Há alguns dias, o Papa Francisco reafirmou, em uma longa entrevista à Associated Press, a posição de que “homossexualidade não é um crime, mas um pecado”. Como era de se esperar, a afirmativa ressoou levantando mais uma vez a questão do posicionamento da Igreja Católica em relação à homossexualidade/homoafetividade no interior da Igreja e na sociedade como um todo.
Neste texto, Nelson Lellis busca analisar a questão tocando atenciosamente nos dilemas que envolvem o habitus cristalizado pela Igreja, tentando mostrar que não há uma via fácil de compatibilização entre a tradição cristã e a identidade católica com as reivindicações dos atuais movimentos progressistas, especialmente os movimentos religiosos de caráter identitário-progressista.
Neste sentido, ele levanta algumas questões difíceis: qual é a posição cristalizada da Igreja católica sobre a homossexualidade? Em que ela se diferencia das evangélicas? O que significa buscar que uma religião acolha teologicamente (até mesmo exegeticamente) uma reivindicação social de direitos? O que implica promover um abrigo religioso a uma demanda de caráter jurídico, ético e político? Não seria o caso de estar atento ao fato de que a ausência de caritas é, religiosamente, o pecado primordial? E que a vigilância da intimidade afetiva/sexual de todos e de cada um pode ser o meio pelo qual se desvia do amor ao próximo, em si e por si mesmo?
Desejo, como sempre, uma ótima leitura.
A.M.
Fios do Tempo, 30 de janeiro de 2023
Homossexualidade não é crime, mas pecado?
Dilema de uma busca por acolhimento eclesial
Em 2016 a editora 7Letras publicou uma coletânea, organizada por Frédéric Vandenberghe e Jean-François Véran, intitulada “Além do habitus: Teoria social pós-bourdieusiana”.[1] Foi ali que, tardiamente, o meu interesse pelas pesquisas de Bernard Lahire nasceu. Cheguei a pensar em utilizar Lahire como aporte teórico em minha tese doutoral dois anos depois para pensar a dinâmica político-religiosa do cabo Daciolo, um personagem pentecostal fora das instituições eclesiásticas e que buscava distanciar-se dos estatutos partidários, o que acabou não ocorrendo. Em meu mestrado trabalhei o conceito de habitus em Norbert Elias para pensar o Templo de Salomão em São Paulo, obra da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas quem melhor sistematizou o conceito foi, sem dúvida, Pierre Bourdieu.
Enquanto o sociólogo francês[2] pensava habitus como um processo e resultado de formação estrutural, em que o sujeito incorporava a dinâmica do grupo/sociedade, Lahire individualizou a questão percebendo que nem todos traziam em si as competências do grupo/sociedade. A crítica de Lahire, portanto, era que o uso do conceito se dava de forma retórica, abstrata, sem detalhamento empírico, o que prejudicava sua análise em escala individual.
Aparentemente, esse tipo de hermenêutica atrai bastante os cristãos que se classificam como progressistas. A América Latina, cuja participação de atores religiosos ocorre de forma bem plural, recebe sobre si os olhos atentos desses cristãos que, após observarem que igrejas já não podem mais ser interpretadas como monolíticas, buscam se favorecer desses espaços e das linguagens-religiosas-simbólicas para suas intenções político-identitárias.
Independentemente se católico ou evangélico, no momento em que se dispõem a analisar a atuação do Papa Francisco, que renunciou mordomias (como morar no Residencial Castel Gandolfo, e outras regalias, quando em visitas a outros países), esse grupo de cristãos tem diante de si um incentivo (uma brecha?) para enxergar o bispo de Roma além das estruturas estruturantes da Igreja Católica. E não apenas pela renúncia a determinados luxos tradicionais. Também pela crítica às crises causadas pelo capitalismo, por quebrar protocolos abrindo espaço na liturgia para crianças e autistas, pelos discursos contra a guerra entre Rússia e Ucrânia, pelos encontros cordiais com diferentes lideranças religiosas, visitas históricas a países como o Iraque e outros com número ínfimo de católicos etc.
