Traduzido por: André Magnelli
Revisado por: Rafael Damasceno e Maryalua Meyer
A Série “A História Antropológica de um Ponto de Vista Tecnológico”
A Série, publicada em Fascículos pelos Cadernos do Ateliê, do Ateliê de Humanidades, tem o propósito de disponibilizar ao grande público ensaios de “antropologia das tecnologias”. Ela tem o intuito de publicar, principalmente, traduções de textos clássicos da história da antropologia (e de suas ciências irmãs, como a arqueologia e a etologia) que tenham assumido uma posição do “ponto de vista tecnológico”. Pretendemos trazer também ensaios contemporâneos que trabalham com uma abordagem antropológica das técnicas, dos objetos técnicos e das tecnologias.
Nesse primeiro fascículo da série trazemos o artigo de Marcel Mauss, “As Técnicas e a Tecnologia” (1941/1948).
Apresentação do texto[1]
A importância da obra de Marcel Mauss para os estudos sobre magia, religião, sacrifício, formas de classificação, contrato e troca é bastante conhecida e reconhecida dentro das ciências sociais. Mais recentemente, tem-se descoberto também o significado das pesquisas do antropólogo francês sobre a nação e a civilização. Contudo, ainda é dada pouca atenção para (mais) um projeto esboçado e inacabado de Mauss: o de uma teoria geral (isto é, uma “tecno-logia”), das técnicas e dos objetos técnicos.
Exceto o célebre ensaio maussiano sobre As técnicas do corpo (1934), os demais textos e trechos da obra do antropólogo francês não receberam ainda a devida atenção.[2] Mas a questão das técnicas é uma presença constante em sua obra e em seus cursos. Em grande parte, a razão por sua desconsideração está no fato dele ter pouco escrito sobre o tema, legando-nos uma escassa documentação sobre um tópico cujas lições influenciaram obras como a do arqueólogo André Leroi-Gourhan (1911-1986) e do etnólogo e linguista André-Georges Haudricourt (1872-1927).
No itinerário de Mauss, uma primeira reflexão sobre o fenômeno técnico aparece no Esboço de uma Teoria Geral da Magia (1902-1904), escrito a quatro mãos com o arqueólogo e amigo Henri Hubert (1872-1927).[3] Nele os autores tratam das artes, técnicas e ciências mostrando suas similitudes funcionais e, mesmo, suas origens históricas com a magia. Fora algumas intervenções em torno do tema[4] e algumas considerações marginais no tratamento da origem das categorias sociológicas, notadamente a de “matéria”[5], a questão das técnicas e dos objetos técnicos ganha contornos mais claros na sua relação com a obra maussiana em três momentos.
Em primeiro lugar, as pesquisas tecnológicas ganham feições de projeto, pela primeira vez, nos seus Cursos de Etnografia, onde é encontrado um extenso capítulo sobre tecnologias, com tipologia e análise das técnicas e dos objetos técnicos nas sociedades ‘primitivas’ (1926).[6] Em segundo lugar, encontramos, no ensaio de sociologia geral “Divisões e proporções das divisões da Sociologia” (1927), a apresentação da tecnologia, juntamente com a morfologia social, a estética e a linguagem, como sendo um dos fenômenos sociológicos fundamentais, mas que teriam sido injustamente classificados na seção “Diversos” de L’Année Sociologique.[7] E, em terceiro lugar, aparece uma primeira definição maussiana do fato técnico na forma específica de sua encarnação tradicional e eficaz no corpo humano, no ensaio já mencionado sobre as técnicas corporais (1934).[8] Tais técnicas do corpo serão não apenas um gênero de técnica, mas também o próprio paradigma da técnica – posição teórica criticada posteriormente pelo ex-aluno Leroi-Gourhan.
