Fios do Tempo. Popu[lu]lismo é uma saída nacional? – por Nelson Lellis

É sempre bem interessante, às vezes surpreendente, ver como os livros que você edita (ou escreve) são recebidos pelo leitor. Sobretudo quando ele pensa bem. É o caso deste texto, mais uma contribuição do sagaz Lellis, que faz uma apropriação de O século do Populismo de Pierre Rosanvallon (publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial, 2021) para pensar alguns aspectos do populismo de Bolsonaro e propor uma nova categoria, a de “popululismo”.

Será o “popululismo” a nossa saída nacional para o limbo em que estamos? Lellis propõe uma análise sem as facilidades da falsa simetria ou da autocomplacência.

Desejo, como sempre, uma ótima leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 23 de outubro de 2021



Popu[lu]lismo é uma saída nacional?

Porciúncula, 21 de outubro de 2021

O ano de 2021 foi berço de muitas obras publicadas sobre o período pelo qual o Brasil tem passado. E isso, não pela ausência de destreza política do atual governo em relação à pandemia causada pela Covid-19, mas pela dissonância lógica revelada no transcurso desses dias em que a economia suspira por aparelhos. Além disso, o esforço de editoras independentes em disponibilizar material de qualidade a fim de que esteja à disposição um arsenal teórico-metodológico para o auxílio hermenêutico de todo esse campo sócio-político. O Ateliê de Humanidades Editorial é um exemplo. A publicação do livro “O século do populismo: história, teoria, crítica”, de Pierre Rosanvallon, deve ser considerada como leitura urgente. Ele discute não apenas a história sistematizada acerca do tema, mas o coloca em perspectiva crítica.

O segundo parágrafo do prefácio, de sua própria autoria, Rosanvallon chama atenção para os líderes carismáticos. Transcrevo:

As vitórias do populismo são também o sinal do esgotamento dos projetos progressistas. Globalmente, eles são, antes de tudo, a expressão do fim de um longo ciclo ideológico e político. Tudo isso, combinado com o talento dos líderes carismáticos que se apresentam como personalidades novas, explica os sucessos eleitorais. Mas os populistas podem também perder em seguida as eleições, pois suas promessas de renovação não são cumpridas.
(Pierre Rosanvallon, 2021, p. 35)

Facilmente, como justaposição, poderíamos enxergar o atual presidente do Brasil nessa citação. Ao menos foi, a priori, a sensação que tive ao ler essas palavras. Vejamos.

 Guerra de um Messias pela “libertação nacional”

O populismo de J. Messias Bolsonaro carrega a bandeira de renovação, que em seu projeto de governo é conhecido como “libertação”. Libertação de quê? Do legado do PT, de sua ineficiência e da corrupção. O movimento político de Messias Bolsonaro traz como bandeira a luta contra a corrupção, o acento na segurança pública e o uso constante do conceito de verdade a partir de sua relação teológica (a citação de João 8,32) durante sua campanha e postagens em suas redes sociais. Ele especifica seus adversários dentro de cada campo: a corrupção é causada por atores e partidos de esquerda; o problema da segurança pública passa pela necessidade de armamento da população, pela valorização de uma forma de política truculenta e violenta ( que deslegitima a própria instituição policial) e pelo atropelamento dos Direitos Humanos, que contemplaria não aos verdadeiros “heróis”  mas sim criminosos defendidos por “esquerdistas”; e a defesa de pautas morais e de comportamento, privilegiadas por lideranças e parlamentares religiosos. 

Pesquisa realizada em novembro de 2015 pelo Instituto Datafolha divulgou que a corrupção era a principal preocupação dos brasileiros. Em janeiro de 2018, a Confederação Nacional da Indústria encomendou pesquisa a Retratos da Sociedade Brasileira sobre a preocupação dos brasileiros e o resultado foi o seguinte: desemprego (56%), corrupção (55%), saúde (47%) e violência (38%). Em 2019, o Instituto Ipsos – que descreve a composição do cenário do ano das eleições – constatou que os maiores problemas enfrentados por brasileiros eram: violência (47%), saúde (46%), desemprego (39%) e corrupção (38%). Em maio deste mesmo ano, 59% afirmaram que a maior preocupação era a corrupção. Constata-se, portanto, que a segurança e o combate à corrupção são os temas que aparecem como destaque nessas pesquisas. 

Esse trajeto casou perfeitamente com os discursos de Messias Bolsonaro. E isso pode já ser considerado como eco da 55ª Legislatura, quando ainda era deputado federal. 