O Brasil também foi alvo de seu carisma. O apoio ao trabalho do padre Júlio Lancellotti, dizendo, em outubro de 2020, que o mesmo era um “mensageiro de Deus”. Pe. Lancellotti, que cuida da população em situação de rua na cidade de São Paulo, e que, num episódio, às vésperas da páscoa em 2018, beijou os pés de Sheila, uma transexual, pedindo perdão pelos pecados que a Igreja cometeu com membros da comunidade LGBT+. Em 2020, o mesmo padre pediu perdão a um homossexual por ter sido humilhado por outro clérigo: “Ninguém pode achar que a homofobia vem de Deus”. Em 2021 disse que a homofobia é pecado e não um crime.
O tema da homossexualidade não é novo nos discursos do Papa Francisco. E tudo isso ajudou a aumentar a admiração dos cristãos que se consideram progressistas. Em 2013, ano em que o cardeal Jorge Mario Bergoglio tornou-se o Papa Francisco, disse que “o problema não é ter essa orientação [homossexual]. Devemos ser irmãos. O problema é fazer lobby por essa orientação, ou lobbies de pessoas invejosas, lobbies políticos, lobbies maçons, tantos lobbies. Esse é o pior problema”. E mais: “Se uma pessoa é homossexual e procura Deus e a boa vontade divina, quem sou eu para julgá-la? […] Os homossexuais não devem ser marginalizados por causa de o serem, mas que devem ser integrados à sociedade”. À época, já fugia da questão sobre casamento homossexual e aborto, dizendo que a posição da Igreja era conhecida. Na verdade, há registros na mídia onde Francisco defende a união civil entre homossexuais, porém, para esse grupo, segue a linha do Vaticano que proíbe a bênção matrimonial.
O russo Evgeny Afineevsky dirigiu o documentário “Francesco”, que fora lançado em 2020 na Itália. Nele, o Papa reconhece que os “homossexuais têm o direito de estar em uma família” e que “são filhos de Deus”; “ninguém deve ser descartado ou ser infeliz por isso”; e finaliza: “O que devemos criar é uma lei sobre a convivência civil. Desse modo, eles serão contemplados legalmente”. Um ano depois, o Vaticano se pronunciou sobre a união entre pessoas do mesmo sexo afirmando que a homossexualidade é pecado.
Uma declaração do Papa em 2019 já havia trazido desconforto à Aliança Nacional LGBT+ ao recomendar a psiquiatria para homossexualidade na infância: “Quando é observado a partir da infância, há muito o que pode ser feito por meio da psiquiatria para ver como são as coisas. É outra coisa quando se manifesta depois dos 20 anos”. Após crítica da referida comunidade, o porta-voz do Vaticano disse que houve uma interpretação equivocada: “Quando o Papa se refere à ‘psiquiatria’, é claro que ele faz isso como um exemplo que entra nas coisas diferentes que podem ser feitas”.
Esse fio foi para conduzir à entrevista do Papa dada à agência Associated Press e divulgada no dia 25 de janeiro (2023), onde o pontífice declarou que “ser homossexual não é crime […], mas é um pecado. Tudo bem, mas primeiro vamos distinguir um pecado de um crime. Também é pecado não ter caridade com o próximo”.
Duas questões são levantadas em sua declaração: a) a homossexualidade como pecado e b) a ausência da caridade. Vamos em partes.
A homossexualidade como pecado
Finalmente as mídias sublinham o que o Papa precisa expressar sobre a Igreja Católica. Possivelmente, desse habitus apenas Bourdieu conseguiria dar conta. A hermenêutica queer tenta salvar a bíblia perante sua leitura política identitária, mas não é possível. A mesma Torah que condena a relação íntima entre pessoas do mesmo sexo (Levítico 18,22; 20,13), também condena o filho rebelde ao apedrejamento (Deuteronômio 21,18-21). É visível a seletividade tanto para os cristãos “progressistas” quanto para os conservadores. Enquanto uns defendem a bíblia como um livro capaz de abrigar todos gêneros forçando leituras e traduções de termos que se adequem ao programa identitário, outros aplicam duras leis contra os gays, exceto quando os filhos apresentam comportamento rebelde. Afinal, a rebeldia, para esse grupo situado no século 21, ainda se cura com a vara da disciplina – que salva o filho de uma morte prematura (Pv 23,13-14).