O Texto
O texto por ora traduzido é muito provavelmente o último escrito por Marcel Mauss, em um momento em que ele já sofria dos sintomas de uma provável degenerescência do sistema nervoso central, vindo a falecer 2 anos após sua publicação. Ele consiste em uma comunicação enviada a uma jornada de psicologia e história do trabalho e das técnicas, ocorrida em Toulouse, em 1941. Um extrato dele foi publicado em 1948 no Journal de Psychologie, com aparentes revisões textuais feitas pelo próprio autor.
O argumento se divide em algumas partes. Primeiro (1), o autor propõe que se desenvolva uma “tecnologia”, entendida como estudo geral das técnicas, no que realiza um contraste entre o atraso francês e o avanço alemão. Segundo (2), ele define, classifica e estabelece as bases do método de estudo das técnicas. Terceiro (3), passa a considerações sobre o papel das técnicas no desenvolvimento histórico e trata do imbricamento entre técnicas e ciências nas sociedades modernas; enfim, (4) diagnostica, bem no espírito da época, um processo de planificação técnica do social.
1. Um programa de pesquisa se enuncia, para nós, quando Mauss faz uso do conceito de “tecnologia” como teoria geral das técnicas. Falando diante de um auditório francês especializado no uso da psicologia aplicada a técnicas – as “psicotécnicas” -, sobretudo para o mundo do trabalho, ele defende a necessidade de uma reflexão histórica e científica sobre as técnicas. Tendo o intuito de “estudar todas as técnicas, toda a vida técnica dos homens desde a origem da humanidade até nossos dias” (p. 1), a tecnologia busca
assinalar qual é o lugar da tecnologia, quais trabalhos ela produziu, quais resultados já foram adquiridos, o quanto ela é essencial para todo estudo do homem, de seu psiquismo, das sociedades, de sua economia, de sua história, do próprio solo do qual vivem os homens e, consequentemente, de sua mentalidade (p. 2).
Percebe-se, em tal passagem, que o conceito maussiano do fato social total, elaborado em outro lugar de sua obra, deve incluir não apenas o dom e o simbólico, mas também o técnico e o tecnológico.
Ao defender a necessidade de tal ciência, ele diagnostica, em plena IIa Guerra Mundial, que a França se encontra atrasada em relação à Alemanha e aos EUA. Atribuindo aos alemães não somente uma forte tradição de teoria e história das técnicas, mas também, com o trabalho pioneiro de Franz Reuleaux, o estabelecimento do ensino geral da tecnologia nas escolas, o antropólogo francês parece defender uma causa bem atual para o século XXI: “Em um momento em que a técnica e os técnicos estão em moda – por oposição à ciência chamada pura e à filosofia, acusadas de serem dialéticas e vazias -, seria preciso, no entanto, antes de exaltar o espírito técnico, saber o que ele é” (p. 3). Para isso, o ensino geral sobre a natureza das técnicas e dos objetos técnicos deveria fazer parte do currículo dos estudantes e da agenda de pesquisa dos universitários.
2. Após tal defesa de uma ciência e o estudo das técnicas, somos surpreendidos negativamente com a definição por ele proposta. Preocupado em distinguir “técnica” de “religião” e de “arte”, ele a restringe a muito pouco: “Chama-se técnica um grupo de movimentos, atos, geralmente e na maioria manuais, organizados e tradicionais, que concorrem para obter um objetivo conhecido como físico ou químico ou orgânico.” (p. 3). Por que restringir a técnica a “movimentos, atos, geralmente e na maioria manuais”, parece-nos um enigma, pois, no mesmo texto, Mauss mostra ter conhecimento das mais avançadas técnicas de seu tempo – incluindo a radioatividade – e falar de um processo de automação irreversível. Se aceitássemos tal definição estrita, boa parte das tecnologias modernas, incluindo obviamente as contemporâneas – tecnologias de informação, biotecnologias, inteligências artificiais, etc. – acabaria por sair do escopo de seu projeto. A noção de técnicas corporais deve ter enviesado, desta forma, o seu olhar sobre o fenômeno como um todo.
