Lula). De todo modo, resta a missão de desconstruir o mito, expondo-o em espaço público com seus malfeitos e crimes, sabendo, contudo, que uma parcela de seguidores continuará crendo nele, apesar de tudo.
No que diz respeito ao seu apoio político-religioso, as lideranças evangélicas possuem um sentido de interesse próprio que as leva a abandoná-lo facilmente em função de expectativas renovadas de poder. Essa constatação não diminui, contudo, o ponto principal, que é o fato da força política da religião no Brasil. Um exemplo disso está em que a candidatura de Lula recorreu também a uma roupagem cristã até então inimaginável, com estratégias de campanha voltadas ao público conservador, que envolveram bizarras acusações do oponente pertencer à maçonaria ou ser canibal… Outro exemplo está no surgimento de lideranças religiosas “progressistas”, que tentam traduzir a Bíblia em uma linguagem adaptada. Embora tenham aspectos positivos, há limites claros aí, pois o desafio está, para falarmos a linguagem da teoria da dádiva, em sair de uma política impregnada pela lógica mistificadora do dom ablativo para fortalecer uma lógica política do dom agonístico. Este movimento depende de que se assuma a dimensão própria do político e que se recuse a reduzi-lo a traduções de uma linguagem fundamentalmente religiosa e, no mais das vezes, alimentadora de um ciclo de superstições despolitizadoras.
Além da necessidade de criar diálogos construtivos em termos emancipadores com religiosos em geral, uma parte do desafio é dificultada pelo fato da esquerda ter voltado ao poder, pois está em jogo a capacidade de ação de movimentos sociais nos territórios, sobretudo nas comunidades mais desfavorecidas. A esquerda abandonou isso quando no poder e avançou muito pouco nisso como oposição ao governo Bolsonaro, e é provável que continue sendo uma questão menor diante do retorno das seduções do aparelho estatal. Neste sentido, há muito o que aprender com as Igrejas evangélicas, pois a força delas está no fato de que elas se capilarizaram nos meios populares, criando mecanismos de apoio mútuo e de conforto afetivo-espiritual entre os mais pobres, enquanto que a esquerda foi se encastelando nos partidos, na academia e no espaço letrados, dirigindo-se para um público autorreferente e hipercrítico, composto sobretudo pelas classes médias mais escolarizadas.
Transições para uma convivialidade democrática
Muito do que havia de convivialidade entre nós, brasileiros, perdeu-se nos últimos anos. Parte disso se deve a um virtuoso processo de “democratização fundamental” da cultura, para usar o conceito de Karl Mannheim, que pôs em crise os padrões valorativos e as visões de mundo estabelecidas, em decorrência de uma mobilidade ascendente com novas reivindicações de grupos que eram até então subalternizados. Está aí o motor das novas agendas vinculadas aos movimentos relativos à raça, ao gênero, à homoafetividade, aos indígenas e aos quilombolas, que foram conquistando uma presença organizada no espaço público a ponto de influenciarem hoje com vigor a opinião pública e as políticas estatais. O país assistiu a uma significativa revolução social e cultural nas últimas décadas de democratização, mas ela não foi acompanhada por uma mudança equivalente num sistema político ainda muito oligárquico, assim como gerou um efeito rebote na sociedade, com reações tanto por parte das classes mais favorecidas (tradicionalmente muito marcadas por preconceitos de classe, raça, religião e regionais), quanto por grupos de classe média e populares que, vinculados a valores tradicionais, viram seu mundo liquefazer com o avanço de uma reflexividade social e dos conflitos democráticos. Vale lembrar que o “Brasil profundo” é muito religioso e conservador, sendo simpático com o apaziguamento dos conflitos pela arte de “varrê-los para debaixo do tapete”. Boa parte da “cordialidade” do brasileiro sempre foi dirigida a estrangeiros, enquanto que entre nós constituiu-se uma sociedade muito desigual, hipócrita e violenta. Nos últimos anos, o caráter problemático dessa forma social veio à tona e se tornou elaborado no discurso público.
