Após ter publicado “O século do populismo: história, teoria, crítica” (2021), que entrou na lista da revista 451 dos melhores livros de ciências sociais de 2021, o Ateliê de Humanidades Editorial está trazendo ao público brasileiro, em parceria com a editora Seuil e com um apoio do Consulado da França, a “tetralogia das mutações da democracia contemporânea” de Pierre Rosanvallon: A contrademocracia (2006), A legitimidade democrática (2008), A sociedade dos iguais (2011) e O bom governo (2015). Com este projeto, o Ateliê de Humanidades tem o intuito de contribuir para o aprofundamento e a renovação do debate sobre a democracia no Brasil, feito tanto nas universidades quanto no espaço público.
O primeiro livro da tetralogia, “A contrademocracia: a política na era da desconfiança”, está sendo lançado agora no dia 02 de setembro. No meu posfácio, apresento o percurso e o pensamento de Rosanvallon, que é, sem dúvida, um dos principais pensadores do tempo presente. Conforme expectativa manifesta pelo próprio autor, esperamos que esse trabalho contribua para o conhecimento e a recepção de sua obra no Brasil.
Por esta razão, publicamos o posfácio agora (e publicaremos a apresentação de “A contrademocracia” pelo tradutor Diogo Cunha) também em formato digital. Esses materiais se somam a outros feitos em torno de Rosanvallon, disponíveis em texto, vídeo e podcast no nosso site ateliedehumanidades.com.
Fios do Tempo, 22 de agosto de 2022
André Magnelli
Nas mutações da democracia:
a obra de Pierre Rosanvallon
André Magnelli
Pierre Rosanvallon (1948-) é um dos principais pensadores do tempo presente, destacando-se, sobretudo, como historiador do político e teórico da democracia. Ele construiu uma vasta obra, com dezenas de livros, muitos tidos como clássicos em seus campos de investigação. Na minha perspectiva, ele integra uma constelação intelectual formada pelos egressos da revista Socialisme ou Barbarie (1948-1967), especialmente Cornelius Castoriadis e Claude Lefort; sob influência desse último, autores como Marcel Gauchet (1946-), Alain Caillé (1944-) e o próprio Rosanvallon compõem a segunda geração de um “aparentado francês” da teoria crítica da Escola de Frankfurt, que tem contribuições originais para o pensamento crítico contemporâneo.[1]
Rosanvallon nos deu, em seu testamento intelectual Notre histoire intellectuelle et politique, 1968-2018, um relato de sua trajetória por cinquenta anos como um dos protagonistas da construção da “segunda esquerda”.[2] Por certo, sua biografia é atípica para um intelectual catedrático do Collège de France. Tendo sido diplomado, em 1969, na École des hautes études commerciales (EHEC), ele estaria normalmente destinado à vida empresarial, mas um estágio operário na Renault em 1967 o fez descobrir uma vocação para a militância sindical. Ele ingressou então no coração do mundo do trabalho com uma atuação na organização Confédération Française Démocratique du Travail (CFDT). Entre 1968 e 1978, ele cumpriu as funções de conselheiro econômico, secretário confederativo e chefe de órgão de reflexão da CFDT; além disso, ele assumiu direção da revista CFDT-Aujourd’hui e atuou como conselheiro político de Edmond Maire. Seus anos na CFDT lhe proporcionaram “o sentimento de participar de um mundo que avançava, suscitando energias e se redefinindo”[3] e, por isso, seria possível ter avançado na vida político-sindical, mas ele optou por ingressar na Universidade de Paris-Dauphine, realizando dois doutorados, em História e em Letras e Ciências Humanas. Entre 1978 e 1982, ele se torna diretor do centro de pesquisa Travail et Société dessa Universidade, vinculando-se a Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e François Furet. Após a publicação de suas pesquisas de doutorado, ele é eleito, em 1983, mestre de conferências na École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e, em 1989, torna-se diretor de estudos da EHESS na cátedra de “História e Filosofia do Político” no domínio de História e Civilizações da Europa. Dirigiu por lá também, de 1992 a 2005, o Centro de estudos políticos Raymond Aron. Por fim, foi eleito em 2001 para a cátedra de “História moderna e contemporânea do político” do Collège de France (2001-2018).
No contexto de tradução da sua obra pelo Ateliê de Humanidades Editorial, este posfácio tem o objetivo de apresentar ao leitor brasileiro o percurso e o pensamento de Pierre Rosanvallon, mostrando, em especial, como emergem as questões que animam a “tetralogia das mutações da democracia” que por ora publicamos. Podemos organizar o seu itinerário distinguindo em quatro eixos de pesquisa, que se sucedem em uma ordem quase cronológica, mas com sobreposições e entrecruzamentos. O primeiro eixo, desenvolvido em meados dos anos 1970, foi dedicado ao problema das transformações da cultura política de esquerda desde os anos 1960; o segundo, empreendido na passagem de 1970 a 1980, mas que se estende até meados de 1990, voltou-se para uma reconstrução histórica do liberalismo, um diagnóstico da crise do Estado de Bem Estar e uma reflexão sobre a nova questão social; o terceiro, elaborado desde o início de 1980, com estreita vinculação ao anterior, empreendeu, por vinte anos, uma ampla investigação do modelo político francês e da história da democracia na França; por fim, o quarto e último eixo, realizou, de 2000 até hoje, um diagnóstico da crise e das mutações na vida democrática, do qual resultou a tetralogia das mutações da democracia contemporânea.

Em busca de uma nova cultura política
A geração intelectual de Rosanvallon vivenciou o enfraquecimento da esquerda clássica e os acontecimentos de Maio de 1968, num momento que exigiu a reformulação do imaginário progressista. Em seu relato do período, ele narra como suas experiências sindicais lhe possibilitaram perceber as desconexões entre os discursos de vanguardas progressistas e a realidade vivida no cotidiano do mundo do trabalho. Além disso, ele teve a oportunidade “de viver e trabalhar no meio daqueles que farão a teoria [da revolução-civilização em curso com maio de 1968] e buscarão desenhar o seu devir”.[4] Sob influência de diversos autores, como Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, André Gorz, Ivan Illich, Henri Lefebvre, Michel de Certeau e Michel Foucault, ele formou uma convicção, com a qual continuará convivendo, de que “tínhamos uma inteligência insuficiente de nossa indignação e de nossas críticas”.[5] De forma retrospectiva, podemos perceber se delineando já neste momento uma preocupação com a necessidade de repensar a teoria da emancipação e os meios práticos de realizá-la.
Seus primeiros livros se dedicaram em meados de 1970 a uma análise das transformações da cultura política de esquerda. Em 1976, ele publicou um estudo que analisa, quase que no calor da hora, o topos central da nova esquerda francesa: a autogestão.[6] Em L’Âge de l’autogestion, ele entende a proposta autogestionária como uma prática social que teria reabilitado o político, opondo-se tanto à social-democracia quanto ao socialismo burocrático-totalitário. Este ideal autogestionário se propunha a alargar a democracia, fazendo com que ela saísse de sua redução ao sufrágio universal pela extensão da prática democrática a outros âmbitos, como na vida privada e no campo do trabalho e da gestão das empresas. Rosanvallon faz um balanço crítico dessa cultura, mostrando suas confusões, ilusões e insuficiências. Ele mostra que “autogestão” foi uma palavra da moda, de caráter labiríntico, que serviu muito mais como uma afirmação de identidade da segunda esquerda do que como uma forma política possível.
Todavia, apesar das críticas, podemos reconhecer na cultura autogestionária alguns elementos que marcam o seu pensamento. Ele continuará, por exemplo, a defender a intuição central dos movimentos autogestionários, que afirmam uma visão mais desinstitucionalizada, cotidiana e exigente de democracia, em que o ideal de emancipação deve ser generalizado, tornando indissociáveis o individual e o social, o civil e o político, o cuidado de si e o ideal coletivo. Além disso, ele defende, desde então, um realismo político orientado: (a) pela consciência das dificuldades do exercício democrático do poder; (b) pela interrogação sobre as condições de possibilidade da democracia; e (c) pela intenção de uma reapropriação política, sempre problemática e aporética, do poder pela sociedade. Portanto, já em sua primeira obra, ele valoriza uma problematização política orientada para uma experimentação social de cunho pragmático, desprovida dos dilemas entre reforma ou revolução, liberalismo ou democracia.