De todo modo, se deixamos de lado tal ponto, podemos centrar atenção nas feições do projeto antropológico geral. Muito embora o texto esteja datado (e muito) do ponto de vista dos dados arqueológicos, uma parte dos princípios continua vigente. Parece-nos fundamental a proposta de uma abordagem antropossociológica, em que as técnicas e os objetos técnicos são analisados tomando-se em conta a dimensão social-histórica de sua inserção, mas sem que, com isso, as técnicas sejam redutíveis a ela. Como mostra bem Mauss, as técnicas e os objetos técnicos são de uma ordem própria impossível de ser reduzida, a priori, seja ao econômico, ao político ou ao social.
Além disso, há outra contribuição para o debate sobre o lugar da técnica na história humana. Lidando com a tese do homo faber, ele se recusa a pensar o humano somente pela via da “tecnicidade”, pois o que o caracteriza é, antes de tudo, a criação. Neste sentido, utilizando Bergson, ele defende uma ruptura entre animalidade e humanidade que, hoje, é amplamente contestada pela etologia e a antropologia. Independente disso, fica o princípio: falar em técnicas, objetos técnicos e tecnologias humanas, é falar, para Mauss, em mais do que uso de meios para chegar a fins, é falar em invenção e criação: Ars homo additus naturae, diz-nos, citando Francis Bacon.
3. Se Mauss critica as teses evolucionistas, recomendando precaução na tentação de ler a história humana somente do ponto de vista da técnica, ele afirma, contudo, a importância da “indústria” (no sentido lato do termo) para a história e o estudo comparado das sociedades. Parafraseando Kant, podemos dizer que há um esboço de projeto de história universal de um ponto de vista tecnológico (logo, cosmopolita). Diante de uma tendência, existente desde o estruturalismo e o pós-estruturalismo, de interpretar o mundo em termos de simbólico, de linguagem e de discurso – o que é feito muitas vezes, com razão, remetendo ao próprio Marcel Mauss como sendo grande predecessor -, não deixa de ser terapêutico encontrar o “inventor do simbólico” defendendo a aderência da imaginação e da cultura no material, afirmando a indissociabilidade entre os sistemas simbólicos e o fazeres técnicos, o desenvolvimento do espírito e o da técnica.
4. O texto, escrito sobre o pano de fundo de uma guerra mundial e do nazismo, é muito ambivalente. O seu desfecho chega ao cume, quando o autor trata da planificação social. Ele nos parece enunciar a entrada definitiva na era do tecnicismo – dos “planos” chegamos ao Plano, à planificação. Difícil imaginar um judeu, que experimentava a força técnica de um nazismo antissemita, ser impassível a tal fato. Dentre as entrelinhas se enuncia o afeto, mas ele é dito na forma de uma mera constatação: “não há mais como dominar o demônio desencadeado” (p. 6).
Como sempre em sua obra, há uma tensão entre passagens quase pueris e outras com traços de gênio. Se ele é capaz de agregar significantes sem quaisquer análises, de forma arbitrária, dizendo que “quem diz plano, diz a atividade de um povo, de uma nação, de uma civilização, diz, melhor que jamais, moralidade, verdade, eficácia, utilidade, bem”, ele o faz enunciando, no mesmo lugar, que, diante da formação de um sistema técnico inteiramente interligado, não podemos mais nos contentar com uma crítica “tecnofóbica”.
O mesmo autor que, algumas vezes, é visto e apropriado como uma espécie de “arcaísta do dom” – acusação inteiramente injusta, pois o paradigma do dom não tem nada de arcaísmo -, acaba por afirmar, sem grandes mediações, o caráter incontornável do círculo técnico-científico: “Os planos de ação são mais que uma moda; eles são necessidades. As técnicas já são independentes, melhor, elas já estão em ordem entre si” (p. 6). Oscilando entre um otimismo do progresso técnico e uma consciência dos riscos nele implicados, o velho Mauss quer, no fim das contas, continuar a passar as lições de sobriedade do durkheimianismo aprendido na juventude: “Não acusemos nem louvemos”, diz-nos; o que quer dizer: “apenas pesquisemos e entendamos”. Afinal, conclui ele, àquele que queira recuperar os motes dualistas do idealismo, é importante começar a perceber ser “Inútil opor matéria e espírito, indústria e ideal. No nosso tempo, a força do instrumento é a força do espírito, e seu emprego implica a moral, assim como a inteligência” (p. 7).
