Fios do Tempo. Da presença invisível que flui sob as rochas do social: amor como experiência, crítica e excedência – por André Magnelli

O amor é uma presença quase invisível na história das ciências sociais. É claro que o amor tem sido objeto de pesquisas, especialmente em alguns livros importantes da segunda metade do século XX e início do XXI. Mas a sociologia tem lidado muito com questões de justiça, interesses e poder, com tudo o que diz respeito ao processo de “racionalização” das instituições e da vida moderna, dando pouco interesse às relações emocionais, afetivas e amorosas. No entanto, nos últimos anos, houve uma descoberta do amor de uma forma positiva e reconstrutiva, como nos clássicos estudos de Axel Honneth, Luc Boltanski e Richard Sennett.

Alguns estudos elevam o amor a uma experiência com consistência própria e central para a compreensão da vida social e das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, o livro de Gennaro Iorio, Sociologia do amor: ágape na vida social (2021), editado pelo Ateliê de Humanidades editorial com minha tradução e revisão técnica de Lucas Tavares Galindo Filho, completa o processo de retomada emergente do amor ao fornecer uma síntese teórica e empírica inédita. Enquanto editor e tradutor do livro, meu objetivo é apresentar criticamente sua tese, bem como expor a importância de sua agenda para uma sociologia do amor em diálogo com outras frentes frutíferas da sociologia contemporânea.

André Magnelli
Fios do Tempo, 07 de outubro de 2021

Obs.: Para los lectores en español, me remito a mi reseña en El fluir de un insoslayable amor en las ciencias sociales Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad (RELACES), 2021.



Da presença invisível que flui sob as rochas do social:
amor como experiência, crítica e excedência[1]

O amor é uma presença quase invisível na história das ciências sociais. Tomando emprestada uma metáfora da socióloga e psicóloga italiana Silvia Cataldi, feita na entrevista de nosso livro[2], o amor pode ser pensado como um rio cársico, fluindo sob as rochas sem que ninguém perceba sua existência ou observe seu curso intenso e constante.

É claro que o amor tem sido objeto de pesquisas, especialmente em alguns livros importantes da segunda metade do século XX e início do XXI. Mas a sociologia tem se preocupado muito, ao longo de sua história, com questões de justiça, interesses e poder, com tudo o que diz respeito ao processo de “racionalização” das instituições e da vida moderna. Assim, a sociologia toma como temas centrais os movimentos sociais, as classes sociais, as relações de poder e dominação, o Estado, etc., dando pouco interesse às relações emocionais, afetivas e amorosas. Tomando-o em relação às transformações históricas das sociedades modernas, essas relações são vistas como princípios de relacionamento e instituição na ordem privada e íntima que podem ser deixados como questões menores, a serem tratadas por religiosos ou por profissionais da psicologia e da psicanálise. Quando são objetos da sociologia, quase sempre são considerados apenas na forma da relação erótica entre amantes e muito relegados a uma especialidade considerada “menor” (como a sociologia da família ou a sociologia da literatura) ou reduzidos às críticas da indústria cultural.

É comum, neste último caso, que o amor seja explicado e entendido sociologicamente do ponto de vista da ideologia e da utopia. Nesse sentido, a sociologia crítica buscaria revelar, por trás das experiências e expectativas de amor, ilusões, interesses, mercados, construções arbitrárias de identidades sociais, dominação, submissão, etc. Assim, se não for considerada uma questão menor, é comum tomá-la como uma ilusão que se desmascara quando os véus do sentimentalismo religioso ou da hipocrisia burguesa são removidos.

