Qual o sentido da Páscoa? Como escavar sua significação histórica e teológica presente nas múltiplas camadas da tradição judaica e cristã?
Neste dia de Páscoa do ano de 2023, o Fios do Tempo traz dois artigos sobre o tema.
Em “Uma festa lúgubre, de morte e de vida“, Thiago Pacheco retoma a origem da instituição judaica da Páscoa no Pentateuco (em especial no Êxodo), para, em seguida, mostrar quais seus paralelos existentes com a narrativa cristã. Sendo nas duas tradições uma “festa lúgubre” de morte e vida, de escravidão e fartura, haveria algo a ser celebrado na Páscoa? Quais ensinamentos são proporcionados por sua narrativa?
Por sua vez, em “A Ceia Pascal: uma leitura teológica“, Nelson Lellis se propõe a tratar da teologia pascal através do que as comunidades cristãs pensaram a respeito dela, em especial a comunidade de Marcos. Detendo-se em passagens do Evangelho de Marcos, ele analisa como o ritual da ceia instituiu-se como um local de memória, libertação e serviço. Trata-se uma vez mais de um convite à meditação: quais os sentidos possíveis que o ritual teve para essas comunidades?
Desejo, como sempre, uma excelente leitura.
A.M.
Fios do Tempo, 09 de abril de 2023
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A Ceia Pascal:
uma leitura teológica
Tudo o que falarmos de Jesus, estaremos falando sobre aquilo que registraram e o que fala(ra)m a partir de tradição criada. Dificilmente será algo sobre ele. Mas esvaziar Jesus de toda a teologia é ficar bisbilhotando na arqueologia para tentar se aprofundar na história de vida de pessoas que viveram na Palestina do século 1. Falar de Jesus é, portanto, falar sobre a teologia que as comunidades pensaram sobre ele. Jesus é Jesuses teológicos. E, como judeu, certamente celebrou a páscoa.
Na perspectiva do evangelho de Marcos (14,12-17), o local para a última páscoa traz elementos muito curiosos. Um deles é um homem carregando uma bilha d’água.
Os discípulos perguntam onde seria o local da ceia. Jesus encaminha dois discípulos até a cidade para encontrar um homem carregando uma bilha d’água. Ambos seguiriam aquele homem até que ele entrasse numa casa. Daí perguntariam ao dono da casa onde estaria a sala para que pudessem preparar a ceia.
Curioso porque, na tradição, são as mulheres que comumente transportam água, que frequentam o poço e que dão água para os animais. Gênesis 24,11 fala de uma hora específica para que as mulheres saiam para pegar água; em Êxodo 2,16, um exemplo das sete filhas de um sacerdote que levam os animais para dessedentar; no evangelho de João 4, o clássico encontro entre Jesus e a mulher samaritana no poço de Jacó, em que Jesus pede à mulher que lhe sirva água.
Todas essas narrativas são criações teológicas que apontam para alguma resposta ou ação milagrosa vindoura. Mas no texto da última ceia de Jesus no evangelho de Marcos, o evento acontece com um homem carregando uma bilha d’água. Não é uma mulher, é um homem. Muitos afirmam que a troca do gênero na narrativa ocorreu para facilitar o encontro dos discípulos, uma vez que poderiam encontrar várias mulheres na cidade com a mesma atividade e, consequentemente, teriam dificuldades.
Não posso duvidar que na cidade, alguns casos os homens (servos, escravos) pudessem fazer o mesmo – até porque, para onde ele vai, não é casa dele… se não é casa dele, dificilmente este homem é filho, ou irmão, ou que tivesse qualquer parentesco com o dono da casa. Possivelmente, um escravo. Mas, não sejamos precipitados.
Essa escolha por um personagem masculino pode ser explicada pelo direcionamento inspirado em 1Samuel 10,2-5, cuja estrutura remonta o episódio do encontro “milagroso” com aquele que seria o primeiro rei de Israel. Antes do encontro com Saul, alguns homens surgem pela estrada e são usados pelo narrador para indicação do caminho. Independentemente da montagem literária, o foco aqui recai na presença do homem com a bilha d’água que deveria ser seguido. Para além das pistas elencadas acima, precisamos entender que a páscoa narrada nos evangelhos já carrega elementos de identidade cristã. Portanto, se quisermos entender a páscoa dos judeus, os evangelhos não serão o lugar ideal, ainda que Jesus fosse judeu e o cristianismo, até a década de 70 do primeiro século, fosse uma seita (partido) do judaísmo, tal como os fariseus e os saduceus.
E por que digo isso?
A começar pela data. A cronologia nos interessa aqui. O texto diz no verso 12:
- “No primeiro dia dos pães ázimos…”
- “…quando se imolava a páscoa”.
Dois dias antes, os chefes dos sacerdotes e os escribas decidem prender Jesus (Mc 12,1-12). Festa dos pães ázimos e a festa da páscoa eram praticamente uma só. A ceia do cordeiro ocorria no dia 14 de nisan e simbolizava a libertação do povo do Egito. A festa dos pães ázimos começava no dia seguinte em memória da saída do Egito. Em Mc 14,12 a cronologia não bate porque já no primeiro dia dos pães ázimos, estavam imolando o cordeiro. De duas, uma: ou a festa dos pães ázimos começou no dia 14 ou a ceia do cordeiro ocorreu no dia 15.
Minha hipótese: a comunidade cristã, que já tinha toda a narrativa da morte e da ressurreição de Jesus, prefere fazer do ritual da ceia um local de “memória e libertação” concomitantemente. A memória seria a grande motivadora para uma comunidade da libertação.