A Igreja Católica mantém determinados tabus, como o celibato, ratificado definitivamente no Concílio de Trento (século 16). Portanto, a declaração do Papa de que homossexualidade é pecado não deveria surpreender a ninguém. Ele seguiu o rito. Cometendo aqui um pleonasmo, esse habitus já foi naturalizado. Aliás, boa parte do mundo já naturalizou o fato de termos o Vaticano como cidade-Estado desde 1929. Mussolini assinou, juntamente com o Papa Pio XI, o Tratado de Latrão, sinalizando a independência da fé diante do fascismo. Contudo, Pio XI afirmava que Mussolini era um homem “enviado pela Providência” e a assinatura do Tratado passara a favorecer a imagem do regime. E por que abro esse parêntese? Porque o Vaticano é a metáfora perfeita de uma espécie de ilha teológica e política no mundo. Dizer, portanto, que homossexualidade é pecado faz parte desse pacote. Curiosamente, o regime fascista de Mussolini condenava homossexuais ao exílio na ilha de Catania, na Sicília.[3] Quando Francisco diz que não há crime, está afirmando que os homossexuais não devem ser lançados numa ilha e condenados ao exílio. Todavia, o Vaticano, enquanto ilha teológica, os mantém exilados e estigmatizados dentro da Igreja. Basear-se na bíblia ou na tradição religiosa para impor realidades e classificações é, por si, um ato problemático. Mas os próprios membros católicos da comunidade LGBT+ parecem não perceber e reproduzem o habitus religioso utilizando-se de uma nova linguagem para que, nesse esforço, permaneçam ligados à confissão. Por quererem acreditar no dogma, membros católicos dessa comunidade cometem constantemente aquilo que Edgar Morin chamou de self-deception (auto-engano, mentir a si mesmo) e seguem estruturando um outro tipo de domínio sobre os outros gays (religiosos ou não).
A ausência de caridade como pecado
Coincidentemente, a declaração do Papa foi divulgada num momento em que havia terminado de ler a entrevista de Luis Felipe Miguel dada à Folha de São Paulo. Nela, o professor de ciência política da UnB interpreta a crise da democracia através da incapacidade dos governos em reduzir a desigualdade social e de atender as demandas da população. Esse vácuo tem recebido a presença cada vez maior das igrejas. Como consequência dessa inserção crescente e substantiva da Igreja na sociedade, o debate público torna-se pervertido. Ou seja, não se trata apenas do papel social das igrejas, pois o discurso, que faz parte do conteúdo, ajuda a construir e alimentar um cenário de ameaça dos nobres valores: “É um pânico moral, que não leva à reflexão. Ele é alimentado pelos preconceitos mais arraigados das pessoas. A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas”.
Aproveitando a sentença acima, é importante considerarmos duas questões. Primeiro: a declaração do Papa Francisco não pode ser atrelada à homofobia. Esse é o estatuto da Igreja Católica. Sublinho: sem surpresas. Inclusive, o Vaticano sugere uma visão mais acolhedora do que igrejas evangélicas. Em 2022, por exemplo, no Dia de Combate à Homofobia, Francisco afirmou que são pessoas na Igreja que rejeitam o homossexual, mas não a Igreja, pois esta é “uma mãe que reúne todos os seus filhos […]. Uma igreja ‘seletiva’, de ‘puro sangue’, não é a Santa Madre Igreja, mas sim, uma seita”. Existe aqui uma pequena diferença, mas importante, diante da maioria das igrejas evangélicas: reconhecer o homossexual, embora pecador, como filho de Deus. O discurso evangélico não considera essa possibilidade, a não ser que seja um filho por ter sido criado por Deus, e não por adoção através da figura de Jesus. Em outras palavras, um gay, ao converter-se a Jesus, deixa de ser gay e passa a ser filho de Deus. Enquanto gay, para a esmagadora parcela evangélica, não é um convertido. Nesse cenário, o sujeito é rejeitado amplamente. A rejeição da Igreja Católica ocorre de maneira mais “velada”, mas, indiscutivelmente, ocorre. Repito: não deveria haver nenhuma surpresa nisso.