O governo Bolsonaro representou a reação de grupos a essa democratização fundamental, canalizando-a da forma mais reacionária que poderíamos imaginar. Falando em restaurar um país “unido”, ele trouxe à tona tudo aquilo que existia escondido como bons modos e hipocrisias inconfessas, dando representatividade e expressão às posições mais preconceituosas, racistas, misóginas e autoritárias que o povo brasileiro possui. Diante do padecimento afetivo em que se encontra a nação, o governo Lula tem a oportunidade de encontrar uma convivialidade democrática, que atenue a polarização restituindo um convívio entre os plurais. É a hora, no Brasil, para uma política de afetos de união nacional e de rearticulação de um discurso republicano, com a retomada de um horizonte histórico e de um projeto de país.20
Para fazer isso, é preciso que o novo governo evite alguns riscos. O primeiro está em realizar uma estratégia de convivialidade num pacto oligárquico e fisiologista. De certo modo, foi assim que os governos do PT governaram, fato que esteve no estopim dos escândalos de corrupção. Como evitar cair de novo na armadilha? Já tratei um pouco disso antes, só gostaria de sinalizar que é essencial que se evite um jogo duplo de mobilizar uma militância no espaço público contra críticos e ao mesmo tempo governar bem acomodado aos interesses oligárquicos. Esta estratégia foi autodestruidora da reputação do partido, gerando desconfortos e rupturas dentro das forças progressistas. Além disso, existe o risco do governo reproduzir as mesmas fórmulas que antes, como se fossem dar certo novamente, sendo que colapsaram por razões endógenas. Deste modo, é preciso construir um projeto novo de país, o que exige pensar tanto o possível quanto o desejável. Permitam-me desenhar rapidamente, em largos traços, o que pode ser feito.
Como foi dito, boa parte da sociedade brasileira vive num ambiente de violência e insegurança física, econômica e existencial. Neste país de semi-periferia do capitalismo global, é fundamental assumir a centralidade do Estado. Deve-se restituir, antes de tudo, sua credibilidade e seu funcionamento normal, restaurando o próprio sentido da institucionalidade pública. Além disso, é preciso ter cuidado para não retomar o projeto neodesenvolvimentista fracassado, que acabou gerando vários problemas: uma dependência do setor exportador do agronegócio e do extrativismo junto com a desindustrialização econômica; um modelo de favorecimento estatal de empresas nacionais ditas “campeãs” que reforçou um capitalismo concentrador e patrimonialista a ponto de exportar esquemas de corrupção aos países aliados; um modelo de crescimento dependente do incremento constante da renda e do endividamento das famílias para o consumo de bens em grande parte importados (sem preocupação com a criação de uma economia produtiva geradora de empregos qualificados e de riquezas apropriáveis pela nação que diminuíssem a dependência do país); a manutenção dos pilares econômicos que privilegiam interesses de banqueiros e rentistas; e a formulação de políticas de investimento e desenvolvimento baseadas em alianças entre elites econômicas e bases governistas operando em gabinetes do poder executivo com vistas a seus próprios interesses. Deste modo, com o desmoronamento da economia no segundo Governo de Dilma Rousseff, o país acirrou, ainda mais, um modelo econômico de caráter neoliberal, baseado na diminuição do Estado, na restrição orçamentária, na redução de gastos sociais e no controle da inflação via taxa de juros.
E então, o que fazer agora? É preciso, antes de tudo, reformular os próprios termos pelos quais pensamos os problemas econômicos e políticos, a fim de construir o caminho de uma sociedade que seja maior do que o mercado.21 No Brasil, assim como no mundo, a dificuldade de mudar as coisas não está apenas no fato de que existem poderosas forças sociais do establishment, mas também porque estamos em meio a uma inércia simbólica, quando boa parte dos desafios demanda mudanças epistêmicas, que alteram tanto a forma como pensamos quanto como agimos. No tocante aos poderes públicos, “trata-se do resgate do Estado como estruturalmente necessário (…) para o fortalecimento da solidariedade pública da qual é, ele mesmo, expressão institucionalizada”.22 Sem poder detalhar aqui, importa encaminhar uma política que reconheça o Estado como agente indutor de um desenvolvimento socialmente inclusivo; garantidor de direitos fundamentais; promotor da transição ecológica; e expressão ativa de uma solidariedade pública e democrática.23 É muito difícil fazer isso em sociedades fronteiriças como o Brasil, como bem mostra Paulo Henrique Martins, o que envolve lidar com as especificidades do problema territorial que não tratarei diretamente aqui. Gostaria de formular apenas alguns caminhos para efetuar tanto o que é bastante possível quanto o que é utopicamente realista.