Analisei todas as suas 142 participações no plenário da Câmara dos Deputados durante seu último mandato como deputado. No primeiro ano de seu sétimo mandato no parlamento, foram 72 discursos. Destes, subiu ao plenário por 37 vezes para criticar a então presidente Dilma, ao ex-presidente Lula, ao PT, MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Foro de São Paulo, comunismo, ditadura comunista, a relação com Venezuela, Cuba e seus principais atores políticos. No segundo ano, a crítica a atores, partidos e movimentos de esquerda aparecem em destaque em suas participações no plenário da Câmara. Desta vez, foram 32 (de 48). No terceiro ano, seu posicionamento quanto à esquerda (e aqui entra seu posicionamento contrário ao da esquerda quanto à propriedade privada) mantém-se em mais da metade de suas participações no plenário (13 de 21). No ano de 2018, Messias Bolsonaro se pronunciou apenas uma vez no plenário. Neste único discurso, dois assuntos. O primeiro: sua preocupação com o julgamento pelo STF acerca do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, e que também deveria ser a preocupação de “90% dos brasileiros”. O segundo assunto, em conexão com o anterior, expressa sua preocupação com as eleições: “[…] longe da teoria da conspiração e respondendo um pouco a quem está à minha esquerda, eu respeito a democracia. […] E, sem o voto impresso […], ele [Lula] tem tudo na base da fraude para ganhar as eleições. É isso que nós não queremos”.

Analisei também todos os seus PL’s (Projetos de Lei), que foram 31. Apenas um PL (4639/16) foi transformado na Lei Ordinária 13269/2016, na área da Saúde. Trata-se da autorização do uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Nem um outro PL foi aprovado.

Desta forma, percebemos que Bolsonaro foi eleito a partir de um discurso e de um ethos construídos desde os tempos de deputado em torno de dois temas populares, a violência e a corrupção. Na esteira do antipetismo e da Lava Jato, ele aparece com um discurso de libertação que se faz pela postulação tipicamente populista, tal como mostrada por Rosanvallon: para Bolsonaro e seus séquito, “o povo é uno” e o Messias é um “homem-povo”, a encarnação da vontade popular. Uma vez “liberto” das mediações institucionais, dos freios dos outros poderes e da imprensa livre, o líder do executivo promete “libertar” o povo das oligarquias corruptas a partir de uma “democratura”.

Mas as promessas de Messias Bolsonaro não são cumpridas. Este é um segundo ponto que gostaria de ressaltar. E por que não? Porque dentro de seu Programa de Governo, bem como de seus discursos, não há nada substantivo. Aparentemente, tal sentença surgiria como um juízo de valor. Mas não. O cenário desenhado é-nos apresentado de forma simples: como resolver o problema da segurança? Dando autoridade à força policial de matar e armando a população. Ponto. Ok, mas e a estrutura? Como modifica essa base pensando a médio-longo prazo? A solução é o sangue? Como conjugar com outras demandas e ministérios, assim como a educação, esporte, lazer?

O que se mostra, então, é que a tarefa de Messias Bolsonaro não é articular uma renovação política em sua base. Na verdade, ele é um político que não possui um estatuto partidário para seguir, então seguirá o quê? A si mesmo? Ora, essa expressão populista, que não se enquadra em partidos a não ser que seja construído por si (como a tentativa do Aliança Pelo Brasil) é o que podemos indicar como a terceira fase da democracia, em que eleitores votam no indivíduo, no personagem, na capacidade do candidato em retirar da crise seu país. De certa forma, o populismo é uma forma degradada de uma demanda bem generalizada das democracias contemporâneas, que foi mostrada por Rosanvallon em O Bom Governo (também a ser publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial), por um poder executivo personalizado, próximo, interativo e “veraz”. O que o bolsonarismo e os populismos em geral fazem é capturar esta tendência pervertendo-a, levando a uma destruição da própria possibilidade de um poder executivo baseado na “instituição invisível” dos laços da confiança.

O que fazer então nas eleições de 2022? Será Lula aquele a recuperar a legitimidade do poder executivo?

Popululismo é a solução?

As pesquisas apontam Luiz Inácio Lula da Silva como o candidato que poderá vencer Messias Bolsonaro. Algumas indicam essa vitória até mesmo no primeiro turno. Isso, se o atual presidente não “sofrer” o impeachment – o que, penso, não ocorrerá (mas como não somos profetas…).