Seu diagnóstico sobre a esquerda se prolonga em 1977, quando publica um livro juntamente com uma outra liderança da segunda esquerda francesa na época, Patrick Viveret: Pour une nouvelle culture politique.[7] Eles propõem uma interrogação sobre o próprio sentido do que é “ser esquerda”: o que quer dizer “mudar a sociedade” rumo a um mundo de justiça, igualdade e democracia? Entendendo a cultura política de esquerda como composta por um conjunto de representações e práticas que constituem uma concepção e uma estratégia de mudança social, eles definem a esquerda francesa como tradicionalmente “social-estatista”, fundada em três crenças arraigadas: um projeto de sociedade reunificada; o caráter progressivo das forças produtivas; e o reconhecimento do Estado como agente privilegiado da mudança. Mas não é possível que o projeto de uma sociedade reunificada venha a se tornar totalitário? E que o “desenvolvimento das forças produtivas” venha a acarretar regressos sociais? E afinal, será mesmo que o Estado é o principal agente de mudança social? Com uma crítica tanto ao social-estatismo quanto à social-democracia, eles defendem a cultura política da nova esquerda, caracterizada por quatro traços: a centralidade da sociedade civil; a estratégia de experimentação social; a transformação do militante em novo empreendedor; e a importância de um trabalho constante, reflexivo e deliberativo de construção política da experiência democrática. Deste modo, recusando-se a qualquer fantasma de uma sociedade ideal, eles afirmam a importância de uma lucidez democrática, comprometida com o regime democrático-liberal. Tal compromisso marca toda a obra de Rosanvallon.
Liberalismo, Estado de Bem-Estar e a nova questão social
As rupturas da segunda esquerda com o pensamento dominante no século XX remetiam às primeiras formulações do programa emancipatório da modernidade. Rosanvallon relata assim, de forma retrospectiva, que os estudos sobre a cultura autogestionária lhe suscitaram uma “necessidade vaga e imperiosa de retornar à emancipação das origens”.[8] Isso porque ele percebeu que as demandas da nova cultura política eram marcadas por ideais emancipatórios cujas origens lhe eram desconhecidas. Ele adquiriu, então, um interesse crescente por investigações históricas sobre o liberalismo clássico, o Esclarecimento, a Revolução Francesa e o movimento operário do século XIX, pois eles foram diferentes momentos de emergência de ideais emancipatórios, que foram estagnados, desviados ou degradados ao longo do tempo. Este interesse histórico estava vinculado, de igual modo, a uma preocupação com o diagnóstico do presente, especialmente com a crise da social-democracia europeia. Deste modo, na passagem dos anos 1970 aos 1980, Rosanvallon empreendeu investigações em duas frentes articuladas: de um lado, ele fez um estudo histórico sobre a gênese do liberalismo econômico e da sociedade de mercado; e, de outro, ele fez um diagnóstico da crise do Estado de Bem Estar e da transformação da questão social.
Em Le capitalisme utopique: histoire de l’idée de marché (1979)[9], que foi sua tese de doutorado em História, ele pesquisou a gênese da ideia moderna de mercado e da utopia de um capitalismo autônomo, regulador e instituinte do social. A partir do problema conceitual e institucional da relação entre o social e o econômico na constituição do Estado-nacional, ele reconstruiu a trajetória da ideia de mercado, desde o direito natural, o utilitarismo e a economia política dos séculos XVII e XVIII até a formação, nos séculos XIX e XX, das utopias liberais (a utopia capitalista de uma sociedade-mercado, a utopia antropológica do individualismo econômico e a utopia regulatória de um reino do puro direito) e de seus inimigos (os anti-liberalismos moral, econômico e jurídico).
Em seguida, ele enveredou em pesquisas em torno de um tema constante a partir de então: a questão social e o papel do Estado para uma sociedade justa e democrática. Ele o aborda através de uma interpretação da evolução das instituições de solidariedade e das teorias da justiça. Em La Crise de l’État-providence [A crise do Estado de Bem Estar] (1981), Rosanvallon faz um diagnóstico das razões intelectuais e institucionais da crise do regime social-democrata e keynesiano de bem estar social.[10] Dialogando com a crítica liberal ao que os franceses chamam de “Estado providência”, ele se recusa a apenas defender a recuperação deste modelo de Estado e opta por esboçar uma conceituação de “Estado pós-social-democrata”, que esteja além da alternativa entre privatização ou estatização e à altura de uma sociedade civil autonomizada, complexa, descentralizada e individualizada. Na sequência deste livro, ele publica em Misère de l’économie (1983) suas crônicas de La Libération, onde ele diagnostica a experiência dos diversos atores sociais com os fracassos crescentes tanto da regulação do social quanto do voluntarismo econômico.[11]
Seu propósito de repensar a questão social se amplia em obras dos anos 1990. Em Le nouvel âge des inégalités [A nova era das desigualdades] (1996), livro escrito com Jean-Paul Fitoussi[12], Rosanvallon faz um diagnóstico da crise contemporânea do Estado de Bem Estar, mostrando como ela está associada ao surgimento de novas desigualdades na era da mundialização, com múltiplas crises: o individualismo negativo e a pane das instituições de construção do laço social e da solidariedade (crise antropológica); a crise das formas de relação entre economia e sociedade (crise do trabalho); o mal-estar identitário e os novos sofrimentos psíquicos (crise do sujeito); e o declínio do coletivo e a pane do político (crise do político). Diante de tal cenário, ele faz um repertório dos desencantos resignados e das ilusões nostálgicas, mas propõe, além disso, um reformismo radical capaz de recuperar o sentido da democracia. Por sua vez, em La nouvelle question sociale: repenser l’État-providence [A nova questão social: repensar o Estado de Bem Estar] (1995), escrito um ano antes, ele desenha os contornos de tal reformismo, que deve estar voltado a refazer a solidariedade, renovar a nação e repensar os direitos. A renovação da questão social exige, para ele, sair do antigo “Estado passivo-providência” rumo a um “Estado ativo-providência” que desenvolva uma cidadania social, com justiça, equidade e inclusão, adequada à nossa era de individualização e de pluralização social.
Tais reflexões sobre a questão social retornarão no terceiro livro da tetralogia das mutações da democracia, La société des égaux (2011), sobre o qual falamos mais à frente. No que interessa agora, importa sinalizar que estes estudos já têm por um dos principais problemas a “excepcionalidade” do modelo político francês e da democracia na França. Contudo, é num outro conjunto de obras que essa problemática adquire contornos de uma ampla agenda de pesquisa que se prolongará por vinte anos.
Uma história filosófica da democracia moderna
Diante da crise do pensamento sobre a democracia, Rosanvallon propôs uma reflexão sobre o político através de uma história da democracia moderna. Neste sentido, ele segue um caminho assemelhado a outros intelectuais da vertente francesa de teoria crítica, como Lefort, Castoriadis e Gauchet. No que interessa aqui, cabe-nos tratar de quatro pontos: a originalidade da abordagem metodológica; o problema da especificidade do modelo político francês; a realização de uma história da democracia francesa; e a proposta de uma teoria da democracia complexa.
