No último Pontos de Leitura, tivemos uma breve introdução à vida e obra de Pierre Clastres, que foi designado como um “copérnico do político”. Esta expressão provocativa, usada pelo próprio autor, dá a entender que a questão do político foi revolucionada ao inverter os termos em que é posta. Isso foi realizado a partir da tese das “sociedades contra o Estado”. Neste Pontos de Leitura veremos, então, como ele coloca tal problemática e a desenvolve.
O que é o poder político? Como podemos formular o conceito de poder sem pressupor a forma pela qual a política se constitui nas sociedades com Estado?
Estão aqui questões fundamentais postas por Pierre Clastres como ponto de partida para uma nova antropologia política. Elas são elaboradas dentro de um contexto mais amplo, presente nos anos 1960 e 1970, de crise da consciência ocidental na intelectualidade francesa, que vem junto com uma valorização crescente dos saberes etnológicos. Clastres propõe aí uma apreensão bem particular do problema do etnocentrismo. Sua reflexão se dá no interior da tradição histórica e etnológica de estudos sobre o poder. Mais especificamente, seus estudos centram na etnografia ameríndia das terras baixas da América do Sul (notadamente Paraguai, Venezuela e Brasil). De certo modo, ele inverte os sinais valorativos da famosa representação, presente nos primeiros séculos da colonização portuguesa, de que os indígenas de nossas terras seriam um povo “sem fé, nem lei, nem Rei”. Ao invés de usá-la como uma avaliação negativa, ele desenvolve a ideia em sua consistência política própria. A partir daí, propõe-se a pensar o poder político de outro modo, o que o conduz aos contornos do que chama de uma “filosofia da chefia indígena” – à qual nos dedicaremos no próximo Pontos de Leitura.
Penso que a atualidade destes estudos é gritante hoje. A crise no território dos yanomami mostra a face cruel dos problemas aqui levantados, mas suscita, em igual medida, o aprofundamento nas proposições conceituais e políticas empreendidas por Clastres, continuadas pela etnologia ameríndia e verbalizadas, a seu modo, pelas lideranças indígenas dos dias atuais.
Desejo uma excelente leitura, e, talvez também, um ótimo achado!
André Magnelli
Pontos de Leitura, 03 de fevereiro de 2023
“Sociedade contra o Estado”:
a antropologia política de Pierre Clastres
O que é o poder político?
Todas as sociedades, arcaicas ou não, são políticas, mesmo se o político [assim como o Ser] se diz em muitos sentidos, mesmo se esse sentido não é imediatamente decifrável e se devemos desvendar o enigma de um “poder impotente”
(Clastres, P., A Sociedade contra o Estado, p.37).
O propósito de Clastres está em estabelecer os fundamentos de uma antropologia política que enfrente de partida questões como: o que é o poder político? Em que condições ele é pensável? Por que existe poder político? Por que ele existe em lugar de nada?
Essas questões dizem respeito ao problema dos fundamentos de toda e qualquer modalidade de poder e, por isso, elas são o ponto de partida de uma antropologia política. Mas será que todo poder é coercitivo? Será possível existir um modo de poder que seja não-coercitivo, sem dominação e obediência?
A proposta de Clastres é que sim, isso é possível. Melhor dizendo: ele propõe que o que caracteriza as sociedades ameríndias das terras baixas da América do Sul é o fato de possuírem um poder político não coercitivo. Caso aceitemos essa possibilidade, surge uma nova questão: como e por que ocorreu, ao longo da história e em vários lugares, a passagem de um poder político não-coercitivo para um poder político coercitivo? Dito de outro modo, como se passou (e se passa) de sociedades sem Estado para sociedades com Estado?
Essas questões só podem ser respondidas caso abandonemos a concepção exótica do mundo arcaico e tomemos a decisão de “levar enfim a sério o homem das sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas as suas direções”. Isso deve começar, para ele, pelo esclarecimento de um enigma: a existência de uma modalidade de poder, a chefia indígena, que é caracterizada, a seu ver, como um modo de “poder impotente”.
