A passagem do ano tem o poder de renovar simbolicamente o fio da esperança. Mesmo quando estamos em meio ao som e à fúria, em uma história narrada por um idiota num enredo sem sentido, há alguma forma de fortaleza que podemos extrair deste desastre.
E, com esta tenacidade, mantém-se aberta a brecha para que, em boa hora, façamos um novo porvir. Afinal, como ensina Hannah Arendt, “fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar”.
Neste texto de Luiz Costa Lima, que faz seus votos de ano novo num pensar em voz alta, perplexo, indignado e lúcido, encerramos o ano de 2021 no Fios do Tempo, desejando-lhes um feliz ano novo e uma excelente leitura!
A. M.
Fios do Tempo, 31 de dezembro de 2021

Votos por alguma forma de fortaleza
Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2021
A muitos, suas vidas são atravessadas por impasses insolúveis; tão insolúveis que só os sonhos os figuram. Os sonhos oferecem uma lufada de afago em um campo de urtigas.
Embora eu nunca tenha partilhado dos festejos de fim de ano, não duvido que algo deles sobre mim funcionava como um afago. Será por efeito de sua lufada que aceito pensar sobre o clima que atualmente nos envolve?
Que clima, um anônimo pergunta? Digo de mim pra mim: a terra arrasada não é mais a tradução do título de um poema, mas sim a praga que assalta e assola a extensão continental do país.
Como admitir, por mais tacanha que seja a mente de um governante, que ele tenha promovido uma política de terra arrasada? Mas como negá-lo ante o que tem sido feito com o desmatamento permitido e incentivado da floresta amazônica; a invasão dos territórios indígenas; o incrível negacionismo da vacina contra a epidemia da Covid-19, recentemente reafirmado pela recusa de estender o cuidado vacinal até às crianças de menos de 10 anos; e as restrições que cerceiam a nossa já carente educação, no plano legislativo, pelos bilhões reservados ao chamado “orçamento secreto”? Não estranhe que se acrescente ao plano do absurdo a medida legislativa, porquanto tudo ainda seria objeto de pilhéria e chacota se pudéssemos atribuir a origem de todos nossos desastres recentes apenas a uma figura. Não, o mais grave é verificar-se que se constituiu um grupo que sustenta, acrescenta e extrai vantagem da iniciativa de alguém de maior poder.
Tais calamidades estão nas notícias diárias. Me surpreende, contudo, que não faça parte delas um efeito perverso da contínua desvalorização da moeda nacional. (Não se pretende que a desvalorização faça parte da política do governo, mas sabe-se sim que é consequência de sua administração desastrosa). Chamo a atenção para o relacionamento da presente política educacional e a questão do real. Não é novidade que o pouco interesse do governo pela educação não foi agora inaugurado, mas apenas tem sido veementemente incentivado. Daí que a carência das bibliotecas públicas obrigue professores e pesquisadores a terem seus acervos particulares. E aqui entra a desvalorização da moeda nacional. Não é novidade que nosso parque editorial é bastante insuficiente, seja porque o público comprador é pequeno, seja porque raramente o editor se deixa guiar por algo mais do que a gana de lucrar. Com isso, pesquisadores e professores têm de manter o olho voltado para o parque estrangeiro. Ora, o preço médio de um livro em formato popular (paperback) custa entre $25 e $35; com o aumento das taxas de correio, acrescente-se, no barato, mais outro tanto. O livro estrangeiro ao nos chegar estará por volta de $ 50 ou $ 60; mais do que R$300,00. Barato, não? Há alguns meses, um de nossos ministros propôs que o livro importado pagasse uma taxa especial, sob o argumento que, entre nós, só os ricos lêem. O absurdo era tamanho que não mais se ouviu falar na proposta. Mas o custo absurdo do livro não precisava da medida. Com os salários atribuídos aos profissionais da cultura que se pensa que poderá suceder senão a baixa ainda maior na qualidade de nossas aulas e da produção nacional? Apesar do quê, o assunto não interessa aos nossos noticiários.

