Pontos de leitura. Moritz: a linguagem da arte – Luiz Costa Lima

Neste Pontos de Leitura, Luiz Costa Lima resenha o livro “Ensaios de Karl Philipp Moritz: Linguagem, Arte, Filosofia” (Edusp, 2022), organizado e introduzido por José Feres Sabino. A partir de seus aportes sobre o conceito de mímesis e em forte diálogo com o organizador do livro, Costa Lima foca sua atenção sobre os textos de Moritz em torno da “linguagem da arte”, a fim de refletir sobre em que sua obra pode ter inovado conceitualmente em relação à Crítica da Faculdade de Julgar de Kant.

Desejo uma excelente leitura e, talvez também, um ótimo achado.

A.M.
Pontos de Leitura, 20 de fevereiro de 2023


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Moritz:
a linguagem da arte

Resenha de:
Ensaios de Karl Philipp Moritz: Linguagem, Arte, Filosofia
(org. José Feres Sabino).
São Paulo: Edusp, 2022.

Ignoro se houve um pensador com uma vida mais curta que Karl Philipp Moritz. Nascido em Hanover, em setembro de 1756, morreu pouco antes de completar 37 anos, em julho de 1793, na cidade de Berlim. Dentro deste curto lapso de tempo, sua produção intelectual se realizou entre 1783 e 1793. Isso não o impediu de ser um polígrafo, sendo autor de um diário de viagem à Itália, quando conheceu Goethe e se tornou seu amigo, de um romance afamado, o Anton Reiser, de textos de psicologia, de filosofia, de comentários sobre arte e teatro, etc. Mas o que nos interessa é a filosofia da linguagem, voltada sobretudo para a questão da arte.

Ainda nestas preliminares, há de se destacar que pelo país e as décadas em que produziu era pouco provável que não mantivesse alguma relação com a terceira Crítica kantiana [A crítica da faculdade de julgar], editada em 1790. Como entretanto observa José Feres Sabino, a quem devemos sua presença em Português, em sua Introdução a Linguagem, arte, filosofia (2022), suas proximidades com a concepção kantiana da arte apresenta distinções, que serão aqui comentadas. Tal reflexão sobre a linguagem é tão relevante para a história da concepção da arte que optamos em substituir o título da coletânea resenhada; razão extra, as passagens sobre filosofia, constitutivas da terceira parte da coletânea, são de destaque menor, com exceção de uma passagem sobre a mística, de que se diz ser “uma metafísica sem física”, sem que a pregnância da afirmação seja desenvolvida.

A relevância da linguagem da arte em Moritz começa a ser apontada historicamente: até a segunda metade do século XVIII, a arte era relacionada com a ideia – daí o papel saliente da arte quanto ao catolicismo –, quando então passa a ser relacionada à ordenação da experiência humana. Sem que a pusesse nestes termos, a abordagem kantiana era por certo sem igual, o que não impede que a diferença de Moritz apresentará vantagens. Antes de fazê-lo, vejamos como Moritz conduz a linguagem à sua máxima função. Para tanto, seguiremos a rota já traçada por José Feres Sabino. A linguagem é comparada a um novelo. Feres a ilustra pela recorrência ao mito de Teseu. Ariadne habilita o herói a penetrar no mito em que matará Minotauro de posse de um novelo de lã, que irá desenrolando enquanto se conduzia pelo labirinto da caverna. É acompanhando seu desenrolar que Teseu descobrirá a saída e, igualmente, salvará os atenienses aprisionados pelo monstruoso gigante. A comparação é perfeita. A linguagem-novelo, ao se estender, capacita o homem a converter o caos da vida em um trajeto de alguma segurança. Menos decisiva, conquanto também relevante, é a caracterização da linguagem como imagem. A linguagem é um plural de imagens, em que certa classe de palavras, os substantivos, o são plenamente, e outras, como os adjetivos e os advérbios, auxiliares de imagens. O leitor encontrará, nos quatro textos escritos entre 1780 e 1786, uma rede mais completa de considerações. Elas serão aqui abreviadas para nos dedicarmos à parte principal que a coletânea resenhada apresenta em português. Refiro-me à parte dedicada à arte. 