O argumento de Clastres parte de uma constatação etnográfica: uma ampla gama de sociedades indígenas da América do Sul possui chefes, mas nenhuma possui algo que pode ser chamado, pelo nosso ponto de vista, de “poder”. Leiamos um pequeno trecho:
Com exceção das altas culturas do México, da América Central e dos Andes, todas as sociedades indígenas são arcaicas: elas ignoram a escrita e “subsistem” do ponto de vista econômico. Por outro lado, todas, ou quase todas, são dirigidas por chefes e […] nenhum desses caciques possui “poder” […] os detentores do que alhures se chamaria poder são de fato destituídos de poder, onde o político se determina como campo fora de toda coerção e de toda violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde, em uma palavra, não se dá uma relação de comando-obediência […] se existe alguma coisa completamente estranha a um índio, é a ideia de dar uma ordem ou de ter de obedecer.[1]
Um grande número de sociedades ameríndias é composto, segundo Clastres, de uma economia de “subsistência”, sem “história” e “sem Estado”, compostas por um poder de chefia “sem escrita, impotente e igualitário”. As aspas nas adjetivações são fundamentais, como veremos, porque ele vai retirar delas qualquer depreciação.
Na verdade, tal hipótese de que há sociedades sem Estado de forma generalizada em nosso continente é questionada histórica e conceitualmente. A esse respeito, reservo-me a mencionar a crítica de Philippe Descola à tese de Clastres.
Segundo o etnólogo francês, sucessor de Lévi-Strauss no Collège de France, a tese da “sociedade contra o Estado” assume uma extensão empírica altamente problemática das sociedades compostas por chefia indígena. Descola mostra que Clastres teria estendido arbitrariamente o paradigma da chefia sem poder.[2] As sociedades que se oferecem à atual paisagem etnológica das planícies e florestas resultaram, na verdade, de uma fragmentação resultante de séculos de invasão, colonização e guerras. Por isso, elas são regressões e fragmentos de sociedades que eram, originariamente, mais complexas e estratificadas – o que lhes dá um aspecto de “falsos arcaísmos”. Portanto, diz Descola, “seu igualitarismo atual não é o fruto de uma vontade coletiva e obstinada de se opor à emergência de um poder coercitivo, de um Estado, mas sim o efeito de uma desestruturação profunda do tecido social, minada pelo desmembramento demográfico, pela espoliação financeira, pela violência militar e pela expulsão para os ermos inóspitos”. As selvas e o cerrado da América do Sul eram compostos, no século XV, de sociedades que, ainda que não fossem quase nunca de classes, tinham um exercício efetivo de um poder centralizado (autoridade do chefe, divisão em castas de especialistas com hierarquizações, algumas vezes mesmo aristocracias hereditárias). Portanto, o universo das sociedades sul-americanas que ignoram uma estratificação social e sistemas políticos hierarquizados seria restrito, segundo Descola, aos escudos guianeses, ao planalto brasileiro, às planícies e cordilheiras meridionais e a uma boa parte dos povos andinos.
Além desta crítica empírica, temos um problema conceitual. Descola considera que houve uma indevida agregação, por parte de Clastres, dentro de uma noção finita de “chefia sem poder”, de diversos tipos de chefia e formas de autoridade, que teriam sido apresentadas de forma mais apropriada pelo artigo no qual se baseou em sua construção, o de Robert Lowie.[3]
Em suma, se seguirmos Descola, Clastres operou uma dupla redução: estendeu demasiadamente a instituição da chefia e hipostasiou o conjunto das relações políticas. Mas este procedimento, problemático empiricamente, teve suas razões de ser. Trataremos delas aqui, deixando para um outro momento um debate crítico sobre a atualidade da tese de Clastres.
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“Sem Fé, nem Lei, Nem Rei”?!
A hipóstase conceitual operada por Pierre Clastres pode ser vista como uma inteligente reapropriação inversora da acusação dos colonizadores do Brasil a respeito dos povos nativos: eles seriam “gentes sem Fé, sem Lei, sem Rei”.
