Qual o sentido da Páscoa? Como escavar sua significação histórica e teológica presente nas múltiplas camadas da tradição judaica e cristã?
Neste dia de Páscoa do ano de 2023, o Fios do Tempo traz dois artigos sobre o tema.
Em “Uma festa lúgubre, de morte e de vida“, Thiago Pacheco retoma a origem da instituição judaica da Páscoa no Pentateuco (em especial no Êxodo), para, em seguida, mostrar quais seus paralelos existentes com a narrativa cristã. Sendo nas duas tradições uma “festa lúgubre” de morte e vida, de escravidão e fartura, haveria algo a ser celebrado na Páscoa? Quais ensinamentos são proporcionados por sua narrativa?
Por sua vez, em “A Ceia Pascal: uma leitura teológica“, Nelson Lellis se propõe a tratar da teologia pascal através do que as comunidades cristãs pensaram a respeito dela, em especial a comunidade de Marcos. Detendo-se em passagens do Evangelho de Marcos, ele analisa como o ritual da ceia instituiu-se como um local de memória, libertação e serviço. Trata-se uma vez mais de um convite à meditação: quais os sentidos possíveis que o ritual teve para essas comunidades?
Desejo, como sempre, uma excelente leitura.
A.M.
Fios do Tempo, 09 de abril de 2023
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Uma festa lúgubre,
de morte e de vida
A origem histórica da Páscoa, indo além da tradição religiosa e da pueril apologética, pode ser desconcertante para alguém que, como eu, nutre a fé cristã.
Em Ex. 12, temos a descrição da festa, que foi ensinada a Moisés por Deus antes da libertação da temível 10a Praga. A descrição do ritual envolve o sacrifício de um cordeiro macho, cujo sangue deveria ser molhado em hissopo e passado nas portas de cada moradia. Assim, a indescritível praga (alcunhada de “destruidor” no verso 23) não entraria na casa do piedoso hebreu que assim procedesse. Tal calamidade, como se sabe, era um terror que correria pela noite, matando todos os primogênitos da terra.
Portanto, o sangue do membro da família que seria morto era substituído pelo sangue do cordeiro sacrificado. Os egípcios, evidentemente, não recorreram ao ritual. Assim, nos conta o mesmo capítulo do Êxodo, no verso 30, que eles gritaram em desespero vendo os cadáveres de seus primogênitos.
Se formos além dos filtros dogmáticos, impostos pelas perspectivas teológicas ortodoxas, e observamos a narrativa a partir do contexto cultural e das ferramentas sociológicas e antropológicas para o estudo das religiões, vemos aqui que este é um rito claramente apotropaico, isto é, uma prática religiosa com o poder de afastar desgraças, maldições ou espíritos malignos. Neste caso, o sangue de um cordeiro que, lançado sobre as portas, impede a entrada de uma calamidade que corre nas madrugadas, matando os primogênitos entre homens e animais.
Tomando a narrativa de Ex. 12 isoladamente, principalmente se nos prendermos ao calendário litúrgico judaico ou cristão, aquele seria um episódio isolado visando a vingança sobre o Egito e consequente libertação dos hebreus. Sendo episódico, tal ritual era repetido anualmente apenas com fins memoriais. Contudo, antes de figurar no livro do Êxodo, temos indícios de que o “destruidor” da 10a Praga era um dos muitos horrores que assombravam os israelitas e demais povos pelas madrugadas de Canaã, não sendo evento exclusivo de uma distante noite no Egito. À guisa de exemplo, em Gn. 32, Jacó enfrenta uma luta terrível contra uma criatura semelhante a um homem, que, enviada por Deus, guardava a passagem do Vau de Jaboque. Mas só o fazia de noite, não podendo lá permanecer após a alva (Gn. 32:26). De fato, o temor acerca destes espectros noturnos era tamanho que havia um cântico de invocação ao Senhor, capaz de proteger o piedoso israelita “do terror da noite e da peste que anda na escuridão” (Sl. 91: 5,6).
Ademais, Tzemah Yoreth, descamando os trechos mais antigos relativos às pragas do Êxodo a partir de relatos duplicados, das estruturas narrativas e do uso de termos mais ou menos recentes do hebraico, demonstrou que a ideia de 10 pragas sobre o Egito foi paulatinamente construída no processo de redação e editoração do Êxodo, sendo as pragas mais antigas apenas 3: granizo, gafanhotos, escuridão.[1] As demais 7 pragas foram incluídas posteriormente, por outros narradores, o que inclui a Praga dos Primogênitos. Ou seja, o medo de criaturas da noite sempre existiu. A ideia de ser uma das pragas é que foi posterior.