No que diz respeito ao bastante possível, o governo Lula tem que fazer duas coisas para reconfigurar a relação entre Estado, economia e sociedade. Primeiro, ele deve tomar para si a agenda que a direita acabou por quase monopolizar, a saber, a atuação do governo para diminuir todo e qualquer peso desnecessário do Estado sobre a vida das famílias, dos cidadãos e das empresas.24 Curiosamente, a esquerda tendeu a se distanciar de uma tradição crítica emancipadora a respeito do caráter patrimonial do Estado brasileiro – que teve grandes intelectuais que participaram, inclusive, da fundação do PT nos anos 1980 –, pois ela optou por fazer um discurso em prol do Estado sem tocar significativamente nos interesses elitistas e corporativistas que fazem uso do aparelho estatal como meio de apropriação de riqueza e como reprodutor da desigualdade social. Diante do atual cenário, torna-se imprescindível que o governo Lula saiba elaborar uma relação do Estado com a sociedade que não seja apenas a defesa abstrata e genérica de sua importância. Neste caso, vale trazer para a agenda governamental um compromisso mínimo de diminuição dos seus impactos negativos, focando sobre o aumento da eficiência na prestação dos serviços públicos; o uso inteligente da digitalização para desburocratizar a máquina estatal tornando-a de acesso simples, fácil e rápido; a realização de uma reforma tributária verdadeira (e não apenas um arremedo a mais) que simplifique ao máximo o sistema de tributação revertendo sua lógica perversa, que é regressiva e reprodutora de desigualdades (pois possui uma carga maior sobre os mais pobres e desincentiva a atividade produtiva); e a sinalização de uma baixa tolerância a respeito dos privilégios de setores corporativos, atuando em igual medida no ataque ao caráter “burocrático-cartorial” do modus operandi dos poderes públicos.25
É preciso retomar, em segundo lugar, a capacidade de investimento do Estado na economia. Neste sentido, há um debate em curso no Brasil a favor de uma reformulação das políticas econômicas baseadas no controle orçamentário, criticando seus pressupostos teóricos fundados na teoria quantitativa da moeda. O economista André Lara Resende – um dos formuladores do plano econômico que criou a moeda Real (eliminando a hiperinflação no início da década de 1990) e que se tornou agora um interlocutor na política econômica do Governo – busca desconstruir a crença neoliberal de que a credibilidade do Estado depende da prova de “bom pagador” através da relação entre capacidade tributária, equilíbrio orçamentário, volume da moeda e controle da inflação.26 Ao contrário, ele busca mostrar que a liquidez orçamentária e a organização econômica dizem muito mais respeito ao nível de legitimidade democrática do Estado. Neste sentido, ele defende que uma economia como a brasileira, que não tem uma dívida externa e tem uma dívida interna em moeda nacional (isto é, desdolarizada) – ao mesmo tempo que possui uma capacidade produtiva ociosa –, pode realizar experimentos criteriosos de diminuição da taxa de juros (que é uma das maiores do mundo) e de impressão de moeda nacional sem provocar inflação ou insolubilidade do Estado. Ele propõe isso para que seja possível diminuir o custo de financiamento privado e público e aumentar as margens de investimento no crescimento econômico e nos serviços públicos. Independentemente da viabilidade, o que importa é que um dos maiores desafios de um governo popular estará, ao mesmo tempo, no aumento da capacidade de investimento do Estado e na diminuição dos custos de crédito e do poder dos Bancos em sua máquina extratora da renda da população produtiva e aposentada. Sem atacar estes dois pontos, será bem difícil haver uma política de inclusão e de diminuição das desigualdades com uma sustentabilidade de longo prazo.
Ainda no campo do bastante possível, temos que, no âmbito das relações internacionais, o governo Lula tem todos os meios de resgatar a tradição diplomática de Estado do nosso país, afirmando-se, mais uma vez, como uma liderança moral em organismos intergovernamentais e na defesa de regras do direito internacional. A diplomacia brasileira, que se consolidou tradicionalmente como sendo ao mesmo tempo idealista e pragmática, possui uma vocação para expressar os anseios de convivialidade internacional, sem se alinhar aos interesses das grandes potências. Neste sentido, é claro que Lula tem todas as condições para não apenas retirar o Brasil de imediato da posição de pária internacional, como também para recolocá-lo como um dos protagonistas na formulação de estratégias internacionais de transição ecológica em tempos de Antropoceno. Este lugar será ocupado sem muitas dificuldades no domínio do discurso e da performance, desde que erros muito graves não sejam cometidos, como seria o caso do governo se deixasse influenciar pelas tendências de setores da esquerda do Brasil se posicionarem pró-Rússia na guerra da Ucrânia. Além disso, quando se trata dos efeitos da política internacional sobre a política interna, a manutenção de um alinhamento do governo com ditaduras latino-americanas (como Venezuela, Nicarágua e Cuba) consistiria numa persistência irracional num erro27, assim como seria um equívoco retomar uma política de potência regional que promova financiamentos de obras em países aliados junto com empresas nacionais via Banco Público (BNDES). Essas duas posições não possuem um claro efeito benéfico para o brasileiro, ao mesmo tempo que têm um alto custo político para o governo, que fica vulnerável às críticas que o associam à esquerda autoritária e à corrupção.