Esse era um lugar comum, no século XVI, presente nas cartas de Nóbrega e Anchieta: “a língua geral falada na costa do Brasil não tem os fonemas F, L e R. Sem Fé, sem Lei e sem Rei, o selvagem não conhece a revelação da verdadeira igreja, nem a racionalidade das leis do Império português, nem o bom governo da monarquia cristã”.[4] O enunciado que os indígenas “não têm Fé, nem Lei, nem Rei” foi dito pela primeira vez por Pero de Magalhães Gândavo, no primeiro livro de “história” do Brasil, o História da Província de S. Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, publicado em 1576. Gândavo construiu aí, de modo curioso, um argumento que conecta teologia, linguística e política, uma vez que “explicou”, sob o fundo de uma estruturação religiosa do mundo, a ausência das instituições do Rei, da Igreja e da Justiça pela ausência de fonemas na língua tupi, que os levaria a viverem “sem justiça e desordenadamente”:
Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medida.[5]
Tal imaginário se consolidou de tal forma que colonizou a própria linguagem etnológica e filosófica dos intelectuais europeus. Ciente de tal senso comum sobre o indígena ameríndio, Clastres mantém a extensão do termo, o que lhe permite falar no nível de generalidade que abarca quase toda a América indígena, mas o faz para subverter os próprios termos da questão. Ele começa por criticar o etnocentrismo que se estende desde os primeiros viajantes até a etnologia e a filosofia que eram suas contemporâneas. Segundo ele, seria necessário realizar uma arqueologia da linguagem e do saber sedimentados nas interpretações modernas – principalmente aquelas realizadas pelos próprios antropólogos – em relação aos indígenas: “o que esta linguagem diz exatamente, e a partir de que lugar diz ela o que diz?”.
Esta arqueologia da linguagem e do saber está, para ele, vinculada a uma arqueologia da violência. Esta revolução no campo da reflexão etnológica precisa se iniciar, em primeiro lugar, pela refutação dos próprios critérios de definição do arcaísmo; e, em seguida, pela explicação da ausência de poder central nestas sociedades sem Estado. Portanto, a reflexão sobre o político, com a consequente renovação do conceito de poder, deve partir da crítica do etnocentrismo.
Pensando o poder de outro modo
Desde a década de 1950, gerou-se um processo de autorreflexão dos fundamentos discursivos da ciência ocidental no mundo europeu. Principalmente no campo antropológico, ela ganha forma de crítica ao etnocentrismo do Ocidente. Na época em que Clastres escreveu, vivia-se em uma ascensão de uma “consciência etnológica”, que se tornou aguda na esteira do processo de descolonização da África e da Ásia iniciado no imediato pós-guerra. Além disso, a crise da consciência ocidental, em geral, se articulou com uma crise do marxismo como ideologia revolucionária, em particular.
Podemos dizer que, nestes anos 1960 e 1970, temos os primeiros contornos de uma crise da ideia de progresso, que está em uma nova fase em nossos tempos de Antropoceno. Todos os iniciados em antropologia sabem o quanto a tradição antropológica do século XIX foi marcada por uma concepção evolucionista das sociedades humanas. Muito embora ele tenha sido minado desde o início do século XX no interior da antropologia, com o avanço da antropologia cultural norte-americana (de Franz Boas, Edward Sapir, Benjamin Whorf, mas também de Ruth Benedict, Margareth Mead e Gregory Bateson), as pressuposições etnocêntricas que enquadram o pensamento a respeito do mundo permaneciam (e permanecem em grande medida) muito presente tanto no discurso científico quanto no senso comum.
François Dosse apontou, com razão, que um dos principais impulsos de uma consciência etnológica europeia se deu com o movimento estruturalista. De fato, Claude Lévi-Strauss é a grande referência de crítica ao eurocentrismo na época. Com ele, consolida-se a tese sobre o caráter ubíquo do etnocentrismo em todas as culturas. A passagem clássica do brilhante ensaio Raça e História, escrito para a UNESCO em 1950, ilustra bem a questão do etnocentrismo em Lévi-Strauss, visto como “naturalmente” presente na cultura:
a diversidade das culturas raramente surgiu aos homens tal como é: um fenômeno natural, resultante das relações diretas entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo contrário, uma espécie de monstruosidade ou de escândalo […] A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicossociológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados em uma situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos.[6]
Clastres concorda com a tese de Lévi-Strauss, mas coloca algumas ressalvas importantes. Ele define o etnocentrismo de uma forma diferente: o etnocentrismo “mediatiza todo o olhar sobre as diferenças para identificá-las e finalmente aboli-las”;[7] o etnocentrismo “não pode deixar subsistir as diferenças (cada uma por si) em sua neutralidade, mas quer compreendê-las como diferenças determinadas a partir do que é mais familiar”.[8] Portanto, digamos que o etnocentrismo tende a transformar todas as diferenças em elementos que rotacionam em torno do centro solar de seu umbigo cultural.
