Pontos de leitura. O Inesperado, de Luiz Costa Lima – Comentários a:”Contornos humanos: primitivos, rústicos e civilizados em Antonio Candido”, de Anita Moraes

Hoje, no Pontos de Leitura do Ateliê de Humanidades, trazemos os comentários de Luiz Costa Lima ao livro “Contornos humanos: primitivos, rústicos e civilizados em Antonio Candido” (Recife: Cepe, 2023), de Anita Martins Rodrigues de Moraes.

A fim de concretizar ainda mais a natureza do inesperado expresso por Costa Lima, diante desse trabalho de crítica literária de rara qualidade e originalidade, disponibilizadmos também a Apresentação da autora Anita Moraes, a orelha do livro por Marcos Natali (USP) e um excerto do prefácio, escrito por Alfredo Cesar Melo (Unicamp).

Desejo uma excelente leitura e, talvez também, um ótimo achado.

A.M.
Pontos de Leitura, 08 de maio de 2023

Sinopse do livro

Este livro analisa aspectos da obra de Antonio Candido, talvez o mais consagrado e  importante estudioso da cultura brasileira da segunda metade do século XX. O foco da  autora está no estudo da ideia de humanização, central no pensamento candidiano. Trata-se de atentar para os tipos humanos – o “primitivo”, o “rústico”, o “civilizado” – que surgem, em textos do autor, associados a certas funções que a literatura deveria  desempenhar. Nesse sentido, a autora visa discutir o arcabouço teórico etapista de  Antonio Candido, atentando especialmente para a ideia de que o homem se faz  propriamente humano à medida que se afasta da natureza. Ao analisar os textos de  Antonio Candido, Anita Moraes coloca à mostra certas dissonâncias entre a cosmovisão do crítico e as de outros autores por ela debatidos, como Luiz Costa Lima e Ruy Duarte  de Carvalho.

Quem é Anita Martins Rodrigues de Moraes

Anita Moraes possui doutorado em Teoria da Literatura (2007; bolsa FAPESP) pelo programa de pós-graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP. Desenvolveu seu pós-doutorado na Universidade de São Paulo na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (2008-2011; bolsa FAPESP). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Desde 2012 é professora de Teoria da Literatura junto ao Departamento de Ciências da Linguagem da Universidade Federal Fluminense. Atualmente integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Literatura Infanto-Juvenil (LIJ) e o corpo docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos da Literatura da mesma universidade. De suas publicações, além de “Contornos humanos”, destacam-se: “Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido” (Editora da Unesp, 2015) e “O inconsciente teórico: investigando estratégias interpretativas de Terra Sonâmbula, de Mia Couto” (Editora Annablume/ FAPESP, 2009). Publicou também a antologia “O Brasil na poesia africana de língua portuguesa” (Editora Kapulana, 2019), organizada em parceria com a professora Vima Lia Martin (USP).

Arte de capa: Marcia de Moraes, “Os corais” (2022)


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O Inesperado, comentários a
“Contornos Humanos”, de Anita Moraes

Luiz Costa Lima

O dia assumiu novas cores quando o correio anunciou a chegada do segundo livro da prof. Anita Martins Rodrigues de Moraes sobre o crítico literário Antonio Candido. O entusiasmo se justifica porque nossa produção intelectual chegou a um nível tão baixo, mormente no campo literário, que a edição de uma obra séria nos dá esperança de já não sermos obrigados a partilhar necessariamente de programas televisivos de piadas chulas e de grosseiras alusões sexistas. A impressão favorável é tão forte que, em vez de resenhar a obra, acho preferível atentar para o panorama do que estamos a viver. 

Do que desenvolveríamos numa resenha, aludiremos apenas que a literatura categoriza os tipos humanos, distinguindo-os entre rústicos e civilizados. (A distinção é demasiado sumária e a análise do português Abel Barros Baptista sobre Baleia, em Vidas Secas, mostraria a sua insuficiência, mas não devemos aqui desenvolvê- la). Em troca, é oportuno mostrar a lacuna com que o livro de Anita Moraes irá se defrontar. 

