No texto “Luiz Costa Lima e a teoria do romance (Retorno à Poética)”, o professor Nabil Araújo (UERJ) realizou uma análise do pensamento de Luiz Costa Lima, focando sobre a tese do controle do imaginário e suas implicações para a história do romance. Publicamos hoje no Fios do Tempo a resposta de Costa Lima, que centra sua argumentação na importância da teoria do romance para o exercício da crítica literária. O debate terá continuidade com um texto de minha autoria que, analisando criticamente a interpretação de Nabil Araújo, proporá um desdobramento sistemático das contribuições de Costa Lima para a história e teoria do romance, da literatura, do ficcional e da própria modernidade.
André Magnelli
Fios do Tempo, 03 de março de 2022

A questão da teoria
Luiz Costa Lima
Data de 2020 e publicado na revista Roda, Belo Horizonte, vol. 29, nº 4, pp. 65-97, o ensaio em que o professor Nabil Araújo discute minha teorização do romance – parte da mais ampla teorização sobre a mímesis. Ainda que com evidente atraso, não me desagrada discuti-la e evidenciar em que estamos de acordo e em que divergimos; em que sobretudo divergimos. Para que o leitor não pense estar diante de um fútil noblesse oblige, recordo uns mínimos detalhes que assinalam como a questão da teoria tem sido posta entre nós.
O primeiro e inescapável é o artigo que a poeta Ana Cristina César publicou no jornal Opinião, em 17 de dezembro de 1975, sob o título “Os Professores contra a parede”. Trecho de princípio declara: “O libelo contra a ‘teoria’ não deve ser considerado no seu aspecto irracionalista mas sim como uma reação a uma forma de impor, à utilização de determinados termos e teorias em detrimento do aluno e da própria literatura” (1975, p. 20). Editado no meio da ditadura que durava desde 1964, o libelo convertia os que propunham o estudo da teoria em propagadores da ordem oficial, associando-os portanto ao regime em voga. Foi preciso que o clima ditatorial voltasse a atualmente vigorar para que o ultraconservadorismo mostrasse sua cara de sempre: associado à negação da pesquisa e da indagação séria.
O segundo dado será rápido e manifestado de modo impreciso: quem conheça o funcionamento dos nossos departamentos de letras saberá tanto que o ensino da teoria é bem parco, até porque se dirige a alunos que foram mal formados, quanto que ele tende a ser mais restringido, como uma espécie de mal que se procura coibir.
Considerando os dados evocados, posso acrescentar que a situação apresentada pelo ensaio de Nabil Araújo é bem mais promissora. Isso mesmo porque a exposição geral de minha teorização é correta, desde que dela se exclua a discordância inevitável (Para efeito de esclarecimento, poder-se-ia cogitar de um físico que, acatando “o princípio da incerteza” (1927) de Heisenberg, praticasse, de livre e espontânea vontade, a física newtoniana?). Vamos então ao que importa.
Para Nabil Araujo (NA), o que chamo de “mímesis da representação” derivaria do pensamento hegeliano. Não digo que a afirmação esteja errada, mas sim – o que NA parece subentender – que ela estaria aí formulada ou ao menos bem delineada. Antes diria que a proximidade maior se encontraria nas teorias da história derivadas e coerentes com o princípio de L. von Ranke: a escrita da história visaria destacar o passado “como foi propriamente” (“wie es eigentlich gewesen”). Muito menos é aceitável que a espécie oposta, a “mímesis da produção”, tenha sido formulada ou sequer esboçada por Bakhtin, que, conforme as traduções que dele conheço, nunca se preocupou com a mímesis.