Lula faz-me pensar numa categoria que, até onde sei, não existe: o popululismo. Um populismo de esquerda de safra brasileira. Anteriormente, a ideia de povo tinha, em plataforma marxiana, um forte apego às classes sociais. Lula sempre fez questão de manter presente esse tema em seus discursos como ideal político. Em praticamente todas as suas últimas entrevistas, por exemplo, as palavras “povo”, “pobre” e “fome” ajudam a construir esse elo na sociedade brasileira que volta agressivamente ao mapa da fome. Contudo, é sabido, que Lula venceu as eleições apenas quando inseriu em seus discursos os empresários e banqueiros, grupos que outrora eram “inimigos” do PT. O diálogo com esses grupos durante seu governo permitiu que Lula avançasse em seus projetos, mas também o impediu de consolidá-los como um legado. E legado, sabemos, é o que fica. No entanto, além de retomar às palavras-chave que o identificam com a sociedade, diante de outros conflitos no espaço público, outros temas precisam ser incorporados, e que são exatamente os que estão ausentes nas pautas de Messias Bolsonaro: as questões de gênero, da pluralidade religiosa na complexidade do Estado laico, das desigualdades sociais e territoriais, da necessidade de um modelo mais aberto, plural e democrático de relação entre Estado e sociedade, de tudo o que se relaciona à dignidade das pessoas etc.

Lula parece agregar um fator que pode ajudá-lo nessa corrida: seu carismatismo de rede. O que seria isso? Além do discurso, suas redes sociais divulgam imagens e frases que buscam apresentá-lo como o político a ser resgatado no cenário nacional para retomar o que foi perdido. Ao mesmo tempo que esse fator pode chamar a atenção dos eleitores, pode também ser interpretado negativamente. Ou seja, o que foi perdido foi perdido porque não tinha raízes profundas para se sustentar. Daí, a chamada “terceira via”.

O popululismo seria exatamente as alianças que consagraram os governos do PT, que provavelmente sem as quais não seria possível realizar tamanhas mudanças na educação, na saúde, na distribuição de renda, mas que são frágeis em suas estruturas. Popululismo seria, paradoxalmente, a ação emergencial e substantiva no país sem considerar a politização das classes e sobre classes. Popululismo seria o projeto de retirada de um não-governo para um governo jogando em duas frentes, falando a linguagem popular, mas governando para as oligarquias de sempre. Tudo isso faz com que o popululismo, preso na personalidade carismática de seu líder, seja o esteio de outras frustrações e cansaços, abrindo rapidamente, de novo, as portas para um outro não-governo que coloque a democracia em mais um risco. 

Com isso, penso que o popululismo deve ser revisto, encorpado, discutido, alinhado, criticado a partir de uma posição de base que reflita os apelos a uma democracia mais ampliada, menos oligarquizada, mais justa, onde o discurso seja mais coerente com as práticas e o Estado esteja acima das conveniências político-partidárias. Esta demanda de um governo que seja efetivamente progressista em termos de cultura e práticas democráticas não pode abrir mão do diálogo com os grupos dominantes, uma vez que no Brasil ainda é impossível chegar ao poder e governar sem as oligarquias. Deus e o diabo assentam-se na cadeira do executivo do país. Lula sempre soube disso e soube, com o PT, fazer parecer que só ele sabe fazer diferente. 

Todavia, temos que dizer, na contramão do bordão “nunca antes na história deste país…”, que, como sempre foi necessário na história do Brasil, caberá ao futuro governante, caso esteja preocupado com uma política de desenvolvimento efetivamente democrático, inclusivo, cidadão e livre, que faça como o Deus bíblico do judaísmo antigo: que use o diabo para seus intentos, ou seja, que saiba tirar do capitalismo divisor e predador o que seja a favor do bem do povo, plantando cuidadosamente cada árvore nesse país, a fim de que o nosso cenário se aproxime, minimamente, de um jardim de delícias. Diga-se de passagem, coisa nada impossível em um país natural, social e culturalmente tão rico.

Ao contrário disso, o popululismo à montante aparece como uma espécie de miragem no retrovisor, como um delírio de restauração de um oásis perdido, uma ilusão alimentada por sedentos viajantes na travessia deste deserto em que estamos. Esse delírio poderá ser talvez eficaz para nos livrar, por um momento, de um anticristo tão encarnado. Mas ele está pouco disposto a construir um campo fértil que nos liberte de uma situação em que precisemos de névoas demagógicas fazendo as nossas carências parecerem virtudes. 

Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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