Até os anos finais do século XX, nossa produção intelectual era respeitável e tínhamos como núcleos principais de produção intelectual a poesia de Drummond, Cabral e Murilo, a prosa de Guimarães Rosa, a vanguarda concreta, com destaque para a ensaística de Haroldo de Campos e a poesia de seu irmão Augusto, a crítica literária de Antonio Candido e a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda. Suas mortes, sucedidas entre 1969 (Guimarães Rosa), 1982 (Sérgio Buarque), 1999 (João Cabral), 2003 (Haroldo de Campos), 2017 (Antonio Candido) rompeu o momento áureo. Das grandes linhas, restou apenas a continuação da poesia concreta, que se manteve pelo poema experimental e as traduções de Augusto de Campos, embora isolado, porque o movimento foi emparedado pelo visualismo comercial da propaganda sócio-comercial. Ao desaparecimento das grandes figuras ainda correspondeu a permanência da carência que havia sido herdada.

A nossa reflexão crítica, que vivera sua grande figura em Candido, tinha por traço marcante a ausência de preocupação teórica com o estatuto da literatura, por muitos já então era tomada como adversária da linguagem literária – o que, mais recentemente, encontrará mais adeptos. Se a antropologia britânica – tão bem destacada por Anita Moraes – teve o mérito de trazer um material rico e comparativo para o exame do objeto literário, trouxe também a desvantagem de não considerar o material literário – i. e., a ficção – como uma forma discursiva própria, que deveria portanto desenvolver sua formulação própria. Faltou-nos a contribuição dos formalistas russos, ausentes fosse pela distância da língua e da localização, fosse pelos entraves stalinistas, se não também de alguns new criticisms. A contribuição de Haroldo de Campos, subsidiada pela do português Abel Barros Baptista, teria tornado menor o prejuízo caso o corpo docente de nossas universidades não fosse tão burocrático. Mas aí ainda não se encerram as dificuldades.

Ao vazio da reflexão teórica acrescentava-se a vazio da produção poética e ficcional depois da morte de Drummond, Cabral, Murilo e Rosa. Por certo este vazio não se deu por acaso, sendo antes resultante do próprio incremento da voracidade capitalista cada vez mais acentuada. De sua parte, ela se combina com nossas raízes históricas – a escravidão, a tremenda desigualdade da posse da terra, a ausência de avanço intelectual –, que pesam contra um interesse efetivo no aprofundamento dos conhecimentos que não sejam puramente tecnológicos ou empíricos, ou voltados a uma meta o quanto possível imediatamente lucrativa.

Consequência dos fatos enumerados, o esforço de Anita Moraes em organizar as linhas de pesquisas levantadas por Candido em relação à África portuguesa passa a receber um eco extremamente estreito. Do contrário, poderia ser orientado a cursos universitários novos e estimuladores, passíveis de atrair alunos outros, senão mesmo de outros países. Em seu lugar, nossa produção intelectual continua miserável, o pouco que poderia abrir caminhos outros mantém seu passo rotineiro.

Apesar dos argumentos aqui desenvolvidos e dos entraves com que nos deparamos, se as duas páginas acima foram escritas, é porque ainda guardemos a esperança de que, malgrado a expectativas em contrário, a autora do livro sobre Candido tenha razão em esperar que, malgrado a discordância, a manifestação literária continua a ser um meio eficiente de humanização.

Se, entretanto, a ficção literária não for capaz de fornecer mais algum sentido para a vida, não sei mais o que poderá nos prender a ela.