Os nomes de Hegel e Bakhtin deveriam ser evitados em tal consideração porque os fenômenos analisados, não tendo sido tratados por eles, o leitor é levado a pensar que o tivessem sido. Mas adverti-lo ainda é bem pouco. Mais importante é entender que, conquanto a mímesis da representação caiba na concepção da mímesis como “imitação” – ou seja, de que a obra ficcional reproduz ou verbalmente reduplica o que é passível de suceder na realidade – a ela não se concede, no papel que desempenha na concepção que elaboro, um peso negativo. As duas espécies de mímesis são igualmente positivas. É a formatação da linguagem que as distingue. (Para quem não conheça as formulações que tenho feito de ambas, exemplifico: Crime e castigo, de Dostoiewski, é o protótipo da mímesis da representação, ao passo que “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, é por excelência o caso da mímesis da produção).
O parágrafo anterior visa apenas a evitar possíveis equívocos. Estes, embora afetem a construção teórica em exame, não constituem objeções sérias. Darei um passo nessa direção ao atentar para o seguinte: conforme NA, minha teoria do “controle do imaginário” e dos “gêneros discursivos” corresponderiam a tipos ideais, algo semelhante a nuvens bem-aventuradas, que haveriam de ser corrigidas para que não nos tornássemos prisioneiros de uma teoria idealista. Isso se mostra evidente em passagem que ele infere da análise que faço do romance inglês do século XVIII: “(…) Seria possível no romance ‘em si’, como gênero, e, portanto, numa estética romanesca ‘em si’, ao largo do que CL chama pejorativamente de ‘entrave institucional’ – expectativa dos ‘leitores’, intervenções editoriais, etc – o que, claramente, não se sustenta” (p. 83). Julgo que a oposição entre o “em si” e os entraves institucionais é algo impossível sequer de ser pensado. Acontece que a formulação já faz parte de nossa incontornável discordância.
Para não confundir o leitor, parto de uma angulação mais ampla. No primeiro ponto a ser destacado, sublinho a divergência. NA formula sua discrepância: “[A] forma romanesca imaculada remontaria (…) ao trabalho do romancista não submetido a nenhum tipo de ‘controle do imaginário’, isto é, a nenhum ‘entrave institucional’ que o tornasse suscetível às expectativas e às reações do público leitor ou às exigências e às intervenções editoriais sobre sua obra. No limite, isso equivale a identificar idealisticamente a essência do gênero romancesco a uma instância autoral ou enunciativa isenta de qualquer constrangimento socioinstitucional, o que, evidentemente, de um ponto de empírico, é um equívoco” (p. 84, o grifo é meu).
Em poucas palavras, eu teria escrito extensamente sobre o fenômeno do controle na expectativa de me deparar com algum romancista capaz de triunfar sobre ele. Seria algo semelhante a alguém que escrevesse sobre uma temática semelhante à do marquês de Sade para afinal afirmar a excelência da Virgem Maria.
Sem ainda me aproximar do que leva NA a semelhante entendimento, acho mais adequado ressaltar uma afirmação geral do autor sobre a teorização, que não deve passar sem destaque: “As grandes teorias do romance, diz em citação de Franco Moretti, (…) reduziram o romance a uma só forma de base (o realismo, o romance, o dialogismo, o meta-romance …” (p. 77). Embora as duas formas de mímesis mostrem que não era o meu caso, é aceitável dizer-se que não só as teorias do romance, mas as teorias em geral reduzem o objeto indagado a algo próximo de uma só forma, aquela que a própria teoria exalta. Mas, justamente por sabê-lo, reconheço que a história se impõe ao estudo das modalidades de conhecimento. Quem não sabe que mesmo as ciências declaradas exatas têm uma história? E que faz a história senão apresentar formas cognoscíveis antes ignoradas, se não desprezadas? O que vale dizer, a teorização está à beira de um abismo se seu praticante não entender que sua formulação se integra em uma história; que suas afirmações estarão pois sujeitas a ser confrontadas e contrapostas. Mesmo por isso não podia aceitar que Hegel fosse tomado como a fonte de uma espécie de mímesis e Bakhtin, de outra.
Nabil Araújo teria sido levado a procurar outro tipo de objeção se houvesse recordado a citação que fizera de A. Gehlen, no início de seu ensaio. O controle, dizia Gehlen, se impõe necessariamente ao homem porque ele é uma “criatura carente”. Gehlen apenas considerava a feição positiva do controle, ao passo que eu desenvolvo sua face negativa.