Já que estamos falando dos erros que ocorreriam caso o governo queira repetir experiências, vale ressaltar o imperativo de cuidar para que haja uma boa relação de proximidade e distância com os movimentos sociais. Isso porque a relação dos governos petistas com os movimentos sociais teve uma dificuldade paradoxal: de um lado, a participação dos movimentos sociais com a ocupação de ministérios e cargos, bem como nos canais públicos de participação abertos pelos governos petistas, foi muito importante para o avanço dos direitos e para algum grau de institucionalização de reivindicações sociais; por outro, este fato criou um mal-estar crescente porque a máquina estatal acabou por diminuir a margem de autonomia dos movimentos sociais em sua força de contestação e atuação na sociedade civil, visto que seus participantes eram colaboradores num governo que, ao mesmo tempo, tocava uma aliança prática com interesses em contradição com suas agendas. Deste modo, a participação de movimentos sociais do governo, mediante a criação de ministérios e a distribuição de cargos, pode ser um veneno dado na forma de uma dádiva.
Além disso, a segunda década do século XXI permite que sejam formuladas, com mais clareza, as contradições principais dos novos movimentos sociais. Como assinala Paulo Henrique Martins, um dos maiores desafios das democracias está em compatibilizar os movimentos de cunho identitário com agendas voltadas a um bem comum: “Ao engrandecer o valor da diversidade cultural e social em si mesmo, sem se preocupar com a partilha e a tradução de processos emancipatórios em diferentes contextos, criam-se movimentos neotribais que desorganizam as redes de segurança sociais e comunitárias, enfraquecendo as práticas democráticas compartilhadas”.28 Segundo Martins, as democracias incorrem no risco de “parcelitarização” (no sentido de Alain Caillé) próprio do neoliberalismo, que fragmenta o comum através de derivas identitárias. Como valorizar a pluralidade das identidades sociais, fazendo avançar nos direitos das minorias e à diferença, sem parcelizar a sociedade e criar um circuito vicioso de reforço mútuo dos identitarismo de esquerda e de direita?
No contexto brasileiro, percebe-se o desconforto crescente de setores progressistas com a mimetização da lógica do multiculturalismo norte-americano, que é transplantado para a sociedade brasileira sem as devidas traduções e mediações. Aqui como lá, vivenciamos o avanço de um “tribalismo epistêmico” que está minando a experiência de verdades compartilhadas em comum.29 Ironicamente, uma parte da militância “decolonial” responde, na verdade, a uma transposição colonizada de discursos oriundos de setores universitários do Norte-Global. Por isso, o governo tem que estar atento ao modo como formulará publicamente a luta por direitos de minorias, de modo que possa avançar na construção de um projeto de Brasil que não faça tabula rasa das tradições de pensamento crítico de nosso continente, nem das promessas emancipatórias de nossa civilização – que está expressa em obras como a do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, que centra na força civilizacional de nosso povo impuro e altamente mestiço. Portanto, o debate no Brasil não está e nem deve estar destinado a reproduzir os princípios de visão e divisão da sociedade norte-americana.30 Se, como diz Martins, “quando a lógica do reconhecimento (identitário) se impõe sobre a lógica da redistribuição (política), há uma tendência para fragmentação e mesmo pulverização do bem comum”31, então é preciso não apenas reconhecer e combater o racismo, o machismo e a homofobia próprios à cultura brasileira, como também avançar em políticas públicas efetivas de inclusão`da diferença no âmbito de um bem comum republicano, sem se deixar cooptar pela lógica de um capitalismo cultural-identitário de escala global que opera, cada vez mais, pela exploração emocional de consumidores mediados por plataformas competindo por visibilidade e reconhecimento num narcisismo das pequenas diferenças. Neste sentido, o universo acadêmico precisa abandonar o registro da hipercrítica para passar a focar sobre a “força luminosa do social”, como diz Philippe Chanial32, o que demanda o compromisso com um “moderantismo radical” que permite uma convivialidade das ideias e discussões públicas.33 Somente assim conseguiremos resgatar não apenas a arte de conviver, como também o sentido de uma verdade factual e moral compartilhada.
Para concluir, gostaria de apontar para os caminhos utopicamente realistas. O governo Lula deve se empenhar em algo mais do que ser um defensor da democracia existente; ele precisa também criar novos horizontes históricos emancipadores. Como eu disse em outro lugar, “a ditadura está mirada no retrovisor, e a democracia é visada no nosso horizonte. A era da abertura democrática está atrás de nós; à nossa frente, temos o desafio maior de construção de uma sociedade em que a democracia seja uma forma de vida”.34 Penso que, neste sentido, podemos combinar as propostas do movimento internacional convivialista com o esforço de reconstrução intelectual promovido por Jean-Louis Laville e Bruno Frère em prol da retomada de uma política de emancipação.35 É urgente, para conduzir a transição econômica, ecológica e democrática demandada no novo século, única resposta realista ao momento populista que vivenciamos, fazer uma rearticulação entre teoria e prática, entre crítica negativa e crítica construtiva.