Rio de Janeiro, maio 05, 2023

Apresentação a
Contornos humanos:
Primitivos, rústicos e civilizados em Antonio Candido

Anita Martins Rodrigues de Moraes

Investigo, neste livro, como a categorização do humano se articula, na obra de Antonio Candido, a certo entendimento acerca da literatura. Trata-se de atentar para os tipos humanos – o “primitivo”, o “rústico”, o “civilizado” – que, em seus trabalhos, surgem associados a certas funções que a literatura poderia (ou deveria) desempenhar. Parece-me que a ideia de “humanização”, central na atribuição à literatura de uma “função humanizadora”, encontra-se imbuída de uma concepção teleológica do humano que localiza o “civilizado” (europeu ou seu descendente) no cume de um longo percurso de desenvolvimento – de um estado mais rudimentar e espontâneo a outro mais elaborado e avançado. Nesse sentido, busco, neste trabalho, discutir o arcabouço teórico etapista de Antonio Candido, atentando especialmente para a ideia de que o homem se faz propriamente humano à medida que se afasta da natureza, à medida que elabora a realidade concreta, que ordena essa realidade dotando-a de sentido e simbolismo. O homem parece, então, fazer-se humano justamente ao transmutar a realidade material de que participa em algo superior, de modo que sua própria forma humana resulte de elaboração transfiguradora.

Minha proposição é, fundamentalmente, a de que tais contornos humanos supõem a depreciação do corpo e dos outros animais, isto é, promovem seu rebaixamento. Tal rebaixamento impregna a categorização dos tipos humanos de uma hierarquia: temos homens mais próximos da condição natural ou animal (os chamados “primitivos” e “rústicos”) e aqueles que dela se distanciaram (os “civilizados”). Nessa produção paulatina do humano, a literatura – “primitiva”, “rústica”, “civilizada” – parece desempenhar funções importantes, sendo que ela própria seria inicialmente rudimentar e colada à concretude, tornando-se gradativamente mais elaborada e livre. Da oralidade à escrita, do folclórico ao erudito, a literatura parece paulatinamente alçar a um nível superior, tornando-se capaz de transcender a realidade concreta e imediata. Tanto a literatura como o humano se fazem, assim, por transfiguração, transcendência e superação.

Contornos humanos retoma e desdobra algumas das ideias que desenvolvi em Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido (2015). Nesse trabalho, detive minha atenção na obra de Candido, de maneira que o diálogo com outros estudiosos se manteve nos bastidores. Aqui, ao contrário, exponho algumas de minhas interlocuções e investigo certas referências teóricas de Antonio Candido, revisitando problemas e críticas a partir do diálogo com autores diversos. Este livro tem dois momentos: na primeira parte, “Humanização que é civilização”, discuto os pressupostos antropológicos etapistas de Antonio Candido e trato de sua concepção de obra literária; na segunda parte, “Brasil, África e o espírito do Ocidente”, articulo minha discussão às literaturas africanas de língua portuguesa quando investigo o diálogo de estudiosos da área com Antonio Candido e na medida em que abordo a escrita autoficcional do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho e exploro sua crítica ao “paradigma humanista”. Dessa maneira, a segunda parte deste trabalho evidencia que minha abordagem crítica da obra de Antonio Candido se deve, em grande medida, às possibilidades abertas pela leitura de autores africanos, em especial de um autor cuja escrita atravessa os domínios da literatura e da antropologia.

No capítulo inicial da primeira parte, “Primitivos, rústicos e animais”, reelaboro argumentos de Para além das palavras ao abordar o entendimento de Antonio Candido acerca das relações entre homem e natureza, mais especificamente acerca das oposições entre humano e animal, espírito e corpo, escrita e oralidade. Ao tratar de “Estímulos da criação literária”, Os Parceiros do Rio Bonito, “O direito à literatura” e Ficção e confissão, proponho que sua teoria da função humanizadora da literatura supõe a existência de níveis e etapas culturais. No capítulo seguinte, “A função da literatura nos trópicos”, incorporo “A literatura e a formação do homem”, “Literatura de dois gumes”, “Literatura e subdesenvolvimento” e Iniciação à literatura brasileira à discussão e abordo a acomodação candidiana do funcionalismo inglês ao evolucionismo cultural oitocentista. Sugiro, ainda, que a função humanizadora da literatura é, para Antonio Candido, indissociável de uma função civilizadora e integradora, especialmente em países marcados por processos coloniais, como é o caso do Brasil e dos demais países latino americanos.