Embora tal fenômeno possa ser dito universal, há diferenças entre o etnocentrismo dos “selvagens” e o etnocentrismo europeu (e de outras formas-Estado que se caracterizam por um avanço colonizador/imperialista sobre outros povos). Para Clastres, importa perceber a natureza própria do etnocentrismo ocidental, que atribui um estatuto de cientificidade, objetividade e universalidade a um discurso que, irrefletidamente, reproduz uma concepção etnocêntrica de mundo:
O selvagem de qualquer tribo indígena ou australiana julga que a cultura é superior a outras sem se preocupar em exercer sobre elas um discurso científico, enquanto a etnologia pretende situar-se de chofre no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece, sob muitos aspectos, solidamente instalada em sua particularidade, e que o seu pseudo-discurso científico se deteriora rapidamente em verdadeira ideologia […] Decidir que algumas culturas são desprovidas por não oferecerem nada de semelhante ao que a nossa apresenta não é uma proposição científica: antes denota-se aí, no fim das contas, uma certa pobreza de conceito.[9]
Desta forma, a linguagem e o saber mobilizados a respeito dos selvagens veiculam um julgamento de valor que destrói de imediato a própria objetividade que pretende fixar. Ao falar disso, Clastres não se opõe à ciência. Portanto, não existe nele, assim como não há em Lévi-Strauss, qualquer tentação de um relativismo epistemológico laxista, em que qualquer pretensão vale como verdade. O ponto é outro: para que se faça efetivamente ciência, deve-se começar por descentrar o olhar sobre o outro; e como os discursos das ciências humanas e sociais são conformados por acúmulos de sedimentações históricas de representações que possuem vieses etnocêntricos, é fundamental que se faça a arqueologia da linguagem dessas ciências, mas sem jogar a criança fora junto com a água do banho.
Indo para nosso ponto: diante do fato das sociedades sem Estado, como explicá-las de forma não etnocêntrica?
Como explicar a ausência do Estado? A explicação etnocêntrica
As civilizações ocidentais (mas não só elas, diga-se claro) identificam, tendencialmente, o poder com o Estado, de tal forma que a ausência de Estado é concebida como ausência de poder. Trata-se, em uma palavra, de um preconceito (no sentido hermenêutico do termo) a respeito do poder:
O modelo ao qual ele [o poder] se refere e a unidade que o mede são constituídos pela ideia que a civilização ocidental desenvolveu e formou o poder. Nossa cultura, desde as suas origens, pensa o poder político em termos de relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência. Toda forma, real ou possível, de poder é, portanto, redutível a essa relação privilegiada que exprime a priori a sua essência. Se a redução não é possível, é que nos encontramos aquém do político: a falta da relação comando-obediência implica ipso facto a falta de poder político. Por isso, existem não só sociedades sem Estado, mas também sociedades sem poder.[10]
Assim, pela definição etnocêntrica de um poder identificado ao Estado, a antropologia e a sociologia acabam por restringir o fenômeno político de tal forma que existirão algumas sociedades que estariam num estado pré-político de existência: as sociedades sem Estado. Colocando os problemas nestes termos, surgem as formas de explicação da ausência, falta ou incapacidade de tais sociedades ascenderem à existência na forma-Estado. Normalmente, explica-se, seja pela via marxista, seja por uma sociologia funcionalista, que determinada sociedade não tem Estado porque carece de desenvolvimento das forças produtivas e de uma complexificação da divisão do trabalho. Todavia, Clastres busca refutar a possibilidade de se explicar a ausência do aparelho estatal por tais supostas “carências”, distanciando-se assim tanto do marxismo quanto da sociologia política.
Ele argumenta contra a explicação economicista da ausência de poder central, que atribuiria a falta de Estado ao fato dos indígenas viverem numa “economia de subsistência”. Se tais economias possuem, de fato, um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, isso não decorre da incapacidade de acumular nem de produzir, tampouco por uma suposta falta de técnica para a dominação da natureza, que as colocaria numa subjugação permanente às necessidades ditadas pelo império das leis naturais. Para essa visão, essas sociedades seriam incapazes de ascenderem à história e à sofisticação das sociedades com Estado, isto é, incapazes de se tornarem civilizações (a não ser com a ajuda “benevolente” de uma “conquista civilizatória”). Não é um acaso que esta concepção etnocêntrica acerca da ausência de Estado dentre os ameríndios das terras baixas da América do Sul tende a se encantar com as estruturas estatais evoluídas das sociedades indígenas pré-colombianas das Américas (Incas, Astecas e Maias).