As Técnicas e a Tecnologia (1941/1948)[9]
Marcel Mauss
Extrato do Journal de Psychologie, 41 (1948), Paris. A comunicação foi enviada às Journées de psychologie et l’histoire du travail et des techniques em Toulouse, no ano de 1941. Publicado em: Les techniques et la technologie. In: Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la sociologie. p. 250-256).
[Por uma tecnologia como estudo geral das técnicas: contraste entre França e Alemanha]
[71] Para falar adequadamente das técnicas, é preciso, antes de tudo, conhecê-las. Ora, existe uma ciência que se interessa por elas, aquela que é chamada “a tecnologia”, e que não encontra na França o lugar que lhe é de direito.
É útil indicá-la aqui, sobretudo quando é a Sociedade de Estudos Psicológicos que organiza esta “Jornada de psicologia e história” (“Journée de psychologie et d’histoire”).
Nestas matérias de psicologia propriamente dita a França tem, de fato, ultrapassado os outros países. Aqueles da minha geração assistiram à invenção – por Binet, Simon, Victor Henri, a que se somam em seguida Piéron, depois Meyerson e Lahy, e que outros continuam com eficácia – aplicações da psicologia às técnicas, e, mais particularmente, ao recrutamento dos operários e dos técnicos.
Não é senão após a guerra de 1914 que, tendo sido aperfeiçoada na América do Norte, a psicotécnica, que havia se desenvolvido por todo lugar, teve seu primeiro boom na França, sobretudo em Paris, e que procedimentos consideráveis obtiveram resultados não menos palpáveis, até mesmo indispensáveis.
Se esta parte do estudo das técnicas tem uma boa origem francesa, é preciso dizer, ao contrário, que a ciência da qual ela é um capítulo não teve os mesmos desenvolvimentos: eu quero falar da tecnologia.
É claro que a psicologia das técnicas que se faz atualmente é aquela de um momento da história e da natureza dessas.
A tecnologia é uma ciência muito mais desenvolvida alhures do que na França. Ela pretende, com razão, estudar todas as técnicas, toda a vida técnica dos homens desde a origem da humanidade até nossos dias. Ela está na base e também no topo de todas as pesquisas que têm este objeto. A psicotécnica não é [72] senão uma técnica das [sic.] técnicas. Ora, ela [a tecnologia] supõe profundos conhecimentos gerais do objeto geral, as técnicas.
É preciso, portanto, antes de tudo, assinalar qual é o lugar da tecnologia, quais trabalhos ela produziu, quais resultados já foram adquiridos, o quanto ela é essencial para todo estudo do homem, de seu psiquismo, das sociedades, de sua economia, de sua história, do próprio solo do qual vivem os homens e, consequentemente, de sua mentalidade. Não existe razão para que ela não seja, na França, objeto de ensinos regulares e para que não falemos dela aqui. (Eu conheço, certamente, um curso, mas ele é demasiado elementar, e, além disso, destinado à observação das técnicas dos povos chamados “primitivos”, ou “exóticos”, como o queira; eu não conheço nenhuma outra).
Na verdade, essa ciência [a tecnologia] foi fundada na Alemanha: o país de eleição do estudo histórico e científico das técnicas – que, juntamente com a América do Norte agora, permanece à frente de todos os progressos técnicos. Na verdade, ela foi instituída por [Franz] Reulaux [1829-1905], o grande teórico e matemático, mecânico e técnico da mecânica. Ele encontrou junto às autoridades prussianas um eco imediato. Sob sua direção, foi aberta a primeira das Escolas Superiores Técnicas (as Technische Hochschulen), a de Berlin, que tem estatuto de Universidade, e da qual o diploma (Dipl. Ing.) tem estatuto de doutorado. O ensino geral da tecnologia, teoria e história, é obrigatório para todas as seções especiais que conduzem aos diferentes diplomas. Está aí a base natural do estudo geral das técnicas; ela deveria ser reconhecida entre nós.