De qualquer modo, conquanto a discrepância entre o objeto exposto e o expositor se mantenha, entre um e outro há pontos de convergência. Fiz questão de acentuar os limites de uma teoria, ou seja, de assinalar que toda teoria deve estar atenta a seu posicionamento histórico, além de saber que será a própria história a responsável por sua maior ou menor durabilidade. Mas, objetivamente, por qual passo devo recusar que minha teorização escapa de um enquadramento idealista? Porque, como tenho afirmado com certa frequência, o direcionamento que tenho dado à questão da mímesis partiu do contato mantido com a “estética do efeito”, de Wolfgang Iser. Não que, como saberá o leitor de Iser, a própria ideia de mímesis, por ele proposta, sequer se aproxime da relação, que considero básica, entre semelhança e diferença. Minha dívida com Iser deriva de sua concepção do papel do leitor na própria constituição da obra. Como da própria constituição senão porque seus livros demonstram que a obra ficcional – na lírica ou em prosa – não está plenamente constituída antes de provocar um efeito no leitor? Destaco apenas a função daquilo que ele designa como “lugares vazios”, presentes na obra ficcional: “Eles designam menos a lacuna na determinação do objeto intencional, ou seja, dos aspectos esquematizados, do que a possibilidade de a representação do leitor ocupar um determinado vazio no sistema do texto” (O Ato da leitura, original de 1975, trad.de 1999) . É o suplemento trazido à obra ficcional pelo leitor – por cada leitor – que impede que ela possa ser concebida como pura e imaculada ou que a interpretação que dela se proponha seja a única.
Indago-me afinal, se o autor soube bem penetrar na exposição geral do que escrevi, por que teve de divergir tão radicalmente? Creio que, em termos fundamentais, porque NA permanece na linha de frente contra a teoria. (Ressalto que sua alegada permanência em nada se confunde com a inflacionada abundância de uma declarada “pós-autonomia”, pós apenas pelo modismo do próprio pós. Sequer assinalo o não menos lamentável relacionamento do ‘pós’ com questões de ordem elementarmente sociológica – feminismo, identidade sexual, racismo). É claro que não digo que seus argumentos sejam elementares como os que destaquei no princípio deste artigo. Suponho que não seja preciso me estender se chamo a atenção para o título mesmo de ensaio seu de 2018: “Contra a teoria do romance: do romance entre a lei do gênero e a lei do gênio”. A “lei do gênero” corresponde ao que, no ensaio mais recente, encara como “gêneros discursivos”. Já o gênio seria aquele que imporia sua própria lei à lei até então seguida. (Algo semelhante à diferença proposta por Raskólnikoff, em Crime e castigo, entre o homem comum e o extraordinário). O gênio seria aquele que a teorização não conseguiria alcançar. Em troca, ele nos descortinaria um mundo extremamente rico de novos ângulos e outras tantas arestas.
O problema está em que nunca se sabe quando estamos diante de um gênio – Raskólniff pretendeu se experimentar como um outro Napoleão; ao fracassar verificou ser apenas um vil assassino e tornar-se um galé. Não é preciso chegar a tanto; continuando aferrados à crença no imprevisível, podemos permanecer confortáveis na defesa de um cotidiano contra a inventio da teoria. Provavelmente, essa é a razão porque o teórico, entre nós, é um fenômeno rarefeito.
Rio de Janeiro, 14 de janeiro, 2022

LUIZ COSTA LIMA é professor emérito da PUC-RJ. Atua principalmente em teoria da literatura, história e crítica literária, literatura brasileira, teoria e filosofia da história, história dos discursos. Autor de mais de vinte livros, entre eles A trilogia do imaginário (2007), Frestas. A teorização em um país periférico (Contraponto / PUC-RJ, 2013), Mímesis e arredores (CRV, 2020). Seu último livro é O chão da mente: a pergunta pela ficção (EdUNESP, 2021).
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