Ao contrário desta visão, tais sociedades sem Estado não lidam, para Clastres, com o problema da escassez tal como o compreendemos. Isso porque elas não são sociedades fundadas no trabalho e no domínio do homem sobre a natureza, e não operam pela expansão contínua das necessidades de consumo. Se tal processo não é deslanchado historicamente, isso não se deve a uma incapacidade (contingente ou estrutural) de efetivar um potencialidade necessária das sociedades humanas, que seriam movidas por algum telos rumo ao aparelho estatal e ao desenvolvimento econômico. A crítica de Clastres se volta, de certa forma, contra a explicação marxista da história. Não nos cabe entrar aqui nesta questão. De todo modo, Clastres conclui, sarcasticamente, a respeito do nível de “subsistência” dos ameríndios – usado normalmente como um signo de arcaísmo – dizendo que: “é antes o proletariado europeu do século XIX, iletrado e subalimentado, que se deveria qualificar de arcaico. Na realidade, a ideia de economia de subsistência provém do campo ideológico do Ocidente moderno, e de forma alguma do arsenal conceitual da ciência”.[11]
Do mesmo modo, Clastres se volta contra a sociologia aos moldes de Max Weber, porque ele recusa a ideia de que o que define o poder político é a dominação (ou, na falta de legitimidade, a violência pura e simples).[12] Para Clastres, a dinâmica do poder político das sociedades sem Estado não pode ser explicada sociologicamente, tampouco economicamente: sua razão de ser é política. Funda-se em uma escolha (choix).
Mas, antes de tratar disso, vale uma observação sobre um modo de proceder que é aparentemente oposto à postura evolucionista: é aquele que conceitua o poder tornando-o ubíquo no interior do social. É quando o poder se torna algo que “está em todo lugar e em lugar nenhum”. Ao invés de prover a antropologia política de um conceito adequado, essa forma de compreender o poder manifesta, em sinal invertido, a incapacidade de compreender a natureza do poder.
Onde está o poder?
Clastres constata que ocorre em sua época, como resultado de uma má conceituação do poder, um processo de “dissolução gradual do político” na literatura antropológica. Como não se constitui um conceito adequado da essência do político, ocorre que ele acaba por se dissolver em todos os níveis da sociedade. Na incapacidade de centralizar o poder no Estado, ele é visto em todos os cantos da sociedade:
tudo cai desde então no campo do político, todos os subgrupos e unidades que constituem uma sociedade são investidos, com ou sem motivo, de uma significação política, a qual acaba por abranger todo o espaço do social e perder consequentemente a sua especificidade. Pois, se o político existe em toda a parte, ele não existe em lugar nenhum. Aliás, é de se perguntar se não se procura dizer justamente isto: que as sociedades arcaicas não são verdadeiras sociedades, já que não são sociedades políticas. Em suma, teríamos o direito de decretar que o poder político não é pensável, visto que é aniquilado no ato mesmo em que é apreendido.[13]
Esta crítica se dirige à etnologia da época. Mas um leitor de Foucault logo poderia vê-lo atingido. Se a etnologia tendia a dissolver o poder em todo o espaço social exatamente por não ter elaborado um conceito adequado do político, parece que Foucault fez o mesmo no tocante às suas investigações genealógicas da década de 1970. Clastres escreveu seu artigo em 1969, portanto um ano antes da aula inaugural de Foucault no Collège de France.[14] Nesta aula inaugural, Foucault lança as bases de seu programa de pesquisa, inaugurando a fase genealógica, que resultará, em 1974, em Vigiar e Punir. Ao que tudo indica, Clastres é um crítico avant la lettre do conceito microfísico de poder de Foucault, que, de seu lado, cita Clastres apenas em uma conferência de 1981.[15]
Foucault faz uma apropriação bem singular de Clastres para criticar a tradição etnológica de estudo do poder, de Durkheim a Lévi-Strauss. Segundo Foucault, essa tradição seria centrada na “regra”; logo, conclui ele um pouco apressadamente, é uma “etnologia da punição”.[16] Ele diz que Clastres seria um exemplo de novas concepções de poder, aproximando-o de sua própria concepção: “toda uma nova concepção do poder como tecnologia, que experimenta se emancipar do primado, deste privilégio, da regra e da proibição, que, no fundo, havia reinado sobre a etnologia desde Durkheim até Lévi-Strauss”. Independente da possível aproximação entre ambos – que considero na verdade muito forçada – pela via de uma concepção de poder como tecnologia, Clastres tem uma compreensão que recusa a ubiquidade dada por Foucault e, de forma próxima a Claude Lefort (seu interlocutor e colaborador), Clastres pensa o poder, fenomenologicamente, como instituindo uma ordem política em sua unidade e diferença, ou seja, como regime político. Portanto, o poder político não se dissolve para Clastres num uso “tecnológico” numa microfísica de relações de discursos, saberes e poderes, pois ele é o que constitui a vida social, sua própria condição de possibilidade. O poder é aquilo que estabelece a lei, o saber e a verdade a partir de uma posição de exterioridade.