Neste sentido, é inadiável reconstruir as condições de vida social através da promoção de outras formas econômicas e institucionais. É fundamental fortalecer o associativismo, repensando o que é o econômico e como ele deve estar articulado à vida associativa, à solidariedade social e aos territórios. Se a regulação do mercado e a ação pública na proteção e promoção de direitos é uma condição fundamental da solidariedade, ela não é suficiente em si mesma, pois deve ser completada por um esforço em termos de uma solidariedade democrática mais horizontal e participativa. Para tanto, ao invés de fazer um “neodesenvolvimentismo 2.0” – que se baseava em um modelo de Estado desenvolvimentista que predominou no século XX e já tinha se mostrado esgotado na virada do século –, o governo Lula precisa fortalecer novamente os movimentos e as iniciativas associativas no âmbito da sociedade civil, sobretudo aquelas vinculadas às outras formas de economia (economia solidária, economia plural, cooperativismo etc.), que estão aptas a desenvolver formas democráticas de solidariedade. Neste sentido, há muito o que se explorar em termos de experimentação institucional, sobretudo em um país como o Brasil, que está sintonizado como poucos com a agenda ambiental ao mesmo tempo que possui uma riqueza civilizacional própria – presente, por exemplo, nos movimentos populares, indígenas, quilombolas e ecológicos – que potencializam o campo do pensável e experimentável em termos de novas vias civilizacionais.
Sabemos o quanto o Mouvement anti-utilitariste en sciences sociales – MAUSS (para quem escrevo originalmente este texto) está vinculado a essa agenda mais radical do ponto de vista emancipatório, tanto no âmbito do paradigma do dom quanto no tocante ao movimento convivialista. O convivialismo pode ser o meio, por excelência, de reconstruir nossa democracia com uma visão para além da atitude defensiva de curto prazo. No nível dos princípios conviviais, importa-nos construir uma convivência sinérgica entre distintas formas de pensamento e práticas que permitam aos seres humanos, ao mesmo tempo, se tornarem si-mesmos e viverem-em-relação-comum, de cooperarem uns com os outros e de se oporem na criação de bens relacionais e generativos, fazendo-nos desenvolver como seres vivos, sociais, morais e culturais, com uma consciência da finitude da Terra e uma preocupação compartilhada pelo cuidado do mundo. No âmbito da prática convivialista, interessa-nos avançar nas propostas concretas sobre o que fazer presentes no Segundo Manifesto Convivialista, que envolvem medidas de transição para uma sociedade ecologicamente responsável, para outros modos de economia e para uma democracia mais convivial.
Certamente, é muita coisa a se fazer em um governo de quatro anos. Contudo, seria benéfico que a frente democrática tenha a clareza de que o melhor caminho para enfraquecer o populismo extremista está na composição de uma nova filosofia política e prática democrática que rompa com as polarizações desgastadas e abra novos horizontes de ação. De fato, Lula ressurgiu do ostracismo para governar um país que precisa reconstruir sua vida democrática; contudo, é importante perceber que esta missão diz respeito a abrir uma ponte de renovação política. Isso quer dizer que todos os esforços devem ser envidados para revigorar a política fazendo emergir novas lideranças e movimentos, de baixo para cima. Caso passemos mais quatro anos necessitando de um homem político formado no século anterior e no alto dos seus oitenta anos de idade, será certo que o país fracassou redondamente em entrar numa nova era de democratização. Espero, portanto, que tenhamos a lucidez democrática de entender que nada mudará sem um espírito de generosidade e de bem comum.
Rogo assim que a tentação de querer controlar quais seriam as lideranças emergentes interessantes para o egoísmo partidário ou a benção carismática de um líder político não ouse sentar-se na reunião estabelecida por todos nós em busca de uma convivialidade perdida.
Notas
1 A educação política do brasileiro médio não é muito provida de nuances, logo, todas essas questões são classificadas no pacote “perigo comunista”, sem muito discernimento sobre a diversidade da esquerda (nem mesmo fazendo uma distinção entre esquerda tradicional e nova esquerda).
2 Devido à dificuldade de captar as nuances de um país tão complexo como o Brasil, pode parecer ao leitor estrangeiro que todo eleitor de Lula é petista e de esquerda, e que toda a esquerda é PT e Lula. Mas as forças políticas têm composições mais complexas do que isso. “O Brasil não é para principiantes”, como disse o cancionista Tom Jobim. De todo modo, diante de Bolsonaro, a esquerda convergiu para a candidatura de Lula e se mostra disposta a colaborar com o novo governo, até prova em contrário.