No entanto, nos últimos anos houve uma descoberta do amor nas ciências sociais de uma forma positiva e reconstrutiva. Alguns estudos o elevam a uma experiência com consistência própria e central para a compreensão da vida social e das sociedades contemporâneas. Isso mostra uma faceta mais complexa do amor, pois vai além de uma concepção centrada apenas no erotismo e envolve uma investigação teórica e empírica que resgata suas formas diferenciadas. Dois grandes teóricos sociais contribuíram para isso: Axel Honneth (1992), com sua teoria do reconhecimento, e Luc Boltanski (1990), com sua sociologia das capacidades críticas: com Honneth, o amor aparece como uma experiência associada ao processo de individuação por meio da reciprocidade e do reconhecimento filial; com Boltanski, o amor é tematizado em sua forma ágape como um regime de paz.

Nesse sentido, o livro de Gennaro Iorio, Sociologia do amor: ágape na vida social, publicado agora pelo Ateliê de Humanidades Editorial, com minha editoração e tradução e revisão técnica de Lucas Tavares Galindo Filho, completa o processo de retomada emergente do amor ao fornecer uma síntese teórica e empírica inédita. Seu foco está no amor-ágape como uma categoria sociológica e como uma experiência social. Depois de ser publicado em italiano em 2013 e em inglês em 2014, o livro agora recebe tradução para o português em versão ampliada e atualizada. O livro consiste em cinco capítulos e um epílogo. Na edição brasileira, foi adicionada uma entrevista inédita com Silvia Cataldi e Gennaro Iorio que tive a oportunidade de realizar em dezembro de 2019 na sede do Ateliê de Humanidades no Rio de Janeiro. Além disso, tem extensões consideráveis ​​em discussões teóricas e estudos de caso, apresentando inclusive a construção mais recente do World Love Index pelo grupo Social One.[3]

A sociologia do ágape articula desenvolvimentos teóricos com investigações empíricas. O programa sociológico desenvolve o ágape como categoria de interpretação e análise nas ciências sociais. Ele transpôs a redescoberta fragmentária do amor nas ciências sociais em um efetivo programa de pesquisa sobre o ágape, que aparece como um novo conceito no léxico sociológico que esclarece fenômenos sociais existentes, mas não conceitualizados. Para relembrar a metáfora do rio cársico, muitas experiências ocorrem no subsolo ou nos interstícios sociais com características típicas do amor, inclusive sua forma agápica, mas que não são contempladas ou compreendidas por categorias sociológicas, antropológicas ou filosóficas; sem um nome, eles não têm existência legítima e são vulneráveis ​​à desconstrução crítica por meio das estruturas analíticas vigentes.

Nos capítulos I e II do Sociologia do amor, Iorio se propõe a definir o conceito de ágape e contrastá-lo com a justiça, com outras formas de amor (eros e philia) e com alguns conceitos próximos: dom, solidariedade e (em seções incluídas na edição brasileira) patriarcalismo e autonomia. A diferenciação do ágape em relação aos outros conceitos não visa colocá-lo em uma hierarquia superior, mas sim circunscrever analiticamente um ideal-tipo.

Suas distinções entre eros, ágape e philia são corretas e bastante esclarecedoras, mas não estou absolutamente convencido de que eros possa ser identificado com o princípio da equivalência, nem que possa ser assimilado à economia de mercado. Em qualquer caso, esta é uma tese secundária de sua exposição. O importante é perceber que sua definição de ágape segue a de Luc Boltanski em alguns aspectos, mas estabelece distâncias determinantes. Boltanski fornece um conceito de agir agápico marcado por: a) a ausência de um princípio de equivalência e de cálculo; b) a temporalidade centrada no presente e desprovida de antecipação da ação; c) a dedicação ao singular sem universalização e totalização; e, por fim, d) o “descuido” (incuranza) da ação, uma vez que não leva em consideração as consequências, méritos e recompensas. Porém, para Iorio, ao construir um ideal-tipo do estado agápico, Boltanski acabou eliminando alguns elementos centrais do ágape: a) que pode estar presente na vida cotidiana, b) que há uma reflexividade dos atores no estado agápico; e c) que é possível ao ágape se perpetuar e criar uma instituição.