Desenvolvo novos apontamentos sobre Os parceiros do Rio Bonito no capítulo “A física da literatura: concretude, imaginação e contenção”, destacando a ideia de que a cultura caipira estaria em vias de desaparecimento. Traço paralelos entre tal diagnóstico e a leitura que Antonio Candido faz d’Os sertões, de Euclides da Cunha, considerando especialmente o artigo “Euclides da Cunha, sociólogo”. Avanço, então, no sentido de alguns questionamentos acerca das funções atribuídas à literatura por Antonio Candido, especialmente no que se refere ao contexto latino-americano, recorrendo a aspectos da Formação da Literatura Brasileira e ao ensaio “Literatura, espelho da América?”. Proponho, finalmente, que Antonio Candido entende ser a literatura uma delicada operação que envolve forças diversas, como a da realidade concreta ou corpórea, a da sociabilidade, a força da imaginação e a força das próprias palavras e sua carga simbólica, configurando-se, em minha perspectiva, uma espécie de física da literatura. Para tanto, analiso comentários do autor acerca da zoofilia caipira, dos perigos da masturbação e da imaginação, comentários presentes na “Parte Complementar” d’Os parceiros do Rio Bonito.

No capítulo “Luiz Costa Lima e Antonio Candido: alguns contrapontos”, investigo aspectos da crítica feita por Luiz Costa Lima à Formação da Literatura Brasileira. Meu interesse é explorar o alcance dessa crítica notando seus rastros na própria teoria costalimiana da mímesis, do controle do imaginário e do sujeito solar moderno. Pretendo, assim, avançar na compreensão da concepção candidiana de obra literária por meio do confronto com proposições de Luiz Costa Lima (gesto que retomarei no último capítulo, “Funções da literatura e neoanimismo”).

No capítulo “Antonio Candido e os estudos de literaturas africanas de língua portuguesa”, que abre a segunda parte deste livro, trato do aproveitamento do modelo teórico-crítico-historiográfico de Antonio Candido no âmbito dessa área de estudos. Discuto, num primeiro momento, aspectos do modelo candidiano, novamente recorrendo às críticas de Luiz Costa Lima à Formação da literatura brasileira. Descrevo, então, alguns modos de apropriação do conceito de “sistema literário” e da ideia de “formação” nos estudos de literaturas africanas, com foco nos trabalhos de Rita Chaves (A formação do romance angolano) e Benjamin Abdala Júnior (Literatura, história e política).

No capítulo “Espaço, palavra e representação”, discuto possíveis premissas da tese candidiana acerca da “fome de espaço” dos romances regionalistas brasileiros, sugerindo que em “Instrumento de descoberta e interpretação” (Formação da literatura brasileira) o estudioso supõe uma realidade prévia – concreta e bruta – a ser “apalpada” e elaborada pelo escritor romântico. Trato, então, de algumas estratégias da escrita de Ruy Duarte de Carvalho que tornam tal concepção de realidade problemática. Dou início, assim, ao diálogo com a obra de Ruy Duarte de Carvalho, diálogo que persistirá nos capítulos seguintes.

Em “A mímesis como representação da fala alheia”, lido com a representação literária de modos de ser e de falar alheios (estranhos) àqueles que se apresentam como normais (familiares e adequados) no mundo ocidental ou ocidentalizado. Busco refletir sobre a mímesis atentando para as instâncias da autoria, da voz narrativa e da representação da fala das personagens. Investigo, para tanto, o diálogo de Ruy Duarte de Carvalho com a obra de João Guimarães Rosa, diálogo este tecido na própria escrita do autor angolano. Revisito, então, “A literatura e a formação do homem”, de Antonio Candido, e também discuto sua análise de Grande sertão: veredas (“O homem dos avessos” e “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”) por meio do cotejo com as leituras de João Adolfo Hansen e Luiz Costa Lima.