Ora, aqui [na França], mesmo nos mais honoráveis estabelecimentos científicos, mesmo em nosso ilustre e sempre glorioso Conservatório [nacional] das artes e dos ofícios, a tecnologia não tem lugar de teoria geral dos ofícios. Em Saint-Germain, no Museu das antiguidades nacionais, meu saudoso irmão de trabalho Henri Hubert tinha certamente instalado a Sala de Março, consagrada à arte e à tecnologia comparada da idade da pedra; neste momento, essa sala não está mais nem em uso. No Museu do Homem, com a ajuda do Instituto de Etnologia, conseguiu-se fazer alguma coisa, estabelecida agora mesmo, mas ainda modesta. O Museu de Viena, o Pitt-Rivers Museum, o de Nordenskiöld em Göteborg são, por muitos pontos de vista, melhor estabelecidos do que nós.
[73] Quanto à teoria ou à descrição histórica, geográfica, econômica, política dos ofícios, ela foi retomada de diversas maneiras na França; mas ela nunca é feita. Nós não temos nem mesmo mantido a tradição das boas histórias da indústria tais como eram feitas pelos Becquerel e os Figuier, que, ainda que anedóticas, instruíam o jovem e mesmo a criança. Meu tio Durkheim me fez lê-los. Um desses que estavam por um bom caminho, meu velho mestre [Alfred] Espinas, nos ofereceu um curso sobre essas questões em Bourdeaux, do qual eu me lembro. (Seu livro sobre as Origines de la technologie têm ainda valor). Mas ele não desenvolveu suficientemente suas ideias e nem estendeu nem aprofundou suficientemente suas pesquisas.
[A “técnica” e os fatos técnicos: definição, classificação e método]
Algumas observações vão indicar as vias já abertas, e para onde elas conduzem.
Suponhamos conhecidos um grande número de fatos que até mesmo vários dentre vocês talvez não conheçam. Em um momento em que a técnica e os técnicos estão em moda – por oposição à ciência chamada pura e à filosofia, acusadas de serem dialéticas e vazias -, seria preciso, no entanto, antes de exaltar o espírito técnico, saber o que ele é.
Antes de tudo, eis aqui uma definição:
Chama-se técnica um grupo de movimentos, atos, geralmente e na maioria manuais, organizados e tradicionais, que concorrem para obter um objetivo conhecido como físico ou químico ou orgânico.
Essa definição tem por objetivo eliminar da consideração das técnicas aquelas sobre a religião ou a arte, das quais os atos são também, com frequência, tradicionais e até mesmo técnicos, mas cujo objetivo é sempre diferente do objetivo puramente material, e cujos meios, mesmo quando superpostos a uma técnica, são sempre diferentes dela. Por exemplo, os rituais do fogo podem comandar a técnica do fogo.
Este modo de considerar as técnicas permite classificá-las, dar um quadro comparado do que ainda se chama os trabalhos, as artes e os ofícios; assim nós dizemos “o ofício da pintura”, mesmo para o pintor de arte pura.
[74] Esta definição permite classificar os diferentes setores da tecnologia.
Há, antes de tudo, a tecnologia descritiva. Estes são os documentos:
1o histórica e geograficamente classificados: ferramentas, instrumentos, máquinas; no caso desses dois últimos, analisados e montados;
2o fisiológica e psicologicamente estudados: maneiras de se servir das técnicas, fotografias, análises, etc.;
3o classificados por sistemas de indústrias em cada sociedade estudada; exemplos: alimentação, caça, pesca, cozimento, conservação, vestimentas, transportes; estudo das utilidades gerais e particulares, etc.
A esse estudo prévio do material das técnicas, deve ser superposto o estudo da função dessas técnicas, de suas relações, de suas proporções, de seu lugar na vida social.