Concordo com essa crítica e considero feliz a definição proposta pelo autor: o ágape é uma ação, relação ou interação social fundada pela superabundância ou pela excedência: o amor excede o que o precede, o que é exigido pela situação, as condições da ação (contexto, regra, coerção material, etc.), as consequências futuras e o próprio ator, com a intenção de realizar um benefício (ou seja, uma utilidade no interesse de outrem), sem expectativa de retorno, responsabilidade ou justificativa. Assim, o ágape difere da ação utilitarista e calculista do mercado; mas também se distingue de ações guiadas por princípios distributivos (que apontam para a justiça), por objetivos comunitários (que apontam para a solidariedade), por subordinações paternas (que apontam para o paternalismo) e por regras de autonomia (que apontam para liberdade e dever negativos). Concordo em geral com essas distinções. A primeira, entre o amor e a justiça, é feita por Iorio seguindo de perto as propostas de Boltanski. Ela gera, na verdade, um debate literalmente milenar que não podemos tratar aqui.

Por sua vez, as diferenças do ágape em relação à solidariedade e ao dom mostram que o ágape é uma experiência capaz de superar qualquer norma ou regra social, mesmo tendo como fonte a energia moral de um único indivíduo. Além disso, elas fornecem uma lente para observar realidades em que algo é feito sem antecipar retorno, ou seja, sem buscar uma retribuição, reconhecimento ou status, em ações que são feitas com energia afetiva e amorosa não calculadoras e com baixa determinação cognitiva. Considero tal visão correta, que evita ler tudo desde o início, mais ou menos veladamente, a partir do princípio do ut des.

No entanto, creio que sua distinção entre ágape e dádiva deixa de lado que nem toda dádiva implica reciprocidade e que o ágape pode ser considerado uma modalidade possível entre outras de dádiva. Portanto, não é por acaso que o conceito de amância (aimance), proposto por Alain Caillé (ver 2008b), o líder do Mouvement anti-utilitariste en sciences sociales (MAUSS), é amplamente confundido com o de ágape, desde que a amância é a dádiva como gratia e beneficium. Esta minha reticência em relação à distinção entre dádiva e ágape é reiterada pelo belo posfácio de Paulo Henrique Martins, também ele investigador das relações entre o antiutilitarismo e o agir agápico, onde reconhece que

a complexa e sutil relação ontológica e teórica entre ágape e dádiva […] ainda não está suficientemente desenvolvida neste work in progress. é de se esperar, ainda, que a agenda de sociologia do ágape avance em pesquisas ulteriores em diálogo aprofundado com o debate complexo em torno do Ensaio sobre a dádiva e, mais recentemente, do paradigma do dom, debate que está ocorrendo desde os anos 1980 em decorrência dos trabalhos do Mouvement anti-utilitariste en sciences sociales (M. A. U. S. S.) (Iorio, 2021, p. 314).

De todo modo, está posta a agenda sobre o ágape, que transcende em muito este debate possível e necessário do agir agápico com o paradigma do dom. A princípio, parece que a definição de ágape dada por Iorio o coloca nas alturas da santidade supramundana, mas na verdade o autor e seus colaboradores constroem, em vez disso, uma categoria analítica que ilumina as práticas cotidianas ou institucionalizadas. Para isso, é muito importante como ele se apropria do referencial analítico oferecido por um sociólogo deveras esquecido e desprezado hoje, Pitirim Sorokin (1950). A partir das categorias oferecidas por Sorokin – intensidade, extensão, duração, adequação e pureza -, torna-se possível aguçar o olhar sobre os modos do agir agápico em uma matriz com possibilidades e gradações.

O programa de pesquisa de uma sociologia do amor-ágape mostra sua força total quando o autor passa a uma exposição clássica e contemporânea da sociologia do amor, pois aí ele se integra na agenda mais ampla sobre o lugar do amor nas ciências sociais: no capítulo III, ele reconstrói as fontes clássicas presentes em Georg Simmel, Max Weber e Pitirim Sorokin; e, no Capítulo IV, ele apresenta como o amor está presente nos níveis micro-, meso- e macro-sociais.