3 É importante sinalizar que boas análises das correlações de força e das instituições no Brasil (que são indiferentes ao sensacionalismo midiático e ao emocionalismo militante) sabem que, mesmo durante o Governo Bolsonaro, sempre houve uma baixíssima probabilidade de haver um golpe de Estado – o que era pretendido pelo presidente e seus próximos, que nunca tiveram o cuidado de esconder as suas ambições autoritárias. É que não havia condições internas e internacionais para uma aventura autoritária (ao menos que fosse bem-sucedida, isto é, que não fosse debelada em poucas horas ou dias). Após a derrota de Trump, a margem para fazer um golpe foi reduzida a quase zero. O que havia como possibilidade é o caminho da “democratura” em uma eventual reeleição com um Congresso Nacional mais fortemente governista (o que ocorreria em caso de vitória de Bolsonaro, visto que ele teve surpreendente sucesso nas eleições legislativas), pois lhe permitiria avançar em “reformas” estatais típicas de regimes populistas contemporâneos, tanto os de direita (como o húngaro, o russo e o turco), quanto de esquerda (como o venezuelano e o nicaraguense), com a destruição da independência e viabilidade de instituições contramajoritárias como autoridades independentes, cortes constitucionais, imprensa etc. Mesmo assim, isso não seria tão fácil, dada a inabilidade política de Bolsonaro para agir coletivamente, o que fez com que nem mesmo conseguisse construir um Partido político para si (fracassou na tentativa de fazê-lo, apesar de ter o poder nas mãos e dezenas de milhões de seguidores…).
4 Sua aliança com o antigo rival político, Geraldo Alckmin (que foi liderança do PSDB, partido que polarizou com o PT desde o início da democratização até a chegada de Bolsonaro), foi uma estratégia política decisiva que desarmou as acusações de comunismo e as precauções de forças liberais e conservadoras. A militância de esquerda mais aguerrida, que aprendeu por tanto tempo a acusar Alckmin de católico ultraconservador, autoritário e mesmo de fascista, teve que reprogramar velozmente os seus códigos, atualizando a lista de pessoas com quem estavam dispostos a conviver.
5 Magnelli, André (2018) O que os populismos querem dizer, Jornal do Brasil, 21 de maio; Magnelli, André (2018) O risco de um populismo antipolítico, Jornal do Brasil, 10 de junho. Naquele momento, ninguém imaginaria que o candidato pequeno e obscuro Jair Bolsonaro venceria as eleições no final do ano, alavancado pela facada que recebeu em um comício, que o levou a ter cobertura midiática permanente e a explorar a imagem messiânica de um mártir que pôs sua vida em risco para salvar o Brasil dos corruptos e do comunismo.
6 Sigo aqui a boa distinção de Rosanvallon, no livro referenciado na próxima nota, entre os movimentos populistas, os regimes populistas (normalmente híbridos) e a atmosfera populista mais ampla.
7 Ver Rosanvallon, Pierre (2020) O século do populismo: história, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
8 Ocorreram acomodações com as instituições a fim de durar no cargo e não sofrer o impeachment. O caso mais ilustrativo foi a aliança do governo com a parcela mais fisiológica do Congresso Nacional – composta por partidos sem ideologia que funcionam na base do “toma-lá-dá-cá”, chamados pejorativamente de “Centrão”. Tendo sido eleito com discurso contra o Centrão, Bolsonaro acabou fortalecendo este grupo como nunca em seu governo fragilizado e caótico, entregando superpoderes orçamentários para o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, representante dos interesses deste grupo.
9 Magnelli, André (2018) O risco de um populismo antipolítico, Jornal do Brasil, 10 de junho; Magnelli, André (2019) À prova do populismo. In: Magnelli, André; Maia, Felipe; Campos, S. L. de S. Uma democracia (in)acabada. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
10 Sobre este conceito de “democracia negativa”, ver Rosanvallon, Pierre (2006) Rosanvallon, Pierre [2006] (2022) A contrademocracia: a política na era da desconfiança. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
11 Tendo em vista que os governos de Lula valorizaram a corporação, as razões pelas quais as Forças Armadas se voltaram contra o PT precisam ser melhor esclarecidas. A principal razão parece vir do ressentimento suscitado pela criação, no governo Dilma Rousseff, da Comissão de Memória e Verdade sobre os crimes cometidos por agentes de Estado na ditadura militar (1964-1985). De seu lado, os militares alegam que a entrada na cena política se deveu à crise desencadeada pela corrupção sistêmica e o aparelhamento do Estado por governos da esquerda; contra isso, eles trariam seus serviços marcados por suposta integridade, racionalidade técnico-administrativa e meritocracia. Esta alegação, que tem um forte apelo nas classes médias e populares, revelou-se ainda mais inverossímil após a presença ativa e ostensiva dos militares em um governo ineficiente, incivil, aparelhador e corrupto como o de Bolsonaro.