A história filosófica do político
Os princípios e regras metodológicas de Rosanvallon foram apresentados na aula inaugural do Collège de France (2002), sintetizados no que denomina de “história conceitual (ou filosófica) do político“.[13]
De modo sintético, sua démarche pode ser descrita por cinco características: primeiramente, ela tem por base o conceito de o político, entendido com um trabalho de reflexão, representação, construção e experimentação de uma sociedade sobre si mesma, o que constitui um constituição ou regime político;em segundo lugar, ela assume a conjunção entre história dos conceitos e história sociopolítica, entre teoria democrática e história da democracia, de modo que a investigação opera na interface entre história, filosofia e política; em terceiro lugar, ela tem uma historiografia de caráter interdisciplinar, que abrange a história política, a história dos conceitos, a história social, a história das ideias e a história do tempo presente; em quarto lugar, inspirado em parte pela noção de episteme de Foucault, ela apreende o conjunto de uma época e, por isso, abrange uma multiplicidade bem exaustiva de documentos, sem privilegiar a priori uma forma de saber, cultura ou expressão; e, em quinto lugar, ao conjugar pragmatismo, estruturalismo e hermenêutica, ela analisa as formações que emergem das interações entre conceitos políticos, elaborações interpretativas, situações práticas, invenções institucionais e processos de aprendizado, tudo isso dentro de um quadro histórico que estrutura um campo dos possíveis.[14]
O liberalismo capacitário e o modelo político francês
Um exemplo de história filosófica do político está presente no seu primeiro livro sobre a história da democracia, escrito antes mesmo de sistematizar a abordagem historiográfica: a tese de doutorado em Letras e Ciências Humanas, Le Moment Guizot (1985).[15] Nele, a investigação sobre a origem do liberalismo se articula com uma pesquisa sobre a especificidade do modelo político francês. Rosanvallon remonta às origens do debate político em torno das relações e tensões entre o liberalismo e a democracia, que foi realizado na França, após a Revolução Francesa e o I Império de Napoleão Bonaparte, no período da Restauração e da Monarquia de Julho (entre 1814 a 1848). Ele mostra como François Guizot (1787-1874) e os chamados “liberais doutrinários” articularam o sistema conceitual do “conservadorismo liberal”, que é posterior aos primeiros pensadores do liberalismo francês, Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Benjamin Constant (1767-1830).
Ele se preocupa com os impasses e as aquisições do liberalismo do “momento Guizot”, que assumiu o propósito de terminar a Revolução e construir um governo representativo estável que garantisse as liberdades individuais. Com tal intuito, foi construída uma filosofia política fundada em conceituações como as de poder social, governo representativo e opinião pública, que contribuíram, de modo original, para uma concepção de representação e de governo através da comunicação.[16] Contudo, é desenvolvida uma concepção de cidadania capacitária (ou censitária), isto é, de uma cidadania em que os direitos políticos estão condicionados às “capacidades” que os cidadãos teriam para exercê-los, o que conduz às tensões típicas de um liberalismo sem democracia. Por esta razão, o liberalismo capacitário será superado por outras elaborações sobre cidadania e representação. Esse enrijecimento de Guizot num liberalismo elitista permitiu compreender como a democracia só pode se fundar em uma “aceitação incondicional da igualdade de espíritos e de opiniões”, o que quer dizer que “a busca da autonomia individual […] só tem sentido quando ligada ao reconhecimento deste imperativo a fim de fundar uma verdadeira sociedade de indivíduos iguais em independência; muito embora ela deixasse em aberto a questão das formas pertinentes para a instituição dessa autonomia”, e também corresse um risco permanente de demagogia.[17]
Em estreita continuidade com essa problemática, Rosanvallon publicou, em seguida, outro estudo sobre o período da Restauração e da Monarquia de Julho: La Monarchie impossible: histoire des Chartes de 1814 et 1830.[18] Ele busca responder à seguinte questão: por que fracassaram as tentativas francesas de conjugar o princípio monárquico com as liberdades modernas? Enfrentando essa singularidade bem francesa quando comparada com outros países europeus, como a Inglaterra, que souberam conciliar monarquia com liberalismo, ele tentou mostrar como a impossibilidade de uma monarquia constitucional esteve vinculada ao déficit de liberalismo presente na cultura política francesa.
Esta interpretação parece associá-lo a uma tradição de crítica ao jacobinismo como sendo um mal francês. Esse é um lugar comum, incluindo a nova esquerda francesa, que denuncia o iliberalismo e a centralização estatal como problemas para a democracia, reivindicando então uma descentralização administrativa e política. Contudo, Rosanvallon percebe um esgotamento dessa crítica, que se baseia numa redução das relações entre Estado e sociedade.[19] Por isso, ele empreendeu uma obra sobre a especificidade do modelo francês desde a Revolução Francesa até a contemporaneidade: L’État en France, de 1789 à nos jours (1990).[20] Ao invés de assumir como um problema evidente, ele faz uma história do Estado enquanto programa estabelecido ao longo de uma gênese e reconstrói sua dinâmica e trabalho de construção. Ele analisou a diversidade de relações entre Estado e sociedade na França, construindo uma tipologia com quatro figuras: como “leviatã democrático”; como “instituidor do social”; como “redutor das incertezas sociais pela proteção”; e como “regulador da economia”.
Esta complicação do modelo de Estado prepara terreno para outro trabalho, quatorze anos depois, que teve origem nos primeiros cursos no Collège de France: Le modèle politique français: la société civile contre le jacobinisme (2004).[21] Ele enfrenta, então, uma questão que atravessa todos os eixos de pesquisa: a da “excepcionalidade francesa”. Buscando encerrar o conjunto desses trabalhos, ele defende a ideia de que a história da democracia francesa é um caso exemplar da tensão, própria da modernidade democrática, entre o particular e o geral, os corpos intermediários e o Estado, a centralização e a descentralização. Tal história é contada a partir do conflito entre, de um lado, as tendências iliberais do monismo “jacobinista” – que ele prefere denominar, de modo mais técnico, como uma “cultura política da generalidade” – e, de outro, as forças pluralistas de resistência por parte da sociedade civil e dos corpos intermediários.
Nesses trabalhos, Rosanvallon se recusa à posição intelectual e política que opõe, esquematicamente, descentralização e centralização estatal. Isso porque é preciso, segundo ele, romper com a necessidade recorrente de “inventar uma França imaginária – aquela de um monstro burocrático que observa a sociedade do alto – com o objetivo de formular um programa de mudança [igualmente imaginário] (…) A ideia de descentralização, nas suas formulações dominantes, à grande distância das realidades, termina por exprimir, dessa forma, uma dupla impotência, indissociavelmente intelectual e política, em compreender as coisas para mudá-las”.[22] Portanto, ao invés de uma “deploração preguiçosa e impotente”, trata-se de uma necessidade de “redefinição positiva e operatória do Estado e dos serviços públicos confrontados com as novas urgências do presente”.[23]
História da democracia: cidadania, representação, soberania
As investigações sobre o modelo político francês se desdobram em um projeto de história da democracia na França, do qual resultaram três livros: Le sacre du citoyen, 1992; Le peuple introuvable, 1998; e La démocratie inachevée, 2000. Rosanvallon faz, então, uma análise das tensões e contradições que operam na cidadania, na representação e na soberania.
Em Le sacre du citoyen [A sagração do cidadão] (1992), ele faz uma história do sufrágio universal como um instrumento da igualdade política e uma pedra angular da modernidade.[24] O sufrágio é entendido não apenas como um método eleitoral de formação de maiorias, mas também como uma mutação ontológica do regime político e da forma social. Trata-se de uma “revolução da igualdade”, porque o sufrágio universal tem um papel de “desincorporação” do social através de uma ficção produtiva: a igualdade abstrata entre todos os seres humanos que, manifestando suas vontades, estabeleceria uma representação legítima da soberania popular. Por isso, a partir da ideia de “indivíduo-cidadão”, apoiada nos princípios de igualdade, individualidade e universalidade, o sufrágio vai rompendo com as limitações antropológicas (como as distinções a priori entre aristocrata/plebe, homem/mulher, proprietário/proletário, notáveis/comuns, educados/incultos etc.) e restabelecendo as fronteiras entre natureza e sociedade, casa e cidade, autonomia e dependência. Este processo se dá, de forma paulatina, ao longo do século XIX até meados do XX, num trabalho de universalização que altera as concepções iniciais de mulher, família, trabalho, loucura, infância, indigência e nacionalidade. Com isso, emergem a figura do indivíduo autônomo e a instituição de uma pólis inclusiva, que remete, por sua vez, para o caráter problemático do que vem de “fora” das fronteiras (as colônias, os estrangeiros, os imigrantes, os demais Estados-nações etc.).