Esses últimos estudos conduzem a outros. Chega-se a determinar então a natureza, as proporções, as variações, o uso e o efeito de cada indústria, seus valores no sistema social. E todas essas análises precisas permitem, então, considerações mais gerais. Elas permitem, antes de tudo, diversas formas de classificação das indústrias, mas, sobretudo, elas permitem classificar as sociedades em relação a suas indústrias.
Daí uma terceira ordem de considerações gerais. Um número crescente de cientistas (etnólogos, antropólogos, sociólogos, etc.) dão uma extrema importância às comparações feitas entre essas sociedades que têm tais indústrias. Eles pensam poder provar os empréstimos dessas, os ares de repartição daquelas, e mesmo as camadas históricas de repartição, como já fizeram os pré-historiadores. Uns mais prudentes, e mesmo muito prudentes, como os americanos, constatam os fatos, e, de tempo em tempo, deduzem deles a história; outros, menos prudentes, reconstituíram toda uma história da humanidade com a história das técnicas. Chega-se daí a falar em uma idade da pedra no Congo, que pertenceria à época da civilização onde o direito de herança era de descendência uterina.
[75] Mas estes exageros não impedem a excelência do método quando ele é bem conduzido.
Mesmo a propósito das sociedades mais primitivas conhecidas, as técnicas, suas funções propagadas, após conservadas pela tradição, são – desde Boucher de Perthes – o melhor meio de classificar, mesmo cronologicamente, as sociedades. Sinanthropus, o homem das cavernas de Pequim, sabia cozinhar no fogo, o que prova que esse ser era seguramente um homem. Nós não sabemos se ele falava; é provável, já que ele podia guardar certo modo de conservar o fogo.
Eu mesmo propus algumas opiniões sobre as técnicas do corpo e suas funções.[10] Por exemplo, a técnica de natação varia e permite classificar civilizações inteiras.
Todas são específicas a cada uma, instrumentos e manejamento de instrumentos variando infinitamente. As técnicas são, portanto, ao mesmo tempo que humanas por natureza, características de cada estado social.
Eu sei que outros vêem nisso mistérios. Homo faber, que seja. Mas a ideia bergsoniana da criação é exatamente a ideia contrária da tecnicidade, da criação a partir de uma matéria que o homem não criou, mas que ele se adapta, transforma, e que é digerida pelo esforço comum, esse esforço sendo alimentado, a cada instante e em cada lugar, por novos aportes: “Ars homo additus naturae” é verdade para as artes e os ofícios, ainda mais do que para a arte: é a partir da penetração da natureza física que resulta a arte, o ofício, que vive o artesão, o industrial, e em que se desenvolvem a indústria e as civilizações, a civilização.
[Técnica & Ciência nas sociedades modernas: a centralidade da técnica]
Por um outro ponto de vista, o estudo das técnicas é ainda mais importante. É aquele das relações que ela sustenta com as ciências, filhas e mães das técnicas. De fato, hoje, a imensa maioria dos homens está mais ou menos engajada nestas ocupações. A maior parte de seu tempo está engrenada [76] neste trabalho do qual a coletividade guarda e aumenta o tesouro das tradições. Mesmo a ciência, sobretudo a magnífica ciência de nossos dias, tornou-se um elemento necessário da técnica, um meio. Nós escutamos ou vemos elétrons ou os íons por uma técnica, que todo “rádio” conhece. Um mecânico de precisão opera por perspectivas, [usando] o suporte de verniers, que, outrora, era o privilégio dos astrônomos. Um piloto de avião lê um mapa como nós nunca havíamos feito, ao mesmo tempo que ele vê as alturas das montanhas ou o fundo do mar, como nenhum de nós em nossa juventude podia sonhar. O hino à ciência e aos ofícios do século XIX é, no século XX, mais verdadeiro do que nunca. A embriaguez da produção não foi perdida. Existem belas e boas máquinas, belos automóveis. Faz-se das máquinas um bom ofício. Há o gozo da obra, há aquele do cálculo seguro, da realização perfeita e em massa, com máquinas inventadas sobre planos precisos, sobre esboços precisos, para fabricar em série máquinas ainda mais precisas e mais gigantescas, ou mais finas e que fabricam elas próprias outras máquinas, em uma cadeia sem fim onde cada uma delas não é senão um elo. Eis aí o que nós vivemos. E isso não terminou.
