Pontos de leitura. A poesia que se nega – Luiz Costa Lima

Resenha de:
Bonvicino, Régis. A Nova Utopia (Editora Quatro Cantos, 2022)

Tendo escrito 23 livros, quase todos de poesia, com antologias para o inglês e o espanhol, Régis Bonvicino dá um tremendo salto para o escuro com A Nova Utopia. (Não sei dizer nem tenho espaço para conjecturar se se trata de uma evolução própria ou até que ponto foi sobre ela decisiva a influência do quatriênio que estamos acabando de viver). 

Depois de nossa grande poesia modernista, seguida apenas por Augusto de Campos, em seu duplo molde – verbovocovisual e de modulação moderna – nas últimas décadas a poesia brasileira tem-se quase sempre limitado ao poema centrado em si mesmo, a que tenho chamado performático. Ao contrário, A Nova utopia pode trazer o alento de uma virada ou ao mais provavelmente o gesto inaugural de alguma. Não sei o que o espaço de uma pequena resenha possibilitará insinuar.

Começo por seu inusual solo comum. Desde logo, quase nenhum sinal dos padrões seculares da lírica, do dramático, da sátira, da comédia, muito menos do epos. Uma linguagem comum, por sorte sem isenções aos rebuscados, se mistura com expressões que a eletrônica estampa por anúncios, slogans, ditos publicitários, o que se poderia chamar de para-memes. De sua mescla, resulta um humor voluntariamente sem páthos, a exibição neutra da crueldade, a miséria crua de mendigos e pedintes, os besouros trucidados pelos parabrisas de carros e vitrines, garotos de revólver em punho, granfinos indiferentes, negros aleijados, pássaros famintos que bicam latas vazias, putas cujas vestes imitam modelos de vitrines, a lavagem das verbas públicas, o orçamento secreto, a insolência dos políticos, as chacinas internacionais, modas pelos quais se espetaculariza a “Sociedade do espétaculo”, como a designara o pensador e cineasta francês Guy Debord, personagem do livro resenhado. Em suma, a unanimidade do mal; designações semelhantes se multiplicam com pequenas variações. O absurdo é a regra calada:

Um garoto negro, quase no ponto de ônibus,
um par de baseados no bolso,
é preso em flagrante, por tráfico?
leva porrada na rua, Ora pro nobis

Os exemplos, de poemas diversos, são escolhidos ao acaso:

Sacos de lixo abertos pela chuva
não é o cúmulo, é apenas o acúmulo,
um trovão detona a nuvem
o que está no poema não está no mundo

Sucateiro rastafári
sentado na mureta, cabeça baixa
sob as palmeiras do largo
pés na mochila, garrafas PET

Fedor
Urubus bicam dedos
bicam unhas, braços
pra fora da cova
ambulância
os caras descarregam  
outros corpos

Cidades? Sim, em seus dejetos. Esta ou aquela. Tanto faz. São Paulo ou lugar da Síria. Brasileiros ou jihadistas, dá no mesmo. Raríssimo o poema que escapa do asco e da podridão. A qualitativa exceção lírica de

Eu sou uma força do Passado
Somente na tradição está o meu amor
Venho das ruínas, das igrejas
dos retábulos, das aldeias, abandonadas
dos Apeninos ou pré-Alpes

perde o possível caráter autobiográfico por ser dedicado a um Pier Paolo Pasolini, muito conhecido para sê-lo do autor. A mesma exceção, por diversa razão em “A Call to kill”. Nele, a variedade do caos deixa de ser visualmente referida para alçar-se ao transcendental: 

é o call to kill da internet talvez seja só um
tira da esquina 
são as bestas de Deus 

Mas o que é Deus? É Deus. 
Deus agora explode
talvez seja só um psicopata
se exibindo para as massas.

Mesmo sem cotejar o volume presente com as direções tomadas no conjunto anterior Até Agora (Poemas reunidos) (2010), tais raros exemplos dariam ao resenhador a esperança que a poética da unânime maldade e indiferença geral se reduzisse à justa denúncia da torpeza contemporânea. Mas a esperança não encontra grande efeito. Elimina-a as 14 versões em prosa do título do livro. Os imensos poros do caos, em que sobressai a polida indiferença dos poderosos, a atrocidade comum de facínoras e policiais, a mísera miséria – “Cabelos brancos/ calçada estreita/ mastiga a gola da blusa/ pernas – enfiadas num saco “ – são por certo abrangentes, mas, ao serem trazidas para uma poética, precisariam assumir variedades, que, aqui, apenas se tornam um espesso volume quase indiferenciado. Confirma-o a pequena variação constitutiva dos 14 poemas em prosa que definem “a nova utopia”. Reitero apenas o que ajuda a estabelecer seu tom:

O que está no poema não está mundo
A nova utopia é, AO FIM, a liberação do
homem, do homem agora simples,
finalmente verdadeiro, o homem dévu

           A poesia está morta. Mais do que morta. A nova utopia não quer saber da lei das estrelas e da fórmula da flor. Quer se defrontar, até o osso, com os haters que atacam os afrodescendentes, refugiados, ciganos,  imigrantes, migrantes, LGBTQIA+, pobres, lascados, feministas, fodidos, junkies, incompreendidos

Nega o verso “a cadela do fascismo está sempre no cio”, de Bertolt Brecht.
O novo utopista obriga Brecht (…) a pedir perdão à cadela

           A poesia está morta, abantesma que sobressalta, assombra às vezes

Contra o mundo mecanizado, torpe, absurdo e indiferente à desigualdade de classes e raças se indispõe eis uma poética que se nega enquanto poética? Ela por acaso retiraria a vantagem no mundo aos que já o possuem? Ou a tornaria mais indiferente? Quando foi que o autor soube que a poesia foi uma arma eficaz contra a injustiça? Não será que o diagnóstico está correto, porém o paciente mal escolhido?

Não me isento de opor ao que mostrei o que já se dizia na primeira estrofe da tradução do “Outono da rã” Sylvia Plath:

Velho verão, mãe de sangue-frio.
Os insetos são raros, frágeis.
Nessas casas palustres só
Coaxamos e murchamos.


LUIZ COSTA LIMA é professor emérito da PUC-RJ. Atua principalmente em teoria da literatura, história e crítica literária, literatura brasileira, teoria e filosofia da história, história dos discursos. Autor de mais de vinte livros, entre eles A trilogia do imaginário (2007), Frestas. A teorização em um país periférico (Contraponto / PUC-RJ, 2013), Mímesis e arredores (CRV, 2020). Seu último livro é O chão da mente: a pergunta pela ficção (EdUNESP, 2021).


Outras atividades de Luiz Costa Lima

Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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