Os capítulos deste livro retomam, desdobram e adensam discussões, de maneira que a leitura sequencial me parece a mais adequada. O capítulo final, “Funções da literatura e neoanimismo”, funciona, assim, como a conclusão (provisória) de um percurso reflexivo. Posso dizer que, com este trabalho sobre a categorização do humano e da literatura em Antonio Candido, busco contribuir, em alguma medida, para a problematização do eurocentrismo (implicado, parece-me, em certo humanismo) ainda tão presente e naturalizado nos estudos literários. Resta dizer que Contornos humanos é, como foi Para além das palavras, uma homenagem ao pensador Antonio Candido.

***

Agradeço a todas e todos – grupos de estudos, laboratórios, estudantes, colegas, amigos, amigas e familiares – que, mediante o debate franco e a troca produtiva de ideias, contribuíram para a construção deste trabalho. Agradeço especialmente a Lúcia Ricotta Vilela Pinto, Paulina Caon, Alfredo Cesar Melo, Luiz Costa Lima, Marcelo Moreschi e Marcos Natali pelo estimulante diálogo e pelas boas parcerias. Também agradeço, pela alegria da convivência e pelas longas conversas, a minhas irmãs, Juliana e Marcia, a meus cunhados, Gustavo e Fabrício, a Clara, minha sobrinha, a meus pais, Maria Lúcia e Benedito Neto, e a Marcelo Diniz, meu companheiro de vida. A Suzi Sperber agradeço, sempre, pela longa parceria e por sua escuta e criatividade tão encorajadoras. Agradeço, finalmente, à minha irmã Marcia de Moraes pelo lindo desenho que figura na capa deste livro: “O denso”, de 2021.

À FAPESP, à FAPERJ, ao CNPq, à CAPES e à UFF agradeço pelo apoio (com bolsas, auxílios e afastamentos) aos projetos de pesquisa que desenvolvi ao longo de mais de uma década, projetos que permitiram, entre outros resultados, a elaboração deste trabalho.

Orelha do livro

Marcos Natali

As páginas destes Contornos humanos abrigam um exercício de leitura paciente e preciso que se demora nos textos de Antonio Candido o tempo necessário para que ganhem uma nova figuração. Essa coragem da demora permite que os capítulos se detenham em ensaios e livros como Formação da literatura brasileira, Os Parceiros do Rio Bonito, “Literatura de dois gumes” e “Literatura e subdesenvolvimento” – textos cujos sentido e valor pareciam já estar demarcados –, para interrogar teórica e politicamente o precário equilíbrio de seu paradigma humanista, assentado na categorização e hierarquização de tipos humanos – o “primitivo”, o “rústico”, o “civilizado”, cada um assombrado pelo espectro do “avesso do humano”, isto é, o animal, o corpo e a confusão.

A disposição para ler de outro modo permite ainda que se perceba a dissonância entre a cosmovisão do crítico brasileiro e as de autores como Luiz Costa Lima e Ruy Duarte de Carvalho. No caso das literaturas africanas, como o objetivo não é a comprovação da relevância de Candido para a compreensão das culturas africanas, o experimento será capaz de destacar também sob esse ângulo alguns limites da capacidade imaginativa da crítica brasileira, sem temor de apontar seus aspectos eurocêntricos e etapistas, quando é o caso.

O que resulta é uma compreensão da teoria literária pouco comum no país, com a valorização efetiva do antagonismo a partir de uma intervenção crítica que não abre mão do rigor e da precisão. É como se, com o conjunto de textos reunidos nestas páginas, Anita Martins Rodrigues de Moraes nos mostrasse não exatamente que é preciso continuar a ler Antonio Candido, mas que de certa forma ainda estamos começando a lê-lo. E assim o livro acaba sendo também a exposição de uma ética da leitura, que volta a ser uma aventura do pensamento associada ao risco e uma prática pela qual ainda é possível sentir entusiasmo.

Excerto do Prefácio

Alfredo Cesar Melo

Parece-me que o centro da argumentação de Contornos humanos está num verbo que é muito caro aos críticos literários e professores de literatura em geral: humanizar.