Portanto, a história do sufrágio é, ao mesmo tempo, política, social, antropológica e epistemológica. Todavia, a legitimação eleitoral-procedimental acarreta uma tensão interna à democracia: quando se assume que o número estabelece a legitimação da representação, isso não deixa de colocar aporias e antinomias. Afinal, a democracia não é apenas um regime de representação de sujeitos de direito, tampouco um regime atomizado de soma da vontade de cada um (segundo a regra “um homem, um voto”); a democracia é, também, um regime de vontade geral e soberania do povo. Ao longo de todo o século XIX, abre-se uma era de experimentações acerca do problema da legitimação pelas eleições; o livro faz um repertório destas experiências, mostrando como se constituíram, de um lado, visões de uma cidadania com democracia ausente ou restrita, e, de outro, uma concepção de “república utópica” em que o sufrágio universal era visto como condição necessária e suficiente de paz, unidade e justiça social.Mas quando esse sufrágio se estabelece, as antinomias políticas se tornam mais explícitas.
Isso nos leva ao próximo livro, Le peuple introuvable [O povo inalcançável] (1998), em que Rosanvallon enfrenta o problema da representação para além da aritmética do sufrágio.[25] O livro acompanha as tentativas de pensar e resolver o desafio da representação na história do governo representativo. Se, em Le sacre du citoyen, ele descobre o individualismo radical da cidadania moderna, em Le peuple introuvable, ele revela o quão problemático é o sujeito da democracia: o povo soberano. Isso porque a figuração do povo é tão central quanto inapreensível. O povo não é uma realidade dada, a ser descoberta e representada, tampouco é um sujeito traído sempre por elites mesquinhas; a própria natureza do populus e as condições de sua figuração devem ser investigadas. Ele defende, para tanto, que a ideia de representação é problemática desde sua origem, porque possui uma tensão constitutiva entre os dois sentidos: representação-mandato (Stellvertretung) e representação-figuração (Repräsentation). O regime representativo é indeterminado de duplo modo: quanto às condições de formação do poder democrático (mandato) e quanto ao modo de encarnação do povo (figuração). Isso põe questões elementares: como “representar” uma sociedade de indivíduos? Se o cidadão é um indivíduo abstrato, apreendido fora de todas as suas determinações, existirá ainda uma representação do povo? Como definir, expressar, reconhecer e exercer a soberania popular?
A democracia é uma busca permanente de identificação do povo enquanto sujeito problemático da legitimação. Se, de um lado, existe um procedimento prático de representação política – as eleições como meio de escolha e instituição de mandatários –, por outro, a democracia se funda na afirmação filosófica de um sujeito político – “o povo soberano” – enquanto princípio de justificação. Por isso, Rosanvallon analisa a polissemia do conceito de povo, mostrando que existem quatro sentidos: o povo-eleitoral, que se expressa numericamente pelo voto; o povo-jurídico, que é constituído pelo direito como a fonte soberana, por princípio, da democracia; o povo-cívico, que é a comunidade política capaz de expressar uma vontade geral e um querer viver-juntos; e, por fim, o povo-social, que é a multiplicidade de grupos, relações e diferenciações empiricamente existentes na concretude do social.[26] Poderíamos acrescentar ainda o povo-nação, que se confunde parcialmente com o povo-social, mas que se diferencia por depender da construção narrativa e concreta de uma identidade coletiva em um dado território e durável no tempo.
Esses vários sentidos do povo, que compõem autênticas antinomias entre si, convivem na democracia, levando a problemas e aporias que demandam uma reflexividade e um trabalho político em permanência, além de uma miríade de instituições de representação e expressão. Por causa dessas dificuldades intrínsecas, a redução da complexidade da democracia pela simplificação do povo é sempre uma tentação. Isso pode ser feito tanto através da identificação da soberania popular à maioria gerada pelo procedimento representativo-eleitoral, quanto por meio de um princípio de representação do povo por encarnação em alguma instituição, grupo, movimento ou liderança.
Esta problemática remete ao último livro da trilogia, La démocratie inachevée [A democracia inacabada] (2000), onde é empreendida uma história longa e alargada da soberania do povo.[27] Assim como o povo, a palavra “democracia” possui um sentido fluido e flutuante. Além disso, a história da democracia é, ao mesmo tempo, a história de sua indeterminação constitutiva e de seu permanente desencantamento, ou seja, de seu caráter inacabado. Portanto, Rosanvallon contorna, mais uma vez, as evidências estabelecidas colocando uma questão radical de partida: se a democracia é o regime de soberania do povo, de que forma o povo é soberano? Ele reconstrói, então, a história da democracia desde a Revolução Francesa, mostrando como os atores lidaram com o desafio de instituir um regime de soberania do povo.
É preciso, de partida, distinguir vários sentidos da noção de soberania: ela é temporária ou permanente? Por princípio ou praticada? Autorizadora de uma representação ou exercício de um poder efetivo? Instituidora da sociedade ou reguladora das liberdades? Ordinária ou extraordinária? Individual ou coletiva? Única ou plural? Consensual ou conflitiva? É positiva, isto é, orientada para a construção de uma política, ou negativa, isto é, reservada à resistência contra um poder ilegítimo? Isso quer dizer que há várias formas de interpretar a soberania do povo na democracia, bem como de hierarquizar e compor os seus distintos aspectos. Uma vez que os livros anteriores mostraram que a democracia desincorpora o social e individualiza a cidadania, não podemos confundi-la com as concepções substancialistas do período medieval; ainda que a visão antiga esteja presente em formulações modernas quando estas últimas visam restaurar a ideia de um povo que autoriza e legitima um poder por aclamação unânime, a especificidade moderna não está aí, e é ela que acabará por prevalecer.
Neste ponto, a França possui uma singularidade reveladora para a modernidade; isso porque, de um lado, a Revolução Francesa herda a conceituação de vontade geral de Rousseau, com toda a sua ambiguidade entre uma extrema objetivação racional-legal e uma extrema subjetivação da vontade do sujeito-soberano, com efeitos históricos bem concretos; e, de outro, a ruptura exacerbou as tensões e os equívocos originais da representação, existentes entre soberania do povo e representação política, emancipação individual e emancipação social, democracia direta e democracia representativa, representação como artifício técnico e representação como forma política. Por isso, a história francesa oscilou, desde o início, entre o transbordamento do quadro institucional pela desinstitucionalização do político e a obsessão por um retorno à ordem. De partida, essa história é marcada por quatro tendências dominantes e inter-relacionadas: primeiro, uma soberania-acontecimento, em que o povo afirma sua vontade de forma fugaz pela insurreição; segundo, uma soberania do governo pela opinião, que seria dada pela generalização do exercício da crítica cidadã e da participação direta em assembleias; terceiro, uma soberania-vigilância, em que o “olho do povo” estaria por toda parte resistindo à arbitrariedade e à discricionariedade do poder; e, quarto, uma soberania pela generalidade da lei, que seria instituída pela abstração e universalidade do direito garantida pelo poder central. Além dessas tendências dominantes, Rosanvallon mostra que, ao longo do século XIX, surgem formas políticas específicas na história francesa que constituem o que chama de “bordas da democracia”: o liberalismo doutrinário (o “momento Guizot”), a cultura da insurreição (o blanquismo), a absolutização do governo direto (o socialismo assembleísta) e a democracia iliberal (o cesarismo bonapartista).[28]
Essas bordas são unilateralizações de aspectos das democracias modernas, que manifestam uma instabilidade própria à experiência francesa. Isso perdura até a estabilização da III República por volta dos anos 1920, com a formação deuma “democracia de equilíbrio” (ou “democracia média”), que é uma forma imperfeita, relativa e precária de democracia, analisada nas partes finais tanto de Le peuple introuvable quanto de La démocratie inachevée. De forma sintética, podemos dizer que ela resulta de uma conjunção de fatores como: o surgimento de novas formas de laço eleitoral com mudança na lógica do mandato (representação livre, comitês eleitorais, programas partidários etc.); o enquadramento da política pelo pluralismo partidário e o reconhecimento das oposições; a institucionalização do sindicalismo; o estabelecimento de direitos sociais e o avanço de formas de democratização econômica e industrial; o estabelecimento de um Estado regulador, consultivo e planejador; e a ampliação do espaço do político para além do mandato e da esfera do Estado, com a abertura do espaço público a vozes plurais e concorrentes, a legalização dos direitos de manifestação, greve e associação, a criação dos mecanismos de sondagem de opinião pública, a consolidação da liberdade de imprensa etc.