12 Uma boa parte desta ideia de guerra cultural contra a esquerda é uma importação do discurso e das práticas dos conservadores norte-americanos, sobretudo na cartilha de Steve Bannon, com suas estratégias de avanço internacional de uma extrema direita. Inclusive, os bolsonaristas usaram bastante a linguagem norte-americana dos direitos à liberdade de expressão para assumirem posições abertamente golpistas, seguindo as estratégias de Donald Trump. Contudo, a tendência entre os analistas de atribuir a Bannon uma influência direta sobre o bolsonarismo dificulta compreender as fontes internas do movimento de extrema direita no Brasil, que são mais enraizadas na tradição política e cultural do país – e potencialmente mais persistentes – do que pode parecer quando se lhe atribui ser efeito de um estrategista norte-americano em marketing político.
13 Infelizmente, quando foi à Europa logo após ter sido eleito, Lula mostrou não estar muito consciente desse desafio quando pegou emprestado o jatinho de um empresário amigo do setor de Seguro de Saúde Privada com problemas concretos com a justiça brasileira (tendo sido condenado a devolver centenas de milhões de reais ao erário público). Mas, felizmente, ele buscou se explicar, mostrando que percebeu o recado dado pela opinião pública.
14 Ver Rosanvallon, Pierre (2015) Le bon gouvernement. Paris : Seuil. O Ateliê de Humanidades Editorial vai publicar este livro agora em português, buscando contribuir com a renovação do debate intelectual e político sobre democracia no Brasil.
15 Para o detalhamento da proposta, ver Magnelli, André; Pontes, Thiago Panica (2020) O fim de uma era: por uma sociedade maior do que o mercado, Fios do Tempo,04 de maio.
16 Não tenho como entrar nos fatores que levam a uma parcela significativa da população a pensar deste modo. Reduzo-me aqui a constatar a existência desta crença.
17 Os setores agroindustriais mais modernos, conectados com o mercado internacional, sofreram o risco permanente de ter prejuízos com fechamentos de mercado por causa de sanções socioambientais, sendo, por isso, um outro caso a ser estudado o porquê deste setor não ter se tornado uma voz de oposição aos desvarios do bolsonarismo.
18 Como foi o caso do soldado Bolsonaro, que tramou explodir uma bomba nos anos 1980 para gerar um incidente que interrompesse a abertura democrática.
19 Ibid.
20 As demonstrações de Lula são muito profícuas neste sentido. Após as enchentes e os desabamentos de encostas devastadores no litoral norte do Estado de estado de São Paulo, Lula mostrou sua capacidade de diálogo e cooperação com o governador de São Paulo Tarcisio de Freitas (que era vista como a principal conquista eleitoral “bolsonarista”) e o prefeito da cidade mais atingida (filiado ao partido de oposição PSDB). Foi uma clara encenação amistosa e recíproca de que os interesses da República e do povo estão acima das divisões partidárias.
21 Ver: Magnelli, André; Pontes, Thiago Panica (2020) O fim de uma era: por uma sociedade maior do que o mercado, Fios do Tempo,04 de maio.
22 Além deste compromisso mínimo, é preciso uma forma criativa de reformar o Estado com fins emancipatórios. É o que faz o trabalho mais recente de Paulo Henrique Martins, que desenvolve uma análise do papel da dádiva para a democratização da relação entre a associação secundária do Estado e as associações primárias. Sem poder entrar em detalhes, remeto a esse inovador livro recém-publicado: Martins, Paulo Henrique (2023) Políticas da dádiva: associação, institucionalidade, emancipação. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial (no prelo).
23 O presidente Lula recorre algumas vezes a um imaginário sindicalista do século XX que entra em conflito com uma sociedade brasileira bem diferente. Por exemplo, ele afirmou recentemente que quem trabalha no Brasil são os pobres, e não os empresários. Esta afirmativa, que poderia ser elogiada por alguns devido à sua simplicidade polarizadora, mostra uma desconexão com as transformações sociais recentes. Uma larga fatia da economia é composta por uma esmagadora maioria de micro- e pequenos empreendedores em relação às grandes empresas; e existe uma massa significativa de uma economia informal, associativa ou de precariado composta por pessoas que não se identificam como “trabalhadores” (pois isso remete ao assalariado), mas sim como “empreendedores”, “batalhadores”, tendo um forte orgulho em ter os seus próprios negócios para ganhar a vida, sem ter que obedecer a um “patrão”. O horizonte discursivo de Lula continua a ser o da generalização do trabalho assalariado, que nunca aconteceu no Brasil – nem mesmo do “pleno emprego” (visto que os cálculos de emprego só consideram como desempregado quem procura emprego, e não quem está no setor informal) -, e que se torna mais impossível ainda dadas as mutações recentes do capitalismo.
24 O apoio da cúpula do PT e de militantes esquerdistas em geral a governos como os da Venezuela, de Nicarágua e de Cuba reforça um sentimento difuso dos cidadãos comuns de que a esquerda brasileira não teria grande apreço à democracia. Estas críticas não vêm apenas dos que se identificam com uma posição de direita, mas também de muitos que são de esquerda, mas que consideram que estas adesões revelam um aprisionamento de certa esquerda partidária, institucional e mesmo universitária a ídolos de um passado que já se foi.