E, no entanto, falar em incentivo a uma política de terra arrasada ainda seria um simplismo. Contra ele se insurge o bom-senso. Baseado em que protesta? Em que assim não se nota que todas aquelas medidas mantêm o claro propósito de converter o país no reduto de uns tantos proprietários e seus associados. Afinal, não serão eles tão poucos. Do contrário, as estimativas eleitorais não continuariam insistindo que cerca de 25% dos eleitores permanecem favorecendo a volta do país à condição de capitanias hereditárias.
De todo modo, as mesmas estimativas declaram não ser esperável que o referido reduto seja bastante para reeleger os arrasantes. Isso nos dá um fio de esperança ou é resultante da lufada que, apesar de tudo, nos envolve? Seja como for, levantamos a cabeça ao nos dizermos que só temos de aguardar que os meses vindouros não nos esmaguem; que os milhões de famintos e sem teto ainda consigam resistir; que o aumento reservado aos policiais não mostre seu efeito perante a derrota eleitoral de quem o promoveu.
Acentuemos pois que o fio de esperança não se confunde necessariamente com a lufada dos festejos de fim de ano. Mas isso não chega a engendrar convicção. Esta antes se aproxima das palavras que [William] Faulkner dedicava ao drama de seu deep south, depois da derrota na guerra civil americana (1861-1865): “(…) O esqueleto indômito erguia-se como uma ruína ou um marco sobre as entranhas sonolentas e inatingíveis”. A relação só não é arbitrária se for ressaltada a ênfase comum entre o que se dá conosco e o que o romancista acentuava: a família. Enquanto o romancista ressaltava o núcleo familiar sulista espremido entre o ódio ao yankee e a manutenção do legado escravocrata, entre nós este legado por certo se liga aos valores da família proprietária. É essa que se considera com o direito de comandar o país e mandar que se danem os milhões que almejam por melhores condições de trabalho e de salário. Em mínimas palavras, o drama narrado por Faulkner era muito menos grave ou, quando nada, muito menos extenso do que o que nos cabe dois século depois. É de esperar que tenhamos um Faulkner? Não, o excepcional não se espera, apenas chega.
Com lufada ou sem ela, lembramo-nos do romancista pelo temor que os estragos já praticados contra o Estado brasileiro exigirão décadas para um possível conserto. A expectativa se torna pior se considerarmos o seguinte: se sabemos que nossa extrema direita não se originou agora, é crível que sua chegada agora ao poder levou-a a forjar um bastião que, embora possa ser proximamente derrotado, permanecerá arregimentado para tentar melhor sorte adiante. A expectativa se torna mais grave porque tal arregimentação não se deu apenas entre nós. Trump, nos Estados Unidos, e seus correspondentes em vários Estados europeus, assinalam que a crise do capitalismo e o crescimento econômico da China provocaram o advento de tais blocos de extrema-direita. Afinal, quem disse que os mecanismos de defesa se limitam ao indivíduo particularizado? Uma sensação de respiro ainda é dada porque tal bloco não se tornou expressivo na Alemanha, onde a proximidade temporal do nazismo tornaria mais tenebroso o seu aparecimento.
Em suma, essa é a reflexão proposta por um não especialista em política, que talvez por isso mesmo não encontra maior segurança na iminência de derrota dos agentes da terra arrasada.
Mesmo sob o risco ridículo de fazer incidir sobre William Faulkner a pecha de “comunista”, é a ele que ainda remeto. Reajo à semelhança de um dos personagens de O Som e a Fúria [1929], que “quando se via por fim diante de um desastre inquestionável tirava de algum lugar uma espécie de força e firmeza”. É essa “sort of fortitude” que gostaria de transmitir ao leitor.

LUIZ COSTA LIMA é professor emérito da PUC-RJ. Atua principalmente em teoria da literatura, história e crítica literária, literatura brasileira, teoria e filosofia da história, história dos discursos. Autor de mais de vinte livros, entre eles A trilogia do imaginário (2007), Frestas. A teorização em um país periférico (Contraponto / PUC-RJ, 2013), Mímesis e arredores (CRV, 2020). Seu último livro é O chão da mente: a pergunta pela ficção (EdUNESP, 2021).
Deixe uma resposta