Esta estabilização da democracia francesa não deixou de conviver com duas ameaças: a ameaça totalitária de um retorno do poder de encarnação totalizadora do social no Uno; e a ameaça corporativista, que fragmenta a representação pela multiplicação ao infinito de seus canais de demanda. Como sabemos, o século XX experimentou o advento das experiências totalitárias, tanto a leninista-marxista quanto a nazista; Rosanvallon analisa as especificidades das duas formas totalitárias, mostrando que elas compartilham de um mesmo equívoco: a concepção essencialista de povo através de um princípio de representação por encarnação. Contudo, as transformações de fim de século expressam um esgotamento destas concepções de soberania popular. E isso faz com que novos desafios surjam, demandando outra lente sobre a vida das democracias.
Fim de século: por uma teoria da democracia complexa
Os capítulos IX e as conclusões de Le peuple introuvable e de La démocratie inachevée são um esforço para diagnosticar a crise das democracias da virada do século, a partir do que se forma o eixo de investigação mais recente sobre as mutações da democracia.
Rosanvallon mostra que a “democracia de equilíbrio” começa a afundar em torno dos anos 1980 com o enfraquecimento dos seus dispositivos e instituições. Ele identifica diversos processos de mudança, tais como: os suportes sociais para a organização política – como o partido político, o pertencimento de classe, a organização sindical e a identidade nacional – entram em declínio; a sociedade civil se autonomiza e se complexifica em relação ao Estado; o individualismo se acentua minando as referências coletivas; as preferências eleitorais se tornam voláteis e a política institucional perde seus suportes, tornando-se mais autorreferente e pragmática; o capitalismo entra numa nova fase, a de um “capitalismo da singularidade”, que singulariza as experiências nos mais diversos domínios (consumo, produção, pertencimento, etc.), quebrando com as classes; e a ideia de “social”, que havia respaldado a sociologia e as políticas públicas, perde boa parte do seu sentido por causa da individualização e da mundialização. Assim, em La question syndicale (1988), por exemplo, ele mostra como o sindicalismo tradicional é posto em xeque[29], na medida em que se funda numa tripla função: representar os grupos sociais; contribuir para a regulação social; e organizar a solidariedade no seio dos grupos representados. Com a mudança na relação dos indivíduos com a sociedade, que se torna mais relacional, situacional e autobiográfica do que baseada em categorias socioprofissionais, o sindicalismo perde tanto seu suporte quanto sua função.
Todas essas mudanças conduzem a um esgotamento da visão tradicional de democracia como soberania do povo. A ideia de soberania popular, como constituindo um todo que engloba os cidadãos e transcende as suas diferenças, perde o que lhe restava de aderência social. Com isso, as concepções de democracia minimalista, como as de Vilfredo Pareto, Karl Popper e Joseph Schumpeter, passam a prevalecer, onde a democracia é vista tão-somente como um regime de defesa das liberdades individuais em relação à tirania, o que é feito com a garantia da ordem da lei, a formação de um mecanismo concorrencial de seleção e renovação das elites, e a gestão tecnocientífica dos problemas práticos. Tudo se passa como se fosse possível eliminar a soberania-instituição para só restar uma soberania negativa e de regulação.
Todavia, o que está em crise não é a “democracia da vontade”, mas sim a “religião da vontade geral”, isto é, a crença de que a vontade popular poderia ser encarnada, encenada e representada, substancialmente, por alguma instituição ou movimento da sociedade. A democracia não precisa de uma soberania-por-encarnação para que possa realizar uma representação-figuração. Para figurar o povo, basta que a generalidade política se ancore em particularidades e diferenciações sociais. A democracia de equilíbrio conseguiu fazer isso provisoriamente, mas os seus suportes se desfizeram. É por isso que vivemos numa pane de figuração social, que é também uma pane de palavras e denominações, o que faz com que a sociedade se torne cada vez mais ilegível. O resultado disso é o surgimento de duas tendências: primeiro, a passagem de uma democracia da confrontação de programas para uma democracia de imputação de responsabilidades, que se baseia na acusação de indivíduos, na personalização da política, na denúncia das elites e na centralidade da preocupação com a corrupção, onde o agente político deixa de ser um porta-voz do social para se tornar um gestor culpável; e, segundo, a acentuação de demandas corporativistas, que fragmentam o espaço político em reivindicações de indivíduos, grupos e lobbies. Neste processo, não apenas os antigos ideais revolucionários, mas também as próprias políticas reformistas entram em crise, dado que existe uma dificuldade de ler a relação entre as políticas públicas e os processos e as estruturas da sociedade. Aquilo que chamamos de “neoliberalismo” é, neste sentido, muito mais um sintoma da desregulação social e da crise de figuração, com uma perda de rumos, suportes e referências, do que uma ideologia política hegemônica que impede o surgimento de alternativas democráticas. Portanto, o problema central da nova era democrática é: como dar de novo uma figura sensível, uma carne, às democracias?
Segundo Rosanvallon, algumas teorias políticas tentam contornar este problema. É o caso das teorias procedimentais de John Rawls, Habermas e outros, que buscam criar as condições de uma democracia dessubstancializada, o que é feito às custas de uma abstração que perde o suporte da vida histórica e efetiva das sociedades democráticas. Além disso, surgem as propostas mundialistas, que tentam resolver os problemas transpondo ilusoriamente os procedimentos representativos para a esfera supranacional. Dado que essas respostas são insuficientes, as demandas de figuração se mantêm e encontram quatro tentativas ilusórias de restabelecimento da representação política: primeiro, a ideia de que o povo pode ser satisfatoriamente expresso apenas pelas pesquisas de opinião das sondagens; segundo, o surgimento de uma soberania polarizada, própria do populismo, em que o povo se unificaria através da exclusão de um inimigo; terceiro, a perspectiva de que a autenticidade popular estaria representada pelo povo-emoção dos media; e, quarto, a expectativa de que o político se tornaria novamente legível através da identificação com diferenciações e cortes de caráter étnico-biológicos (raça, etnia, gênero etc.).
Por essas razões, a política se identifica crescentemente com o desafio “de tornar a sociedade legível, de dar sentido e forma a um mundo em que os indivíduos têm uma dificuldade crescente para se orientar“.[30] Uma vez que a sociedade se individualizou, “a questão da figuração política se põe agora de frente, com toda sua radicalidade”.[31] Trata-se, efetivamente, de elaborar a democracia, pois o trabalho do político é indissociável de um exercício da sociedade e de uma construção qualitativa do laço social. O eixo de investigação sobre as mutações da democracia buscará compreender as novas lógicas do laço social e de inscrição dos indivíduos na sociedade, que estabelecem outras formas de cidadania, legitimação, representação e soberania; e ele apresentará, também, os contornos de uma democracia renovada à altura da terceira era da emancipação. Para tanto, Rosanvallon faz uso dos conceitos de uma teoria da democracia complexa já apresentados na trilogia. Isso porque a investigação histórica, ao estabelecer um diálogo entre os homens do passado e do presente em torno do problema de construir uma pólis, isto é, um mundo comum, gera um aprendizado conceitual que enriquece nossas ideias sobre o tempo presente.
O que é a democracia, afinal? Antes de tudo, a democracia é uma história, um problema e uma experiência, e não um modelo universal e abstrato a ser aplicado por todo lugar. Neste sentido, ele defende a ideia de um universalismo democrático que se constitui por um exercício de confrontação de experiências que lidam com conceitos, problemas, instituições, práticas e aprendizados.[32] Além disso, a democracia depende da elaboração de problemas que se baseiam em conceitos com alta polissemia e complexidade, plenos de antinomias e aporias, como os de povo, representação e soberania. A respeito do conceito de soberania do povo, Rosanvallon resgata a proposta constitucional de Condorcet, que desenvolveu a ideia de uma soberania complexa que supera as tentações de uma concepção redutora e monista da experiência democrática.