Se, já no capítulo II, o autor havia explicitado sua dívida para com Sorokin, é no capítulo III que percebemos até que ponto Iorio está construindo uma sociologia do amor em um duplo registro clássico, em Simmel e Weber. Partindo de Simmel, ele assume uma visão relacional do amor que será enriquecida pela filosofia fenomenológica de Jean-Luc Nancy; assim, ambos, Simmel e Nancy, revelam a relação co-constitutiva entre o amante e o amado. Por sua vez, Iorio extrai de Weber não apenas inspiração metodológica, mas também uma sociologia histórico-comparativa da modernidade. Nesse sentido, é louvável o esforço exegético, que reconstrói a partir de várias passagens e fragmentos da sociologia weberiana da religião uma autêntica sociologia histórica dos ideal-tipos de amor em sua relação com as relações comunitárias e com o mundo. Acredito que os estudos weberianos, cada vez mais exegéticos, poderão se beneficiar da interpretação de Iorio, bem como apontar possíveis erros e vieses. Estou certo de que Carlos Eduardo Sell (que escreve a orelha do livro) e sua equipe de pesquisadores vão envidar tais esforços, em um espírito crítico, construtivo e dialógico próprio da boa vida universitária, do qual tanto carecemos para o acúmulo do conhecimento científico em humanidades.

No capítulo IV, o autor nos apresenta duas importantes frentes de pesquisa. A primeira é micro-social onde, a partir de Donald H. Winnicott, Georg H. Mead e principalmente Axel Honneth e Jean-Luc Nancy, Iorio reconstrói a presença do amor no processo de individuação por meio da intersubjetividade. Aqui, a sociologia do amor encontra a teoria do reconhecimento, onde a economia afetiva das relações amorosas é revelada pela estrutura do reconhecimento primevo. É importante destacar que Iorio entrevistou Axel Honneth sobre a relação entre amor e reconhecimento (Iorio G. e Campello F., 2013). Em sua interpretação de Honneth, não estamos muito convencidos de que se trate de amor-ágape e não amor-philia. No entanto, resta-nos a expectativa de que essa agenda seja aprofundada para melhor compreender, desde uma perspectiva psicossocial e (pós)psicanalítica, as complexidades das relações amorosas na constituição de si. O que vale a pena destacar são duas coisas: primeiro, que essa agenda articula as relações de amor na formação da vida intersubjetiva com a comunidade política mais ampla; e, em segundo lugar, que nos aproxima da sociologia do corpo e das emoções. Vamos falar sobre este último ponto rapidamente.

O agir amoroso de uma pessoa possui um poder de ação, de movimento e de transformação. Qual é o estado afetivo de quem vive em estado agápico, que pode ser sem reciprocidade, mas que se reforça na ação recíproca? Honneth mostrou na Luta por Reconhecimento que a autoconfiança gera o “relaxamento” dos indivíduos, tornando-os capazes de se autodeterminar e de se conectar com os outros. Ao mesmo tempo, o desbloqueio morfogenético de estruturas é gerado e regenerado pela ação, bem como outras ações criativas, como o uso da liberação da capacidade de imaginação, poesia, jogos, etc. Todas essas vivências têm um conteúdo afetivo distante do “amor-paixão” característico de nossa cultura narcísica, que é cheia de expectativas de reconhecimento, de angústias e perdas, de desejos e carências, de medos e ansiedades, como mostra a saudosa socióloga italiana Elena Pulcini (2013 / 2009), falecida recentemente em decorrência da Covid-19. Nesse sentido, a profícua pesquisa do sociólogo argentino Adrián Scribano sobre a sociologia dos corpos, emoções e afetos, em especial seu desdobramento no livro Amor como ação coletiva, tem uma forte comunicação com o amor-ágape (Scribano, 2020). Assim, a partir de um corpus bem consolidado de investigações sobre as emoções (ver Scribano, 2010, 2017), Scribano realiza uma etnografia que investiga o amor como uma energia/poder que gera ações coletivas, que se inscrevem em matrizes de conflito específicas e envolvem emoções e política de sensibilidades. Ao focar no “amor filial”, ele mostra como o amor é uma prática intersticial e interseccional associada ao conflito e capaz de desafiar regimes estabelecidos de verdade e poder. Assim, o estudo do amor como energia social está inserido em uma sociologia dos corpos, emoções e sentimentos morais, que possui muitos diálogos possíveis com a sociologia do amor-ágape.