Outra questão: a ceia acontece em Jerusalém. Devemos recordar que, quando o evangelho de Marcos foi escrito, possivelmente era o ano da destruição do Templo (70); e o local da ceia foi o segundo andar de uma casa, exatamente o espaço que acolhiam peregrinos. Ou seja, sem relação com o Templo, a ceia dos cristãos remonta também um espaço que não lhes pertence e que os identifica como caminhantes, peregrinos.
E o homem carregando a bilha d’água?
Bem, ele é um detalhe que aproximaria do complexo tema das funções e da lugaridade na comunidade marcana [de Marcos]. Assim como o homem assumiu um lugar não comum a ele, temos algumas perícopes em que são interessantes:
a) Em Mc 1,29-30, temos a sogra de Pedro morando em sua casa. Isso não é comum. Por mais que ela fosse uma viúva, o contrato de casamento não prevê nenhuma relação desse tipo com a sogra. Se não fosse viúva, quem deveria prover medicamentos era seu marido (sim!, porque além de sustentá-la, também era obrigação cuidar de sua saúde).
b) Por outro lado, a mãe de Jesus está fora da casa em Mc 3,31. A casa é um elemento que denota, no evangelho de Marcos, o local da fraternidade, da cura, dos milagres; naquele momento, a mãe e os irmãos de Jesus demonstram dúvidas sobre seu ministério, por isso o narrador as coloca do lado de fora. Estar dentro da casa é estar plena conexão com o chamado de Jesus. Neste caso, os que estão dentro são a família de Jesus, aqueles que obedecem às palavras. Portanto, o conceito de família para Jesus – no evangelho de Marcos – não pode ser entendido consanguineamente, mas sim pela crença em seus ensinamentos e pela amplitude da comunhão.
c) Já em Mc 5,25s, uma mulher “impura” segue no meio da multidão e toca Jesus, um homem. A Lei dizia que uma mulher com fluxo de sangue tornava impuro objetos, pessoas e tudo o mais que tocasse. E que deveria, antes de retornar à sociabilidade, purificar-se. Marcos extrapola a Lei e põe as mãos dessa mulher, que sofria há 12 anos com hemorragia e que nenhum médico ou dinheiro foi capaz de curá-la, nas vestes de Jesus. Sai da multidão, identifica-se e é elogiada por sua fé. Fé acima dos rigores da Lei.
d) Temos uma viúva pobre que serve de testemunho e exemplo em Mc 12,41s. Quando uma mulher perdia um marido e este não deixara um filho, a Lei do Levirato dizia que era responsabilidade do irmão assumi-la e ter com ela o filho. Mas ela jamais poderia perguntar ou propor ou lembrar da lei. O irmão do marido falecido aceitava ou negava. Diante da realidade econômica do primeiro século, era comum negar. Possivelmente, o que aconteceu. Uma mulher vazia e solitária, desprezada e excluída, oferta duas moedas e é vista e reconhecida por Jesus (ou seja, pela igreja marcana).
e) Em Betânia, uma mulher que se aproxima de Jesus, um homem, e derrama nardo puro em sua cabeça (Mc 14,3s).
f) Na morte de Jesus, mulheres se fazem presente (Mc 15,40-41).
g) As primeiras pessoas a visitarem e terem a informação da “ressurreição de Jesus” foram mulheres (Mc 16,1-8).
Para além de tudo o que se pode construir exegeticamente (o que não estou fazendo aqui), a comunidade marcana complexifica funções e lugaridade. Portanto, ainda que haja hipóteses sobre o homem que carrega a bilha d’água, temos, pelas narrativas marcanas, possibilidades de entender o movimento mais acolhedor em relação às mulheres. Diga-se de passagem, não se pode romantizar essa relação. Deve-se resguardar de conceitos feministas e identitários. Ainda que houvesse distância entre os gêneros, certamente a tentativa foi diminuir os espaços.
Quem sabe a tarefa das comunidades cristãs não seja investir seu tempo para esse tipo de reflexão?
- A ceia pascal é um “ambiente” onde se preza pela renovação de pactos sobre a libertação de oprimidos por causa da memória construída pela tradição, portanto, sua principal função não é prender-se ao passado, mas fazer da memória teológica construída sobre a morte de Jesus um motor motivador para o serviço;
- A ceia pascal é um “ambiente” que deve avivar as mentes sobre a identidade cristã: são peregrinos, donos de nada, mas acolhedores no caminho da existência, isto é, uma comunidade terapêutica para os outsiders e sensível às metamorfoses da vida;
- A ceia pascal é um “ambiente” em que não se deve engessar as funções nem a lugaridade dos membros da comunidade, por isso não se deve impedir títulos ou espaços a ninguém quando se tem competência para a finalidade do cargo.
A comunidade cristã dos primeiros séculos não vivia numa democracia. Seu dever é ir além da comunidade marcana que ainda testemunhava a negação das mulheres à educação, inclusive religiosa. Há relatos de que doutores da lei diziam que: “Aquele que ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão [ela fará mau uso do que aprendeu]”; “Mais vale queimar a Torá do que transmiti-la às mulheres”; ou que o testemunho de um escravo valia mais do que o testemunho das mulheres, pois eram vistas como “mentirosas”.
Certamente a mulher ainda era menor que o homem na comunidade marcana. Caberá à igreja de hoje tomar o exemplo dos evangelhos e transcender sua própria cultura deixando na carne morta do Cristo crucificado na sexta, que, teologicamente, levou todas as desgraças humanas sobre si, para reviver no domingo, numa comunidade onde todos os desgraçados da sociedade agora podem fazer parte. Como sei das lamentáveis limitações cristãs, termino com a frase final da música Gente Humilde: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente… É gente humilde, que vontade de chorar”.
Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).
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