No balanço deste percurso, Rosanvallon adquiriu uma série de conceituações sobre a experiência democrática com alto rendimento teórico, normativo e heurístico: (a) a noção de democracia como um regime misto, democrático-liberal, voltado a uma emancipação generalizada, que precisa conciliar, de alguma forma, a autonomia individual (emancipação individual) e o autogoverno do coletivo (emancipação social); (b) a análise da democracia como, ao mesmo tempo, um regime político, uma forma social, uma atividade cidadã e um modo de governo; (c) a proposta de democratização por representação generalizada, feita por uma democracia desdobrada (em francês, démultipliée) que opera em múltiplos níveis sociais e temporalidades do político; (d) a conceituação da representação como um trabalho ativo da sociedade, e não como um espelhamento passivo da realidade, de modo que a democracia depende de uma empresa permanente de conhecimento, de interpretação, de decifração, de exercício e de experimentação da sociedade sobre si mesma; (e) a visão de que a representação envolve uma dimensão cognitiva e narrativa, uma vez que as identidades coletivas são construídas por um processo de representação-narração de um povo múltiplo com conflitos constituintes, num trabalho de contorno da opacidade social e de construção de legibilidade e expressividade; (f) a percepção de que, na nova era democrática, existe uma convergência entre os trabalhos do sociólogo, do historiador e do político, uma vez que o laço social se elabora, cada vez mais, pela miríade de experiências, narrativas, biografias e situações que entremeiam a construção de si e a constituição da pólis, demandando um trabalho de aproximação, presença, escuta e elaboração contínuas; (g) e a defesa de uma lucidez democrática diante das interações, tensões e falhas da sociedade civil, a partir de uma perspectiva que reúna uma preocupação liberal com a autonomia individual, uma preocupação socialista com a redistribuição social e uma preocupação democrata com a instituição política da sociedade e a necessária reapropriação social do poder. Tal apreensão conceitual dos problemas democráticos serve de arsenal para que Rosanvallon se dedique então a um diagnóstico das mutações das democracias contemporâneas.
As mutações da democracia contemporânea
A partir dessas conceituações e problemáticas, Rosanvallon inicia o eixo de investigação voltado para as mutações da democracia contemporânea. Ele compõe a tetralogia que publicamos agora pelo Ateliê de Humanidades Editorial: A contrademocracia (2006); A legitimidade democrática (2008); A sociedade dos iguais (2011); e O bom governo (2015). Assim como a trilogia, não tenho dúvidas de que esta tetralogia nasce clássica. Gostaria de fazer uma exposição destes livros, que são complementados por estudos paralelos ou posteriores, como O parlamento dos invisíveis (2014), Notre histoire intellectuelle et politique (2018), O século do populismo (2020)e Les épreuves de la vie (2021). Expondo apenas as linhas gerais, serei mais breve do que quando tratei da trilogia, porque a publicação de cada volume conterá uma apresentação dos seus conteúdos, como já foi feito em O século do populismo e neste A contrademocracia com as Palavras do Tradutor.
A tetralogia das mutações da democracia
Como vemos, o desafio da tetralogia está em adquirir uma inteligência suficiente das democracias, que esteja à altura da nossa crítica e indignação. Neste A contrademocracia: a política na era da desconfiança (2006), já bem apresentado pelo tradutor Diogo Cunha[33], Rosanvallon parte de um paradoxo atual: no mesmo momento em que a ideia democrática reina quase sozinha, ocorre um crescimento da erosão da confiança em relação à democracia. Mas ele se distancia das explicações baseadas na ascensão do individualismo, na despolitização do cidadão e no esvaziamento da esfera pública e do sentido do comum. Para ele, o declínio da confiança e o desencantamento com a democracia devem ser situados em uma análise alargada das mutações das formas da atividade democrática, investigando como se constrói, ao longo da história, um universo articulado e coerente de formas de desconfiança em relação ao governo representativo.
Ainda que o voto seja a expressão mais visível e institucional da cidadania, o exercício e a expressão da soberania popular são complexos e nos exigem um alargamento do campo de análise rumo aos disfuncionamentos originais dos regimes representativos. Rosanvallon estuda as formas pelas quais as instituições políticas e os contrapoderes sociais informais põem à prova a confiança na democracia por meio de uma organização da desconfiança. Com a análise do universo contrademocrático (que é, digamos, uma “democracia-pelo-contra”), ele busca descobrir facetas muito mais complexas da soberania do que a do “povo-voto” e do “indivíduo-eleitor”, revelando a importância de noções como as de opinião, crítica, veto, vigilância, impedimento, notação e julgamento. Ele defende, assim, que o regime democrático é dualista, pois se compõe de confiança e desconfiança. Contudo, os mecanismos contrademocráticos podem se hipostasiar patologicamente, levando à tendência atual de uma democracia negativa ou impolítica, identificada aqui ao populismo. Rosanvallon faz, então, uma primeira tentativa de interpretação crítica dos movimentos populistas, que ganhará contornos mais nítidos a partir do artigo Pensar o populismo (2011).[34] Em uma entrevista feita por nós em 30 de outubro de 2018, ele desenvolveu sua análise com novas nuances, incorporando a ideia do populismo como regime de emoções e paixões;[35] inspirado por essa interlocução, cheguei a escrever um ensaio sobre o populismo em 2018-9[36] e esbocei uma intervenção pública sobre a crise da democracia brasileira antes da ascensão do bolsonarismo. Após ter completado a tetralogia, a interpretação do populismo de Rosanvallon terá um tour de force, quando em 2020 vem a público a teoria crítica do populismo em O século do populismo: história, teoria, crítica, publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial em 2021. Mas antes de tratar dele, gostaria de retornar aos demais livros da tetralogia.
No próximo, A legitimidade democrática: imparcialidade, reflexividade, proximidade (2008), Rosanvallon avança na compreensão das mutações através de uma análise da complexidade das formas de legitimação. Para ele, as democracias possuem classicamente um sistema de dupla legitimação. Primeiramente, ao longo do século XIX, a democracia consolidou a legitimação por estabelecimento, conformada pelos procedimentos eleitorais. No início do século XX, os ideais de serviço público e de administração racional constituem uma legitimação por identificação com a generalidade, realizada por uma burocracia tida por racional. Contudo, a partir dos anos 1980, o sistema de dupla legitimidade democrática entra em crise, com a entrada numa “nova era da legitimidade”. Com a decomposição do antigo sistema de legitimação, compõe-se uma renovada apreensão da generalidade democrática.
Rosanvallon a sistematiza sob os valores da imparcialidade, da reflexividade e da proximidade. Ele descreve vários modos de legitimação, ao mesmo tempo concorrentes e complementares, que são mais qualitativos, precários e problemáticos, pois são dependentes da percepção social da ação e do comportamento das instituições. Em resposta ao caráter reflexivo do governo representativo e às demandas de imparcialidade em uma sociedade plural, alguns tipos de instituições, como as autoridades independentes de vigilância e de regulação e as Supremas Cortes Constitucionais, entram em ascensão e revolucionam o repertório clássico da democracia. A esse respeito, vale notar que tanto A contrademocracia quanto A legitimidade democrática são uma contribuição renovadora para a compreensão do que se chama, normalmente, de “judicialização da política e da vida social”.
Além do avanço dos poderes judiciários, a pluralização do social exige uma maior proximidade do poder em relação às singularidades, o que reforça o papel do Executivo na vida democrática O que está em jogo é a busca de mecanismos de presença, de reconhecimento e de interação entre representantes e representados. Tal fato conduziu ao último livro da tetralogia, O bom governo (2015), que faz uma interpretação da tendência atual em direção à presidencialização e à personalização das democracias. Ele parte da constatação de uma grande lacuna teórica: as teorias da democracia são feitas, majoritariamente, baseando-se nos modelos do poder legislativo e do poder judiciário, sendo muito raramente voltadas para a natureza do poder executivo e da ação governamental. Por isso, quando se pensa na ação do Executivo, isso é feito quase sempre de forma negativa ou através de lições de cinismo, enunciando algum tipo de “maquiavelismo” (no sentido pejorativo do termo) em que o poder é pensado como desprovido de vínculos normativos. Buscando suprimir tal lacuna, Rosanvallon desenvolve uma teoria da ação governamental através da reconstrução histórica de suas problemáticas conceituais, práticas e instituições. Ele mostra como as democracias contemporâneas fazem surgir algumas regras de legitimação de um bom governo – legível, responsável, responsivo, verdadeiro e íntegro –, que abrem o horizonte emancipatório de uma “segunda revolução democrática”, rumo a uma democracia de confiança, de apropriação e de exercício.