25 A respeito disso, ver Rosenfeld, Sophia (2023) Democracia e verdade: uma breve história. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial (em especial o prefácio à edição brasileira).
26 Ibid.
27 Neste sentido, a presença de Silvio Almeida como ministro do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania é muito profícua, pois é um intelectual de singular competência. Em mais um discurso incisivo, e talvez histórico, feito no segmento de Alto Nível da 52a Sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra (27 de fevereiro), ele anunciou uma política federal de proteção aos defensores de direitos humanos e militantes ambientais, que foram especialmente atacados extremismo de direita nos últimos anos.
28 Voir Chanial, Philippe (2022) Nos généreuses réciprocités: tisser le monde commun. Paris: Actes Sud.
29 As campanhas populistas de extrema direita trabalharam sistematicamente na associação das esquerdas ao crime organizado, sobretudo ao tráfico de drogas. Diante de uma população despolitizada e mal instruída, a ausência de discursos progressistas publicamente articulados que assumam a necessidade de combater crimes e criminosos sem reduzi-los a uma causa secundária da desigualdade social, combinada com a tendência da esquerda de se associar ainda, de modo voluntário, a grupos armados da América Latina que perseveraram como narcotraficantes – como as FARCs –, fazem com que as fake news extremistas soe como uma evidência de culpabilidade aos ouvidos de muitos. É fundamental, portanto, que as esquerdas aprendam a se reposicionar diante das expectativas das classes populares e médias, de modo a não serem reféns fáceis de campanhas difamatórias.
30 Martins, Paulo Henrique (2023) Políticas da dádiva, op. cit.
31 Caillé, Alain (2021) L’urgence d’un modérantisme radical s’émanciper sans s’étriper. Paris: INGED/MAUSS.
32 A análise de Bourdieu sobre as “artimanhas da razão imperialista” se mostram bem premonitórias para tratar de alguns problemas das lutas sociais e políticas no Brasil: Bourdieu, Pierre, Wacquant Loïc (2002) Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. Estudos afro-asiáticos, 24 (1).
33 Ver Resende, André Lara (2022) Camisa de força ideológica: A crise da macroeconomia. São Paulo: Portfolio-Penguin.
34 Magnelli, André (2018) O risco de um populismo antipolítico, op. cit.
35 Frère, Bruno; Laville, Jean-Louis (2022) La fabrique de l’émancipation. Paris: Seuil. A publicação deste livro em português sai agora pelo Ateliê de Humanidades Editorial.
Referências
Bourdieu, Pierre, Wacquant Loïc (2002) Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. Estudos afro-asiáticos, 24 (1).
Chanial, Philippe (2022) Nos généreuses réciprocités: tisser le monde commun. Paris: Actes Sud.
Caillé, Alain (2021) L’urgence d’un modérantisme radical s’émanciper sans s’étriper. Paris: INGED/MAUSS.
De França Filho G.C., Magnelli A., Eynaud P. (2022) Bridging the Social and Ecological Transition: A Development Through Democratic Solidarity. In: Baikady R., Sajid S., Nadesan V., Przeperski J., Islam M.R., Gao J. (eds) The Palgrave Handbook of Global Social Change. Palgrave Macmillan, Cham.
Frère, Bruno; Laville, Jean-Louis (2022) La fabrique de l’émancipation. Paris: Seuil [em breve: A fábrica da emancipação. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial].
Internacional Convivialista (2020) Segundo Manifesto Convivialista: por um mundo pós-neoliberal. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
Magnelli, André; Pontes, Thiago Panica (2020) O fim de uma era: por uma sociedade maior do que o mercado, Fios do Tempo,04 de maio.
Magnelli, André (2018) O que os populismos querem dizer, Jornal do Brasil, 21 de maio.
Magnelli, André (2018) O risco de um populismo antipolítico, Jornal do Brasil, 10 de junho.
Magnelli, André (2019) À prova do populismo. In: Magnelli, André; Maia, Felipe; Campos, S. L. de S. Uma democracia (in)acabada. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
Martins, Paulo Henrique (2023) Políticas da dádiva: associação, institucionalidade, emancipação. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial (no prelo).
Rosenfeld, Sophia (2023) Democracia e verdade: uma breve história. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial
Resende, André Lara (2022) Camisa de força ideológica: A crise da macroeconomia. São Paulo: Portfolio-Penguin.
Rosanvallon, Pierre [2006] (2022) A contrademocracia: a política na era da desconfiança. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
Rosanvallon, Pierre (2015) Le bon gouvernement. Paris : Seuil.
Rosanvallon, Pierre (2020) O século do populismo: história, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
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