Parto da afirmação de José Feres Sabino: “Se a linguagem já não é compreendida como mero suporte de representações, e sim como força de formação (Bildungskraft), o estatuto da arte será alterado”. A partir daqui a presença do presente resenhista estará mais acentuada porque Moritz estará tratando direta ou indiretamente do topos a que, desde 1980, tenho dedicado meu maior esforço intelectual: a revisão da questão da mimesis. Começo por remeter, como já o fez Feres Sabino, ao Ernst Cassirer, da Filosofia da ilustração (1932). É na contemporaneidade de Moritz – e não só nele – que a estética clássica perde sua força. As duas direções da estética clássica foram a racionalista, cuja concentração na razão encontrava na lógica o sémen da obra de arte, e a empírica, que, tendo por base o sujeito da obra, privilegiava a psicologia. Principiamos a estar à beira da discussão básica a que a arte será sujeita ao lembrar com Feres Sabino que a posição assumida por Moritz opunha-se frontalmente ao que Charles Batteux, em As Belas-artes reduzidas a um mesmo princípio (1746), sustentava: as artes têm por princípio o imitativo (da natureza). Será preciso recordar que o privilégio da imitatio fora mantido por séculos – lembre-se apenas a multiplicidade de teóricos que o sustentaram durante o Renascimento. Contra esta ampla tradição, o jovem pensador irá propor, em ensaio de 1785, o conceito do “perfeito e acabado em si” (in sich selbst Vollendeten). Por séculos, entendido como imitação da natureza, a obra de arte, a partir de Hegel, será entendida como imitação da sociedade – e, enquanto tal, não será estranho encontrá-la assim compreendida até os dias de hoje. Para considerar-se a atração exercida pela imitatio, recorde-se que as próprias restrições da Poética aristotélica às ideias platônicas foram com frequência esquecidas ou sequer entendidas. Com Moritz – evidentemente, assim sucederá com mais vigor em 1790, com a Crítica da faculdade de julgar kantiana – a imitação terá sua primazia contestada. 

Como não caberia aqui traçar uma comparação entre os dois pensadores, vejamos como Moritz argumenta. Seu procedimento consiste em, de início, diferenciar o belo supremo e o belo propriamente humano. Ao passo que o belo humano fundar-se-ia na proximidade com o amor, o supremo exprime-se apenas, como dirá em A Linha metafísica da beleza (1796), na natureza e “se apresenta apenas aos olhos de Deus”. A recorrência ao título do ensaio importa porque o termo “metafísica” mostra a permanência da filosofia clássica sobre o autor, no qual não só pesa a armação piramidal do mundo – o físico e o metafísico – bem como sua concepção religiosa, explicitada no primeiro ensaio da coletânea, A Festa da criação (1780).

Mesmo porque o belo absoluto não seja experimentável pelo homem, faz-se urgente entender a maneira como o humano se perfaz. O primeiro traço que o diferencia será decisivo para assinalar a posição que Moritz assumirá na história das concepções da arte. Refiro-me à sua indissolubilidade com o amor. Declarar que o belo ocupa uma posição una com o amor implica tanto ter do amor uma concepção potencial e sublimada, senão mesmo efetivamente religiosa, quanto – e é aqui o que mais importa – supor que a obra de arte assume um caráter de necessária harmonia. Ambas as afirmações supõem que Moritz não cogitava no amor enquanto experiência erótica. Se até a maturidade intelectual de Freud ainda se passaria algumas tantas décadas, este interregno será decisivo para o rompimento da indissolubilidade da arte com o amor. Mas assim feita a afirmação daria vez ao mal-entendido de compreender-se que as linhas de pensamento se confundem com a diversidade de seus agentes, no caso Moritz e Freud. O mal-entendido há de ser desfeito: entre as décadas finais do século XVIII e o começo do século XX, quando aparecem as primeiras formulações psicanalíticas, a sociedade ocidental se modifica por completo, não só pelo processo de industrialização como pela redução progressiva da escala de valores que a regiam no domínio cada vez mais acentuado da mais-valia. Um e outro secundarizam o domínio do religioso. Embora não possamos nos deter no processo, o fato inconteste é que, entre o conceito “do perfeito e acabado em si” e a produção artística que se acentuará com Baudelaire, parece ter ocorrido uma revolução. Lembremo-nos que, entre 1840 e 1867, Baudelaire escrevia os poemas que comporão Les Fleurs du mal. Não teria sentido perguntar-se por sua sequer longínqua contiguidade com a concepção com “imitação formante do belo”. A distância entre as duas experiências significa que, afastando-se por certo daquela à la Batteux, Moritz assumia uma forma moderada. Procuro fazê-la melhor entendida. É função do artista, diz o pensador alemão, “trazer a finalidade que, na natureza, está sempre fora do objeto, de volta para o próprio objeto, e torná-lo, assim, perfeito e acabado em si mesmo” (A linha metafísica da beleza, 1796).