Segundo: a questão moral se torna facilmente um instrumento da vontade de poder. Ninguém pode negar a presença de homofóbicos na sociedade e na religião, mas querer fazer da homofobia uma realidade onipresente e onipotente, separando o mundo em opressores e oprimidos, denunciando “violações” a partir de um posicionamento perspectivista, é subverter valores institucionais – por mais que não se concorde com eles. E apontar a violação é sempre uma ação que fortalece um grupo fundado na identidade. Como desdobramento, tem-se o cancelamento como punição. Por essa e outras, a homofobia mobiliza paixões políticas, só que agora do lado dos que a combatem, sendo que algumas vezes a transformam em um fantasma onipresente. Certamente, o Papa Francisco não será cancelado definitivamente por causa de seu posicionamento, pois ele tem algum crédito para os “progressistas”, mas aumentará sobre ele a vigia acerca do assunto. Afinal, não se trataria uma vez mais de vigiar e punir?
Bem… a ausência da caridade que Francisco falava parece afetar diretamente essa relação de tolerância (ou, na melhor das hipóteses, respeito) para com o outro. Em uma boa interpretação, trata-se de colocar o caritas acima de tudo, pois esquecer dele seria o pecado maior. Mas há aí um dilema do acolhimento eclesial dos homossexuais segundo o habitus. Se não se deve cometer um crime contra um homossexual, que é considerado “pecador” por ser homossexual, ele deve ser “acolhido” na Igreja, sendo que ela o tratará como “pecador”.
Para a Igreja, a homossexualidade não é crime, mas pecado. E o “pecado” merece o castigo de fazer com que esse “pecador” seja assim identificado: um pecado escancarado. Que tipo de caridade é possível, então? Ora, a Igreja é caridosa quando dá o pão ao faminto e amor ao próximo, e nisso ela não peca. Eis aí sua caridade. Mas ela cobra um alto preço, quando moraliza a vida afetiva e sexual íntima de todos e de cada um. Eis aí o seu crime. Enquanto isso, membros cristãos da comunidade LGBT+ aceitam, ainda que desconfortavelmente (ou mesmo demandam), o abrigo eclesial, acreditando converter a Igreja no que ela não é, nem parece querer ser. Eis aí o seu pecado...
Ou será que a Igreja desfazerá um dia seu habitus de origem voltado a transfomar a intimidade sexual em fonte de pecado, passando a se deter mais na ação de um caritas direcionado à salvação do próximo – em sua nudez – da fome, do desamparo e da desesperança? Esquecer disso é, não esqueçamos, o pecado primordial…
Notas
[1] VANDENBERGHE, Frédéric; VÉRAN, Jean-François (orgs.) (2016) Além do habitus: Teoria social pós-bourdieusiana. Rio de Janeiro: Ed. 7Letras.
[2] BOURDIEU, Pierre (1974) A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva.
[3] Para saber mais, ver: GORETTI, Gianfranco; GIARTOSIO, Tommaso (2006) La città e l’isola. Omosessuali al confino nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore.
Nelson Lellis

Doutor em Sociologia Política (UENF). Bolsista pós-doc pelo PPGSP-UENF. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG) e do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (NERD). Tem experiência nas áreas de Ciência e Sociedade, Análise do Discurso, Sociologia da Religião, Filosofia da Religião, Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica), Metodologia da Pesquisa. Desenvolve pesquisas sobre a interface Política e Religião no Brasil. Organizador das coletâneas: “Política e Religião à brasileira” (editoras Terceira Via / Recriar); “Religião e Violência” (ed. Recriar); “Israel no período Persa” (Editoras Loyola / Recriar). Colaborador no Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades (Instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação). Colunista e membro do Comitê Editorial da Revista Senso. Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).
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