A segunda perspectiva do capítulo IV é macrossocial, onde Iorio faz uma espécie de esboço da história do amor no Ocidente, a partir de uma interessante apropriação da história da graça de Arpad Szakolczai (2007). Acredito que haja aqui uma agenda muito fecunda de história comparada das formas de amar em suas inter-articulações com a história do sujeito, da moral, da religião e da política. É um belo capítulo, mas talvez Iorio tenha se concentrado demais na história do Ocidente a partir do viés da singularidade do cristianismo. No entanto, como tem mostrado em outras passagens do livro, como a introdução e o epílogo, e como o próprio caráter internacional do Social One mostra nas práticas desta rede, existe na sociologia do amor-agápico uma forte abertura pós-colonial e “pluriversalista” às mais diversas formas civilizacionais, em busca de uma unidade do amor e dos afetos humanos através da diversidade de experiências, seculares ou religiosas, monoteístas ou politeístas. Nesse sentido, vejo uma forte interlocução desta sociologia do amor não apenas como a teoria da dádiva (ver Itinerários do dom, publicado na nossa série Metamorfoses), mas também com a Teoria Crítica da Colonialidade de Paulo Henrique Martins (ver Teoria Crítica da Colonialidade, publicado em nossa série Cartografias da Crítica).

Finalmente, no Capítulo V, Iorio contribui com um número diversificado e significativo de estudos de caso sobre o ágape na vida social. São estudos sobre “heróis culturais” (Giorgio Perlasca e Jordan Divjak), bens suspensos (beni Sospesi) e experiências de peer-to-peer. Em outros textos do autor e dos líderes do Social One, também são estudados casos diferentes, como inovações na vida comunitária, bem-estar, economia, educação, etc. Os exemplos fornecidos pelo livro me encantam e são uma importante contribuição da sociologia que revela a presença do amor nas mais diversas esferas do social. Às vezes parece difícil encontrar evidências empíricas da ausência de retribuição ou que mostrem que não se trata de outro regime (como a solidariedade, a dádiva, etc.), entre outras coisas porque isso dependeria de uma sondagem da intencionalidade em foro íntimo dos agentes que é por princípio impossível. De qualquer forma, o autor busca várias maneiras de tornar plausível a existência de uma excedência nas ações analisadas, e sua pesquisa tem força empírica dado que se baseia em um sistema de provas que congrega o arsenal metodológico das ciências sociais.

Essa probabilidade do agir-agápico, mesmo quando é difícil de ter um marcador empírico completo, é um compromisso com o amor, que tem relevância não apenas teórica e empírica, mas também metodológica e normativa.

Por um lado, sua importância metodológica é demonstrada quando vemos na última seção do capítulo V o esforço do Social One em desenvolver um Índice do Amor Mundial (World Love Index) que amplie nossas ferramentas para perceber o social e avaliar o “desenvolvimento”.