Se nós acrescentarmos que, em nosso dias, a técnica mais elementar, por exemplo aquela da alimentação (nós sabemos alguma coisa dela nesse momento), entra nesta engrenagem dos planos industriais; se nós notarmos que a “Economia industrial”, aquela que se continua indevidamente a considerar apenas como parte da Economia denominada política, torna-se uma roda dentada essencial da vida de cada sociedade, até mesmo das relações entre sociedades (ersatz, etc.), nós mediremos a extensão da contribuição indefinida da técnica para o próprio desenvolvimento do espírito.
Assim, desde um tempo longínquo, muito longínquo, onde Sinanthropus, o homem das cavernas de Chou-Kou-Tien, perto de Pequim, o menor homem de todos os homens que nos são conhecidos, sabia ao menos conservar o fogo, o sinal certo da humanidade, trata-se da existência das técnicas e de sua conservação tradicional. A classificação certa das humanidades existe, é aquela de suas técnicas, de suas máquinas, de suas indústrias, de suas invenções. Neste progresso se inscreve o espírito, a ciência, a força, a habilidade, a grandeza de sua civilização.
[77] Não acusemos nem louvemos, há outras coisas na vida coletiva além das técnicas, mas a predominância de tal ou qual técnica em tal ou qual idade da humanidade, qualifica as nações. Em um belo trabalho publicado na Revue de naturalistes, um de nossos bons “comparadores”, Senhor Haudricourt, acabou de mostrar como nossas melhores técnicas de atrelar bois ou cavalos a veículos vieram todas e bem lentamente da Ásia. Nisso, a Ásia foi sempre superior e, em muitas outras coisas, permanece ainda um modelo.
Pode-se mesmo falar quantitativamente dessas questões. O número de patentes adquiridas ou licenciadas na França, e cujas patentes foram reconhecidas alhures, é infelizmente bem inferior às licenças alemãs, inglesas e, sobretudo, americanas. São estas últimas que conduzem o trem, dão a cadência.
Mesmo a ciência torna-se cada vez mais técnica e a técnica age cada vez mais sobre ela. As mais puras pesquisas chegam a resultados imediatos. Todo mundo conhece a radioatividade. Está-se agora conservando-se e concentrando-se os nêutrons. Logo talvez se conhecerá o arreio. Os elétrons, nos microscópios para elétrons, crescem para o milionésimo. Está-se próximo de fotografar os átomos. Vê-se, “experimenta”-se com eles. O círculo das relações ciência-técnica é cada vez mais vasto, mas, ao mesmo tempo, melhor e melhor fechado.
Não há mais como dominar o demônio desencadeado.
Mas seu perigo é exagerado. Não falamos nem de bem, nem de mal, nem de moral, nem de direito, nem de força, nem de moeda, nem de reserva, nem de jogo de Bolsa. Tudo isso é menor do que o que se prepara.
Na hora em que se está, o destino pertence aos escritórios de estudos [bureaux d’études] tais como aqueles que as grandes fábricas sabem montar, e estes escritórios de estudos devem ter estreitas relações com aqueles de estatística, de economia, porque uma indústria não é mais possível senão por suas relações com uma quantidade de outras, com uma quantidade de ciências, quantidade de Economias dirigidas, individuais ou públicas, tão fortes quanto possível. Os planos de ação são mais que uma moda; eles são necessidades. As técnicas já são independentes, melhor, elas já estão em ordem entre si, elas já têm seu lugar, elas não são mais apenas ganchos suspensos sobre cadeias de felizes acasos, de adaptações fortuitas, de interesses e de invenções. Elas vêm se alojar em planos premeditados, onde é preciso estabelecer edifícios gigantescos para máquinas gigantescas que fabricam outras, as quais fabricarão ainda outras, finas ou fortes, mas dependendo umas das outras e destinadas a produtos tão exatos, algumas vezes mais exatos do que aqueles produtos de laboratórios de antigamente.