Mas, ao mesmo tempo, este mesmo processo apresenta o perigo de derivas populistas que tendem a minar os fundamentos liberais das democracias. Elas têm um de seus fundamentos na atual pane ocorrida com a ideia de igualdade e com os laços de solidariedade. A denúncia das desigualdades e o sentimento de seu caráter inaceitável tendem a ser revertidos, hoje, em resignação e impotência, incapazes de retomar os projetos de redistribuição. Rosanvallon recupera, então, em A sociedade dos iguais (2011), o terceiro livro da tetralogia, o fio do eixo de investigação sobre a crise do Estado de Bem Estar, retraçando a história moderna dos debates e das lutas por justiça e redistribuição. Deste modo, ele reconstrói o caminho desde a invenção da promessa democrática e a construção do “século da redistribuição”, passando pelas “patologias da igualdade” (a ideologia liberal-conservadora, o comunismo-utópico, o nacional-protecionismo e o racismo constituinte) até chegar numa proposta de renovação da problemática da igualdade. Com isso, ele tenta compreender a crise mecânica e moral das instituições de solidariedade resultantes do desenvolvimento de uma “sociedade da singularidade”, da “justiça distributiva” e da “concorrência generalizada”. Além disso, ele busca reconstruir o projeto de uma “sociedade dos iguais”, apresentando o esboço de uma filosofia da igualdade. Nas condições atuais, a igualdade deve ser compreendida como uma relação social, orientada para a reconstrução de uma sociedade de solidariedade ativa, fundada nos princípios de singularidade, reciprocidade e comunalidade.
Da crítica do populismo à renovação da emancipação
Após concluir a tetralogia das mutações da democracia, Rosanvallon continua a avançar nas suas reflexões sobre a atualidade.[37] Em 2018, ele publica o testamento intelectual Notre histoire intellectuelle et politique, 1968-2018, ao qual já recorri aqui algumas vezes. A importância deste livro não consiste apenas no fato que ele apresenta uma narrativa autobiográfica que mostra sua formação e participação na vida intelectual e política francesa nos últimos cinquenta anos; ela está também no fato que as transformações intelectuais e políticas do país são apresentadas com uma autorreflexão crítica que mostra o espezinhamento da esquerda francesa nos anos 1980 e 1990 e a passagem da hegemonia para o campo da direita a partir dos anos 2000. Analisando as conversões e reestruturações do campo político e as derivas de um progressismo com dificuldade de reconfigurar o quadro intelectual e político, ele expõe as tarefas do presente, que envolvem a identificação dos desafios impostos pelo capitalismo da inovação, pelo individualismo da singularidade e pelo declínio da performance eleitoral, que conduzem à necessidade de repensar a emancipação na era dos populismos. Por causa disso, ele anuncia um Tratado da emancipação em dois tomos: o primeiro dedicado à crítica do populismo, e o segundo voltado para a teoria da democracia emancipada.
Então, em 2020, Rosanvallon publica o que podemos considerar como o primeiro tomo desse tratado: O século do populismo: história, teoria, crítica.[38] Este livro avança muito além do esboço de teorização do populismo de A contrademocracia. Ao invés de caracterizá-lo como uma patologia contrademocrática, ele faz uma análise sistemática da teoria da democracia presente nos populismos de direita e esquerda, mostrando como, apesar de diversos, eles possuem um quadro coerente e bem comum de representações e práticas. Deste modo, ele decompõe analiticamente a anatomia do populismo, mostrando como ele se baseia em uma concepção de soberania direta, polarizada e imediata, em uma concepção de povo-uno e em uma modalidade de representação-encarnação num “homem-povo”; ele mostra, também, como o populismo é um regime de paixões e emoções que se baseia em uma filosofia econômico-política securitária, de caráter “nacional-protecionista”. Além disso, ele faz uma história das distintas tradições populistas, defendendo, contudo, que a teoria populista contemporânea deve ser compreendida em sua atualidade, como uma forma democrática que emerge das sociedades do novo século. Segundo ele, o populismo é uma forma ilusória de resposta aos problemas da representação política e da questão social, pois ele propõe uma democratização pela simplificação autodestruidora da soberania popular e dos mecanismos de representação, o que conduz, no limite, a uma “democratura”. Portanto, a sua crítica do populismo retoma o quadro conceitual da teoria da democracia complexa. Ao invés da soberania polarizada do populismo, é necessária a elaboração de uma soberania complexa através de uma democracia desdobrada; e, ao contrário do povo imaginário dos populistas, é preciso compreender que os laços sociais da democracia são problemáticos e demandam, por isso, um trabalho do político que deve incluir tanto o esforço renovado de figuração democrática quanto a repactuação de uma sociedade dos iguais.
Depois de O século do populismo, Rosanvallon escreve uma espécie de intermezzo: Les épreuves de la vie [As provas da vida] (2021). Este livro aprofunda a sua investigação sobre a democracia francesa, marcada pela ascensão do populismo de extrema direita e por movimentos sociais como os Coletes Amarelos e o fenômeno do #MeToo.[39] Para tanto, ele leva adiante uma abordagem metodológica que foi desenvolvida num manifesto e projeto paralelo à tetralogia: O parlamento dos invisíveis: manifesto para “narrar a vida” (2014).[40] Sendo uma iniciativa cidadã, esse projeto afirma que, para superar os problemas atuais de má-representação, devemos assumir a democracia como uma forma de viver em sociedade que demanda a promoção de uma representação narrativa. Deste modo, a representação tecida por meio de uma miríade de narrações de vida, que visibilizam o parlamento cotidiano do cidadão comum, é uma condição para “constituir uma sociedade de indivíduos plenamente iguais em dignidade, igualmente reconhecidos e considerados, e que possam verdadeiramente fazer sociedade comum”.[41] Com isso, Rosanvallon havia buscado não apenas tornar visíveis os que estão na sombra, como também tornar legível uma sociedade complexa e elaborar, com isso, um frágil laço social. Essa iniciativa se metamorfoseou posteriormente no projeto Raconter le travail [Contar o trabalho], feito juntamente com a CFDT.
Les épreuves de la vie aprofunda este foco na vida cotidiana dos indivíduos, que é uma preocupação de Rosanvallonpresente desde sua militância sindical. Portanto, o livro desloca o olhar da análise das estruturas sociais e políticas para colocá-lo na dimensão qualitativa das experiências vividas e narradas dos sujeitos. Como ele diz bem, “quando não é possível contar [compter], é narrando [racontant] que apreendemos o que se passa nas profundezas da sociedade”. Ele analisa, então, as quatro “provas” [épreuves] pelas quais passam os cidadãos franceses – o desprezo, a injustiça, a discriminação e a incerteza –, que estão nas origens dos sentimentos de raiva, ódio, desconfiança, degagismo, isto é, na base das emoções donde fermentam os populismos. Deste modo, depois de O século do populismo, este livro se volta para uma escuta do modo pelo qual as emoções expressam e significam as fraturas políticas da sociedade. Ele busca não apenas compreender as razões do desencantamento político, como também dar as bases para um projeto de emancipação onde uma política das emoções importa. Como alternativa às formas populista e tecnocrática de lidar com as emoções, ele propõe uma “política democrática das provas que estão no coração da ação pública”. Esta democracia depende de uma forte concepção de igualdade, distanciada tanto dos identitarismos populistas quanto das meritocracias tecnocratas, sendo voltado para uma concepção de igualdade como uma condição compartilhada e como uma qualidade da relação social. Deste modo, reiterando as teses de A sociedade dos iguais, Rosanvallon aponta para uma política da emancipação feita através da construção de uma sociedade de semelhantes e singulares.