Como bem apontou José Feres Sabino, em sua Introdução, desta maneira a arte retira o homem do espaço da utilidade. Afirmá-lo pareceria identificar Moritz com a afirmação de Kant sobre o caráter de não útil da arte. A função da aproximação é mostrá-la insuficiente. Em Sobre a imitação formante do belo (1788), Moritz escrevia: “Uma coisa não se torna bela porque não é útil, e sim porque não parecia ser útil”. E ainda: a bela imitação se diferencia da imitação moral porquanto “de acordo com sua natureza, ela não precisa se esforçar, como essa, para formar em si – mas a partir de si”. Conquanto as alternativas aludidas – imitação moral versus bela imitação, moral que se forma dentro de si versus imitação que se constitui a partir de si, a bela imitação – claramente dependam do critério da imitatio esmaecida, não se poderia declarar que a posição intermédia que Moritz concedia à beleza entre o útil e o inútil era descartável. Muito ao contrário, dever-se-á considerar que a afirmação da inutilidade da experiência da arte é válida apenas se tivermos em conta que o útil e o inútil são absolutos, sem admitir situações intermediárias. Isso aqui vale a dizer que a superioridade indagativa de Kant é incontestável apenas se não levarmos em conta a existência de estágios intermédios. Considerá-los, ao contrário, supõe a validade da correção de Moritz.

Em suma, procuramos mostrar que os estudos de Karl Philipp Moritz sobre a arte não recusam terminante e completamente a imitatio, mas sim fazem-na recuar a uma posição mediana. Só uma pesquisa que eu próprio não farei poderá nos dizer qual o seu reconhecimento nas histórias da concepção de arte. Noto apenas que seu nome sequer aparece na edição de 1974 do Kindlers Literatur Lexikon e recebe uma referência quase apenas nominal no tópico referente a viagens do Europäische Aufklärung III, organizado por Jürgen V. Stackelberg para a série Neues Handbuch der Literatur Wissenschaft (1980). 

Ressalto ainda que a renúncia à posição de Moritz resultará da completa modificação da experiência da arte. Ela assume tamanha profundidade que o próprio uso da expressão “belas-artes” passa a provocar um certo mal-estar, diante da tradição pós-Baudelaire ou, digamos, da pintura abstrata. A ideia de beleza esteve ligada ao direcionamento com algo externo à obra – fosse a natureza, fosse, a partir do século XIX, a sociedade. A seu desligamento correspondeu a necessidade de fundamentar-se outro termo como capital. De minha parte, tenho proposto como raiz da arte não a experiência do belo mas sim o ficcional, cuja indagação só alcançaria o relevo devido a partir de 1970, com destaque para a obra de Wolfgang Iser. A ficcionalidade na arte renuncia por completo quer à exigência de beleza, quer à subordinação ao imitativo. Mas desenvolver esse aspecto nos levaria a sair do tema desta resenha e a entrar numa lenta e longa indagação que temos desenvolvimento desde 1980, com o livro Mimesis e modernidade. A partir dele, destacaria O Insistente inacabado (2018), Limite (2019) e O Chão da mente (2019), que têm em comum o fato da arte não repetir o que se deu antes dela, na natureza ou na sociedade.

Rio de Janeiro, fevereiro 11, 2023


LUIZ COSTA LIMA é professor emérito da PUC-RJ. Atua principalmente em teoria da literatura, história e crítica literária, literatura brasileira, teoria e filosofia da história, história dos discursos. Autor de mais de vinte livros, entre eles A trilogia do imaginário (2007), Frestas. A teorização em um país periférico (Contraponto / PUC-RJ, 2013), Mímesis e arredores (CRV, 2020). Seu último livro é O chão da mente: a pergunta pela ficção (EdUNESP, 2021).


Outras atividades de Luiz Costa Lima

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