[Força do instrumento e força do espírito: a planificação social]
Mas o conjunto destes planos deve ser acordado de outra forma, e não pelo acaso. As técnicas se entrelaçam, as bases econômicas, as forças de trabalho, as partes da natureza que as sociedades se apropriaram, os direitos de cada um e de todos, entrecruzam-se. Agora mesmo, além dos planos, eleva-se a silhueta do “plano”, do planismo como se diz, e como em certos países já foi feito.
Eu vejo ainda nosso genial François Simiand, adjunto de Albert Thomas no Ministério do armamento da outra guerra, calcular “as existências” mundiais e também as necessidades militares ou civis do país – decidir sobre o possível e o inútil. Economia de guerra, dir-se-á, era verdade. Mas os métodos instituídos então fizeram progresso, não apenas na guerra, onde eles são necessários, mas na paz.
E, quem diz plano, diz a atividade de um povo, de uma nação, de uma civilização, diz, melhor que jamais, moralidade, verdade, eficácia, utilidade, bem.
Inútil opor matéria e espírito, indústria e ideal. No nosso tempo, a força do instrumento é a força do espírito, e seu emprego implica a moral, assim como a inteligência.
Fonte da Imagem: Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo – Salvador Dalí (1943)
Notas
[1] Outras apresentações da questão da tecnologia na obra de Mauss podem ser encontradas em: SCHLANGER, Nathalie. Une technologie engagée : Marcel Mauss et l’étude des techniques dans les sciences sociales, par Nathan Schlanger. In: Techniques, technologie et civilisation. Paris: PUF, Collection Quadrige, 2012 ; VATIN, François, « Mauss et la technologie », Revue du MAUSS 2004/1 (no 23), p. 418-433.
[2] Felizmente, foi publicada na França, com edição e apresentação de Nathan Schlanger, uma compilação dos seus textos sobre técnicas, tecnologia e civilização: MAUSS, Marcel; SCHLANGER, Nathan (org.). Techniques, technologie et civilisation. Paris: PUF, Collection Quadrige, 2012.
[3] MAUSS, Marcel (1902-1904) Esboço de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 47-181.
[4] Por exemplo: MAUSS, Marcel. (1927-1928). (1929) Débat sur l’origine de la technologie humaine. In: Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la sociologie. p. 257; (1938) [Techniques et économie]. Intervention à la suite d’une communication de Robert Marjolin. In: Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la sociologie, p. 247-249.
[5] MAUSS, Marcel. (1939/ 1945) Conceptions qui ont précédé la notion de matière. In: Oeuvres, tome II. représentations collectives et diversité des civilisations. Paris: Éditions de Minuit, 1969. p.161-168.
[6] Os cursos de etnografia, que foram lecionados entre 1926 e 1939, chegaram a nós pelo Manuel d’Ethnographie (1947), que foi uma publicação não de manuscritos do autor, mas sim de anotações de curso, organizadas por Denise Paulme: MAUSS (1926) Manuel d’ethnographie. Paris: Éditions sociales, 1967, cap. 4. Veja também: MAUSS, Marcel (1929) Les civilisations. Éléments et formes. In: Oeuvres, tome II. représentations collectives et diversité des civilisations. Paris: Éditions de Minuit, 1969. p. 459-487.
[7] MAUSS, Marcel (1927). Divisions et proportions des divisions de la sociologie. In: Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la sociologie. p. 178-245 (em especial p. 189-190, 194-200).
[8] MAUSS, Marcel (1935). As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.399-420).
[9] Foram acrescidas seções ao texto, com fins didáticos.
[10] Les techniques du corps. Journal de Psychologie, 1935, p.27