Por outro lado, sua importância normativa se mostra como uma resposta necessária a um processo de dupla crise, crise de crítica e crise da sociedade. No contexto de uma sociedade utilitarista e consumista complexa e plural, torna-se cada vez mais necessário o retorno a agendas com força descritiva e normativa renovada. Isso é ainda mais necessário quando vemos que há também uma crise da crítica, que se tornou uma hipercrítica que perde seus próprios referenciais normativos. Nos últimos anos, ficou claro até que ponto os exageros críticos têm afinidades eletivas com a fragmentação neoliberal do mundo. Nesse sentido, a sociologia do amor surge como uma forma de mudar nosso olhar sobre a sociedade para trazer à tona suas normatividades emancipatórias já existentes. Deste modo, ela se articula a uma sociologia das moralidades inscritas corporal e emocionalmente nas pessoas e nos interstícios da sociedade, revelando uma normatividade imanente, invisível e reprimida tanto pelos regimes de poder e colonialidade, como pelas correntes hipercríticas de pensamento, muito preocupadas que estão em denunciar e desconstruir.

Por isso, a sociologia do amor-ágape proposta por Iorio e pelo grupo Social-One é muito bem-vinda, oportuna e fecunda. Ela deve não apenas mergulhar no caminho que está construindo, como também estabelecer pontes com outras abordagens reconstrutivas da vida em comum, como a sociologia das emoções e dos afetos, o paradigma da dádiva, o pensamento da política, a ética do cuidado, a ecologia política e, por último mas não menos importante, o convivialismo (ver Internacional Convivialista, 2020). Esta é também a mensagem deixada por Paulo Henrique Martins nas frases finais de seu posfácio em defesa de uma sociologia do amor que seja crítica, relacional e emancipatória:

No meu entender, os avanços de uma sociologia crítica relacional devem considerar a importância ritualística das trocas com as intenções e as práticas humanas as mais justas e amorosas possíveis. Considero que essa é a intenção central de Gennaro Iorio ao escrever este livro, o que é de importância central para a construção de uma sociologia do amor que seja uma teoria crítica. O que precisamos agora é aprofundar ainda mais no esclarecimento de tais pretensões, a fim de avançar no debate teórico e na práxis emancipatória
(Iorio, 2021, p.320).

Notas

[1] Esta resenha dialoga fortemente com o ensaio: Magnelli, A. (2021) Más allá de la crítica: ¿por qué importa el amor? Miríada: Investigación en Ciencias Sociales. Além de algumas pequenas retomadas, esta resenha consiste em um avanço em relação às reflexões sobre o ágape presentes no outro texto. Para uma análise aprofundada do tema do amor na sociologia contemporânea e sua importância para a teoria crítica, na encruzilhada do reconhecimento, doação e do ágape, consulte o referido ensaio. Publiquei anteriormente também uma versão sintética destas minhas reflexões na revista argentina RELACES: MAGNELLI, André (2021b) El fluir de un insoslayable amor en las ciencias sociales. Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad (RELACES), ISSN-e 1852-8759, Año 13, Nº. 35, págs. 100-104. 

[2] Para esta metáfora, que inspira a própria arte de capa do livro, ver minha entrevista com Gennaro Iorio e Silvia Cataldi em: IORIO, 2021, p. 261.

[3] O Social-One – Scienze sociali in dialogo é um grupo internacional de sociólogos e cientistas, inspirados no ato fundador de Chiara Lubich (1920-2008), iniciadora do movimento católico dos Focolares. A sociologia do ágape é o programa de pesquisa mais avançado e promissor do Social One, que não está na dependência de confissão religiosa, como se mostra na forma como ele se construiu a partir de interlocução direta com autores como Luc Boltanski, Axel Honneth, Alain Caillé, Richard Sennett, Michael Burawoy, Paulo Henrique Martins etc. Desde 2008, vem adquirindo características mais claras de um programa de pesquisa em ciências sociais capaz de reunir pesquisadores religiosos, leigos e ateus das mais diversas disciplinas, com a publicação do artigo de Gennaro Iorio e Michele Colasanto (2008), que propôs as bases de uma investigação sobre homo agapicus. A rede de pesquisadores Social One reúne agora várias nacionalidades de todos os continentes, com atenção especial para os italianos como Silvia Cataldi, Gennaro Iorio, etc. e latino-americanos como Vera Araújo, Paulo Henrique Martins, Adrián Scribano, William Calvo-Quirós, etc.

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