Notemos então que seres sinistros vagando nas madrugadas não apenas eram comuns na mentalidade antiga, como assombravam os hebreus, os quais recorriam a ritos e cânticos de proteção para si e seus familiares. O tal “terror da décima praga” era mais um, possivelmente o mais temível, destes seres, que demandava um ritual realizado na primeira Lua Nova da primavera, quando as criaturas da noite seriam mais vigorosas (por isso mesmo, mais perigosas!). Originalmente, o ritual não tinha relação com a Páscoa – que era um festival primaveril – nem com o Êxodo. Porém, as ocasiões destes festejos e ritos coincidiam na mesma época do ano, e como os sacrifícios humanos visando vitórias na guerra eram comuns no mundo Antigo (vide os relatos do rei Mesa em 2 Rs. 3:27 e de Jefté em Jz. 11), o narrador de Ex. 12 ofereceu um relato etiológico que explicava a origem comum para a festa primaveril, para o ritual de proteção e para o festejo de libertação do domínio estrangeiro.
Morte e libertação, escravidão e fartura, eis a origem histórica da celebração pascoal. Festa celebrada pelos judeus até hoje. Por isso mesmo, festa celebrada por Jesus e seus discípulos.
Celebrada, inclusive, antes da morte do Homem de Nazaré, que nasceu, viveu e morreu sob domínio romano. Foi sua última refeição, num ambiente de fome e de escassez entre os camponeses. Escravidão e Fartura. Sua despedida antes de ser brutalmente espancado e morto. Também, a última refeição antes dele ressuscitar, segundo os evangelistas e nossa fé (se você for cristão). Morte e Libertação.
Note como são lúgubres, a instituição da Páscoa no Pentateuco e a narrativa da Última Ceia, nos Evangelhos (aqui, cito Lucas, capítulo 22).
É madrugada, nos dois casos. Uma ceia tensa sob a luz de lamparinas.
É angustiante, nos dois casos. Os hebreus esperam pelo horror sem nome que passará pelo Egito. Jesus sabe que aquela é sua última refeição antes de ser barbaramente torturado e morto, enquanto os discípulos discutem quem é o traidor e entoam bravatas junto à mesa.
Há inocentes mortos, nos dois casos. Crianças, jovens e homens egípcios que nada tinham a ver com o coração duro de Faraó, a recusarem-se a libertar os hebreus. Jesus, que foi preso e traído pelos seus amigos. Cordeiros mortos, por maldade de homens vivos.
E há um clamor, nos dois casos. As mães egípcias choram seus filhos. As discípulas de Jesus, e sua mãe, choram a morte de Jesus.
De modo que, comemoramos o que nesta data? A Morte de inocentes pela crueldade de tiranos, e os pecados de discípulos santarrões?
Talvez não seja uma data a festejar com alegria. Talvez, seja uma data para meditar, orar, rezar, refletir acerca do quanto podemos, e somos, maus e mesquinhos enquanto seres humanos. De olhar para os céus e dizer: “Perdoai-nos, Pai. Não sabemos o que fazemos”.
Não seria a hora de uma Páscoa que finalmente nos ensine acerca de escravidão e morte, ambos, produtos de maldade humana? E que somente o amor pode tornar escravidão em liberdade, a morte em vida?
Feliz Páscoa a todos.
Nota
[1] YOREH, Tzemah (2016) The Three Redactional and Theological Layers of the Plagues. TheTorah.com.

THIAGO PACHECO é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em História pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro (2006) com especialização em Ciências da Religião pela Faculdade do Mosteiro de São Bento. Atua desde 2006 em instituições religiosas de ensino, e desde 2011 leciona para cursos de graduação e pós-graduação nos campos da História do Antigo Israel, Antigo Testamento e Ciências da Religião. Desde o mestrado tem se dedicado aos estudos sobre agentes de Segurança e Inteligência. Em 2014 integrou, como bolsista FAPERJ, o grupo de pesquisa Justiça Autoritária, ligado ao Laboratório de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ (LADIH). No estágio pós-doutoral, integrou seus estudos aos campos da História do Direito e da Criminologia.
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