Segundo Clastres, então, no erro de perspectiva vigente na etnologia, oscila-se entre um conceito de poder centrado no Estado e um conceito de poder marcado pela ubiquidade; ficamos então (que me permitam um jogo de palavras com o livro de Umberto Eco que trata de coisa completamente diferente) em um “pêndulo de Foucault”, pois acabamos chegando, segundo a fantasia dos observadores e variedade das sociedades, a encontrar o político em todo lugar ou a não encontrá-lo em parte alguma”.[17]
Explicar politicamente o poder
Tratando-se de uma pobreza de conceito, como é possível elaborar um conceito de poder que dê conta da extensão do espaço do político presente universalmente nas sociedades humanas?
A grande maioria das sociedades indígenas da América são sociedades sem Estado, ainda que possuam uma forma de poder, a de chefia, que tem por principal atributo o caráter paradoxal de ser um poder impotente. Ora, levando os nativos a sério, é necessário conceber a possibilidade de sociedades em que o poder existe de fato, mas é “totalmente separado da violência e exterior a toda hierarquia”. A coerção e a subordinação não “constituem a essência do poder político sempre e em qualquer lugar”.[18] Por isso, para Clastres, é necessário renovar a reflexão sobre o político, de forma a ampliar o conceito de poder para além de sua forma coercitiva.
“O poder político é universal, imanente ao social”.[19] Só que ele pode se realizar ao menos de duas maneiras. Para além da falsa dicotomia entre sociedades sem Estado (logo, sem poder) e sociedades de Estado (logo, com poder), devemos trabalhar com uma dicotomia que realmente dê conta do espaço político na sua forma universal: sociedades de poder político não-coercitivo, que são as sociedades contra o Estado, e sociedades políticas de poder coercitivo, que são sociedades de Estado. Isso relega o tipo de poder como coerção e violência a uma modalidade particular de poder; o Estado é apenas uma modalidade do poder, e não a manifestação de sua essência. Existem sociedades sem um poder visível, separado do social. E essas sociedades são, ainda assim, sociedades com poder político, sociedades políticas. Para ele, o social e o poder são consubstanciais: “podemos pensar o político sem a violência, mas não podemos pensar o social sem o político; em outros termos, não há sociedades sem poder”.[20]
O que se deve ver aí, então, é que as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado. Que tipo de poder político é exercido nessas sociedades? Aqui vem uma afirmativa bem problemática, que faz com que muitos torçam o nariz à tese do autor: para ele, as sociedades contra o Estado se fundam numa decisão de não permitir a dissociação de uma instância de poder em relação ao social. A ausência de poder é a própria manifestação de um político que não se deixa dissociar do social e encarnar em algo que pode ser chamado de Estado. É uma recusa do Estado e, na mesma medida, uma recusa da História. Isso porque existe uma correlação entre as sociedades de Estado e as sociedades de História.
As sociedades estatais são sociedades que, de fato, geram uma inovação social permanente, são sociedades históricas. Poder político marcado pela coerção e violência, com divisão entre dominantes e dominados, e poder do conjunto humano sobre a natureza e a história, andam no mesmo compasso compondo uma mesma dança. Desta forma, existe uma forma de articular politicamente o social em uma recusa combinada de três processos: acumulação econômica pelo trabalho; dominação do homem pelo homem e pelo Estado; e inovação social pela História. Clastres propõe que interpretemos conjuntamente as três recusas como fazendo parte de uma escolha política. Que se faça uma interpretação política dos nativos destas sociedades levando-os a sério, percebendo na forma de justificação e organização do dispositivo político dos “selvagens” uma filosofia: a filosofia da chefia indigena.