Quando dizemos que a literatura humaniza alguém, cabe o seguinte esclarecimento semântico: o quão insuficientemente humana uma pessoa deve ser para ser resgatada por uma força humanizadora como a literatura? Não há dúvidas de que as várias histórias do colonialismo, da escravidão e do totalitarismo oferecem amplo repertório de situações extremamente opressivas, em que a dignidade mínima dos grupos sociais atingidos foi destruída. Mas não me parece que esse tipo de horror desumanizador tenha na literatura a sua cura. A pergunta, portanto, permanece: se a literatura humaniza as pessoas, o quão humanas eram as pessoas antes de terem contato com a literatura? Como também parece absurda a tese que a obra literária humanizava uma pessoa não humana, a descrição mais correta do que está em jogo quando falamos do poder de humanização parece ser outra: a ação pedagógica da literatura trabalharia com uma espécie de continuum da humanização, que iria de um humano mais primitivo e elementar a um humano mais sofisticado e civilizado. Humanizar o humano seria empurrar o objeto da ação pedagógica para um patamar superior na gradação da humanidade. O estudo de Anita reflete sobre como a obra do principal crítico literário brasileiro pressupõe esse arco evolutivo para definir a função “humanizadora” da literatura.

(…)

Parece-me que aquilo que chamamos de “humanização” no pensamento progressista orbita em torno de tal questão. Que o grande crítico literário brasileiro do século XX pense a literatura como agente humanizador, em termos progressistas, isto é, como força capaz de elevar padrões culturais ou gradientes de humanidade, não é algo que deveria causar qualquer tipo de celeuma. O ruído gerado por esse debate advém de um ambiente pouco propenso à discussão teórica e de seus pressupostos, além de parca reflexão sobre a tradição progressista no Brasil. Longe de um debate mais vigoroso de ideias, o que temos é uma tentativa de nublar os argumentos alheios, além de personalizá-los, atribuindo a crítica a uma má vontade ou birra diante de uma figura intelectual bastante admirável. Analisar os fundamentos teóricos de uma certa concepção de literatura incomoda porque nos leva a interrogar se estamos reproduzindo – por vezes de modo inconsciente e acrítico – tais pressupostos na rotina de nossa vida intelectual. Ou será que nós, profissionais das letras, não lemos O direito à literatura como uma profissão de fé do nosso campo? Não enxergamos a literatura como uma “boa nova” a ser espalhada e difundida entre os que ainda não a receberam, imbuídos de um espírito de catequese secular e humanista? O livro de Anita chama atenção para essa ideologia do literário emancipatório e humanizador, que tanto sustenta nossas práticas até os dias de hoje. O que desconcerta em Contornos é macular a autoimagem benevolente que construímos de nós mesmos, muitas vezes desconsiderando que a ideologia do “literário emancipatório” carrega em si tantos traços de hierarquização e subalternização.

Se atentarmos para a fortuna crítica da obra de Antonio Candido, vemos que o ângulo analítico escolhido por Anita é distinto daquele mais estabelecido para examinar criticamente a sua obra. Por muito tempo, o nacionalismo de Candido tem sido alvo de acerbas críticas. De Haroldo de Campos (1989) a Abel Barros Baptista (2005), passando por Luiz Costa Lima (1991), várias foram as vozes que denunciaram o nacionalismo como a força extraliterária que organiza esquemas interpretativos, hierarquiza obras e valoriza aspectos literários na grande narrativa produzida por Antonio Candido para dar conta da história da literatura brasileira. Anita vai por outra vereda, aberta por Marcos Natali (2006) em “Além da literatura”, que é o de analisar as bases do humanismo literário ocidentalizante de Antonio Candido. Claro que, como bem nota Anita, essas duas frentes – o nacionalismo e o ocidentalismo – entroncam-se de maneira dialética no projeto candidiano. Sem um contravapor ocidentalizante, o nacionalismo se torna tosco provincianismo. Por sua vez, a ocidentalização sem uma inflexão nacional acaba virando um cosmopolitismo estéril. Candido é o artífice dos gradientes, o mestre da modulação do “particular” e do “universal”. Como nos mostra Anita, o nexo entre o nacional e o ocidental está no coração do projeto progressista de Antonio Candido. (…)


Outras atividades de Luiz Costa Lima

Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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