Quando ressalta que o laço social em condições de igual-liberdade e igual-respeito é fundamental para as democracias do século XXI, ele parece nos oferecer os contornos antecipados de sua teoria sistematizada da emancipação. Isso nos faz esperar o prometido segundo tomo do Tratado da emancipação, que será a consequência natural e desejável de uma crítica do populismo que sabe compreender os anseios legítimos expressos por detrás de amargas ilusões.
Observação do autor
Uma apresentação mais sintética da obra de Pierre Rosanvallon foi publicada em: MAGNELLI, André (2019) Pierre Rosanvallon: um perfil intelectual e bibliográfico. In: MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial, p. 21-46. O presente texto a revisou, ampliou, atualizou e reestruturou de tal modo que se tornou um ensaio à parte.
Notas
[1] Explico de forma mais aprofundada a tese de uma “vertente francesa da teoria crítica” em um ensaio recente sobre a obra de Alain Caillé para a MAUSS International: “Alain Caillé’s critical theory of gift: path and programmes” (escrito em julho de 2022).
[2] ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, 1968-2018. Paris: Le Seuil.
[3] Ibid., p. 52.
[4] Ibid., p. 52.
[5] Ibid., p. 32.
[6] ROSANVALLON, Pierre (1976) L’Âge de l’autogestion: ou la politique au poste de commandement. Paris: Le Seuil.
[7] ROSANVALLON, Pierre; VIVERET, Patrick (1977) Pour une nouvelle culture politique. Paris: Le Seuil.
[8] ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, 1968-2018, op. cit.,p. 106.
[9] ROSANVALLON, Pierre (1979) Le Capitalisme utopique. Histoire de l’idée de marché. Paris: Le Seuil. Este livro foi publicado também com o nome Le libéralisme économique, que é o título adotado na tradução brasileira: O liberalismo econômico: história da ideia de mercado. São Paulo: EDUSC, 2002.
[10] ROSANVALLON, Pierre (1981) La Crise de l’État-providence. Paris: Le Seuil.
[11] ROSANVALLON, Pierre (1983) Misère de l’économie. Paris: Le Seuil.
[12] ROSANVALLON, Pierre; FITOUSSI, Jean-Paul (1996) Le Nouvel âge des inégalités. Paris: Le Seuil.
[13] Publicada em: ROSANVALLON, Pierre (2002) Por uma história conceitual do político. In: ROSANVALLON, P. (2010) Por uma história do político. São Paulo: Alameda, p 65-101. Um outro texto metodológico consta no mesmo livro: ROSANVALLON, Pierre. (1996) Por uma história filosófica do político. op. cit. p. 37-63.
[14] Para mais detalhes sobre a démarche de Rosanvallon, ver: MAGNELLI, André (2019) A gênese de uma história filosófica (ou sociologia histórica) do político. In: MAGNELLI, A.; CAMPOS, S. Lindoberg de S.; MAIA, Felipe, Uma democracia (in)acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[15] ROSANVALLON, Pierre (1985) Le Moment Guizot. Paris: Gallimard, Bibliothèque des sciences humaines.
[16] Vale sinalizar que a leitura de Mudança estrutural na esfera pública (1962), de Jürgen Habermas, que apresenta o papel de Guizot na formulação do conceito de espaço público como forma de racionalização comunicativa do governo, foi uma motivação de Rosanvallon para empreender este estudo.
[17] ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, op. cit., p. 118.
[18] ROSANVALLON, Pierre (1994) La Monarchie impossible. Histoire des Chartes de 1814 et 1830. Paris: Fayard.
[19] Ver ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, op. cit., p. 160-165.
[20] ROSANVALLON, Pierre (1990) L’État en France de 1789 à nos jours. Paris: Le Seuil, L’Univers historique.
[21] ROSANVALLON, Pierre (2004) Le Modèle politique français. La société civile contre le jacobinisme de 1789 à nos jours. Paris: Le Seuil.
[22] ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, op. cit., p. 164.
[23] Ibid., p.165. É muito interessante sinalizar como o problema do centralismo do Estado francês mostra muitas semelhanças com aquele do Brasil, que também lida tanto com a questão histórica da centralização e descentralização estatal, quanto com as vulgatas preguiçosas e impotentes em prol de “mais” ou “menos” Estado.
[24] ROSANVALLON, Pierre (1992) Le Sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France. Paris: Gallimard, Bibliothèque des histoires.
[25] ROSANVALLON, Pierre (1998) Le Peuple introuvable. Histoire de la représentation démocratique en France. Paris: Gallimard, Bibliothèque des histoires.
[26] Na verdade, Rosanvallon não distingue sempre entre o povo-jurídico e o povo-cívico. Prefiro distingui-lo, contudo, porque uma coisa é o povo soberano por princípio na constituição de um país (povo-jurídico), outra é o povo de uma comunidade política que experimenta uma autodeterminação coletiva em uma soberania prática. Portanto, a diferenciação entre essas duas modalidades remete bem à distinção, também feita por ele, entre soberania-princípio e soberania-exercício.
[27] ROSANVALLON, Pierre (2000) La Démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard, Bibliothèque des histoires.
[28] Uma síntese detalhada das teses de Uma democracia inacabada foi feita por mim em: MAGNELLI, André (2019) A Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo. In: MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 84-146.
[29] Ver ROSANVALLON, Pierre (1988a) La Question syndicale. Histoire et avenir d’une forme sociale. Paris: Calmann-Lévy, coll. Liberté de l’esprit.
[30] ROSANVALLON, Pierre (1998) Le Peuple introuvable, op. cit., p. 459.
[31] Ibid., p. 436.
[32] Esta ideia está presente em um ensaio traduzido e publicado por nós: ROSANVALLON, Pierre (2007) O universalismo democrático: história e problemas. In: MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 125-154.
[33] Além disso, no segundo encontro do Ciclo de Humanidades 2022, “Criticar, resistir e governar: refazer a política na era da desconfiança”, tivemos a oportunidade de refletir com riqueza sobre as teses de A contrademocracia e sua fecundidade para pensar questões contemporâneas. A gravação está disponível em ateliedehumanidades.com, no canal da BiblioMaison no Youtube e no nosso podcast República de Ideias.
[34] ROSANVALLON, Pierre. (2011) Pensar o populismo. In: MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 155-169.
[35] ROSANVALLON, P.; MAGNELLI, André (2018) Em face à crise: uma entrevista com Pierre Rosanvallon. MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 171-178.
[36] MAGNELLI, André (2019) À prova dos populismos. In: MAGNELLI, André; CAMPOS, S. Lindoberg da S.; SILVA, Felipe Maia G. da. (orgs.) Uma Democracia (In)Acabada: quadros e bordas da soberania do povo com Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 193-214; MAGNELLI, A. (2018) O risco de um populismo antipolítico, Jornal do Brasil, 10 de junho. Disponível no site do Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
[37] ROSANVALLON, Pierre (2018) Notre Histoire intellectuelle et politique, 1968-2018, op. cit.
[38] ROSANVALLON, Pierre (2021) O século do populismo: história, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial. No Ciclo de Humanidades 2022, tivemos a oportunidade de refletir sobre este livro juntamente com Pierre Rosanvallon no encontro “A democracia polarizada: navegando no século do populismo” (dia 26 de abril de 2022). A gravação está disponível em ateliedehumanidades.com, no canal da BiblioMaison no Youtube e no nosso podcast República de Ideias.
[39] ROSANVALLON, Pierre (2021) Les épreuves de la vie – Comprendre autrement les Français. Paris: Seuil.
[40] ROSANVALLON, Pierre (2014) Le Parlement des invisibles (Manifeste pour “raconter la vie”). Paris: Le Seuil. Traduzido para o português por Thais Florencio de Aguiar em: ROSANVALLON, Pierre (2017) O parlamento dos invisíveis. São Paulo: Annablume.
[41] Rosanvallon, P. (2014) Le Parlement des invisibles (Manifeste pour “raconter la vie”). Paris: Le Seuil. p. 27.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.

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