Eis aqui o que Clastres chama, sem qualquer humildade, de uma “revolução copernicana” na compreensão da natureza do poder. Ao invés de explicar o poder político pela diferenciação social, “não seria o poder político que constitui a diferença absoluta da sociedade? Não teríamos aí a cisão radical enquanto raiz do social, a ruptura inaugural de todo movimento e de toda história, o desdobramento como matriz de todas as diferenças?”.[21] Trata-se de uma revolução copernicana porque, se antes todas as sociedades arcaicas giravam em torno da terra Ocidental que girava em torno de seu próprio umbigo, agora as sociedades históricas se poriam em movimento girando em torno do Sol do político revelado pelo horizonte das sociedades arcaicas.
Há uma filosofia política dos “selvagens” implícita no sistema de chefia indígena e nos mecanismos sociais das sociedades ameríndias contra o Estado. Cabe-nos então refletir sobre o que tal filosofia pode nos desvelar a respeito da ocultação do Ser. É o que faremos no próximo Pontos de Leitura.
Notas
[1] CLASTRES, P. [1974] (2003) A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, p.27 (nova publicação pela UBU)
[2] DESCOLA, Philippe (1988) La chefferie amérindienne dans l’anthropologie politique. Revue Française de Science Politique, 38 (5), p.818-827.
[3] O artigo a que me refiro é: LOWIE, R. (1948) Some aspects of political organization among American aborigines. Journal of the Royal Anthropological Institute, 78 (1-2), p.11-24.
[4] HANSEN, J. A. (2003) Apresentação. Imagens de missionários jesuítas nos textos de Nóbrega e Anchieta. In: MOREAU, F. E. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo: Annablume, 2003, p.20.
[5] GÂNDAVO (1576) História da Província de S. Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, Capítulo X. Do gentio que ha nesta provincia, da condição e costumes delle, e de como se governam na paz. Lisboa: Oficina de Antonio Gonzales, p.33. Adequei esta citação à ortografia do português atual.
[6] LÉVI-STRAUSS. Raça e História (1950). In: Lévi-Strauss. São Paulo: Editor Victor Civita, 1976, p.59.
[7] CLASTRES, P. [1974] (2003) A sociedade contra o Estado, op. cit., p.32.
[8] Ibid., p. 33.
[9] Ibid., p.33.
[10] Ibid.,p. 31-32.
[11] Ibid., p.30.
[12] Não entro aqui em detalhes da sociologia weberiana, que pode ser entendida de modo mais sutil. De todo modo, Clastres está tocando num ponto essencial da definição weberiana de política, que se baseia nos meios e não nos fins. Definir a política pelo meio – o poder de coação física –, recusando-se a compreendê-la pelos fins – por exemplo, a constituição de um viver-em-conjunto – é perder de vista a própria essência do poder de um ponto de vista antropológico.
[13] Ibid, p.34-5.
[14] A aula inaugural no Collège de France, pronunciada ao assumir a cadeira que era anteriormente de Jean Hyppolite, foi lecionada em 2 de dezembro de 1970. Foi publicada posteriormente em: FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
[15] FOUCAULT, M. (1981) Les mailles du pouvoir, pronunciada na UFBA, Salvador, BA, em 1981; in: FOUCAULT, M. Dits et écrits. vol. 2 : 1976-1988, Paris, Gallimard, coll. Quarto 2001.
[16] Foucault erra enormemente ao confundir o pensar a regra ou lei com uma “etnologia da punição”. Uma coisa não implica a outra. Desse modo, mostra-se bem limitada a interpretação que ele faz de Durkheim. Talvez Foucault não tenha tido tempo de ler Divisäo do trabalho social, O suicídio e As formas elementares da vida religiosa, até porque ele não precisava, já que havia fulminado a sociologia com sua constatação de instabilidade epistêmica em As palavras e as coisas. No tocante a Lévi-Strauss, compreender a regra como “punição” também é bastante limitado. Em As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss mostra como uma regra negativa, a proibição do incesto, é uma regra plena de positividade, geradora da própria condição de possibilidade do social. Eis então que se descobrirá, melhor conceituada talvez, a questão que o próprio Foucault elabora, nos anos 1970: uma dimensão produtiva e generativa do poder. Uma concepção que ele formulou com a intenção de retirar do conceito de poder a compreensão negativa da geração da qual ele mesmo fez parte, que teria tido um entendimento simétrico e inverso àquela do “punitivismo”, guiado pelo lema libertário do “proibido proibir”.
[17] Ibid., p.37.
[18] Ibid., p.28-9.
[19] Ibid, p. 37.
[20] Ibid., p.38.
[21] Ibid., p. 41.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
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