Fios do Tempo. Epifanias liminares: Perdão, compreensão e anagnórisis – por Gabriel Restrepo

Nada mais gratificante que, em uma conversa intelectual entre amigos, mais um amigo chegue para se sentar à mesa e continue o assunto trazendo sua luz. É o que faz hoje Gabriel Restrepo, citado por mim no texto “Breves considerações sobre o perdão”. Nestas epifanias liminares entre os tempos que nos passam, Restrepo traz suas reflexões sobre reconhecimento, perdão e anagnórisis em 12 parágrafos.

Receba, caro leitor, com um dom de reveillon. Um excelente ano de 2023 a todos.

André Magnelli
Fios do Tempo, 01 de janeiro de 2023

Para acompanhar a conversa como um todo, leia também:

–  “Breves considerações sobre o perdão”, de André Magnelli;

– “Perdão e aliança pelo justo comum”, de Paulo Henrique Martins.


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


Epifanias liminares:
Perdão, compreensão e anagnorisis

Gabriel Restrepo, escritor e sociólogo

Quinta Miraflores, Vereda Altos de Colombia, primeiro andar,
Inspetoria de Polícia de Santandercito, no município de San Antonio del Tequendama
.

1. Sou grato aos meus caros amigos André Magnelli e Paulo Henrique Martins por esta oportunidade de meditar no final do ano sobre o perdão como o dom restaurador da espécie que vive errando (no erro e na errância). Não posso fazer uma glosa das meditações de vocês, mas vocês notarão seus vestígios nessas epifanias dedicadas a falar da horizontalidade circular do verbo perdoar, através de sua ligação com a compreensão e a compaixão, substantivos recíprocos, e a necessária reflexividade de sua conjugação devido à exigência de perdoar a si mesmo ao perdoar a outrem. 

2. Volto à passagem de São João sobre a mulher adúltera, passagem que abre o caminho para a paixão de Cristo (São João: 8, 2-11). Ela é luminosa como parábola de uma sagrada performance. Depois de Diógenes, o Cínico, Cristo foi o maior paradigma de tal modalidade de teatro vivo. O sentido dessa encenação viva é compreendida na citação dupla de Oséias de São Mateus: “Desejo misericórdia, não sacrifício” (Oséias 6,6-7, Mateus 9,10-13, Mateus 12,1-8). Misericórdia é compaixão (cum patior em latim, Mitleid em alemão): um coração que vibra com a dor alheia ao tomá-la como própria por profunda empatia. 

3. Diz-se que Cristo não escreveu. Mas ele certamente escreveu no gesto de curvar-se duas vezes sobre a terra. É inútil perguntar-se o que ele escreveu com o dedo naquela ardósia natural. Pois a resposta é óbvia: ele escreveu sobre a terra. E se alguém insiste em perguntar sobre o conteúdo, a resposta é assombrosa: ele mesmo escreveu e se inscreveu na terra. Suprema lição da caridade com a face da misericórdia. Seria possível associar essa lição magistral ao Deus sive natura de Spinoza. Pois, se se evita os dogmas, encontram-se passagens universais em qualquer modalidade de espiritualidade. Pois o espírito carece de notações. Por exemplo, na convergência entre a compaixão budista e a misericórdia hebraica, católica, maometana e cristã.

4. Neste curvar-se duas vezes ao húmus, exaltando o perdão no silêncio, antes de poli-lo com a palavra, subjaz, em minha opinião, a potência do verbo cunhado por Lutero e central em Hegel e em Marx, mas que através da passagem do Evangelho adquire um significado mais profundo: levantar (heben) a partir debaixo (auf), aufheben: dir-se-ia que é algo mais do que superar conservando e ainda mais do que conservar superando, pois sugere o imperativo de que todo pensamento deve retornar à raiz. É como se expressa na metáfora da semeadura: retornar à humilde semente e, através dela, de novo à terra ou à própria vida. Não se configura aí a potência desse neologismo que Jean Wahl, citado por Sartre em seu ensaio sobre Baudelaire, chamou de trans-descendência? Uma dialética não linear, pois paradoxal: subir por descer, descer por subir: um carnaval requintado através do jogo de contrários. Como que para a alegria de Bruno Latour e até mesmo de Nietzsche, Dionísio, o crucificado, como proclamado naquela estertorosa assinatura no final do Ecce Homo, já mergulhou de cabeça na loucura.

5. É que uma dialética paradoxal não se destina a resolver contradições fugindo para um terceiro plano. Como a dialética irônica do grande Nicolau de Cusa, os contrários permanecem ressoando no mesmo acorde sem salvação possível. Humildade do saber, a dialética paradoxal se baseia no amor pela figura dos oxímoros em todas as modalidades de poesia mística. Exalta a dúvida. Não se espanta com a incerteza. Não teme a ambiguidade. Não salta para a fuga como o cavalo no xadrez em busca de um terceiro conceito desenhado para o sossego, ou para a busca do absoluto. Foi o grande sucesso de Kant ao condensar o contraste entre Hobbes e Rousseau, graças à decifração do trágico e do sublime presente na condição da espécie humanóide no eterno balanço do pêndulo de dois opostos: Gessellige Ungesselligkeit, a insociável sociabilidade de cada um. E, do mesmo modo, sua coragem de manter as antinomias da razão pura como irresolúveis. Se tivesse respeitado essa contenção na metafísica, Thomas Mann e a espécie carniceira teriam sido poupados na Montanha Mágica da dialética sofística entre Nafta, personificação do jesuíta obtuso medieval, e Settembrini, encarnação do radical, ambos cegos em decorrência da busca pela quimera. Teria sido dito com James Joyce que o mundo moderno é a conjunção cômica e absurda da taradição e da demoncracia, a bizarra junção entre as taras medievais e a loucura dos demônios da praça democrática.

6. No episódio da mulher adúltera, Cristo encarnou a perene lição de sabedoria, que consiste em confiar numa cosmovisão homeopática: similia similibus curantur. O semelhante cuida do e cura o semelhante: por amor à vida, por simpatia, compaixão e misericórdia, a vida cuida da vida, partindo da premissa dessa causalidade reversível e paradoxal, porque não linear, da origem indo-europeia da palavra cuidado, care, em seu significado original de soluço, como lembra André Magnelli e está registrado em um ensaio antigo que enviei a Paulo e que ele publicou. Como há soluços, o efeito, suscita-se então o cuidado, a causa, como agência ativa para que haja ou não haja soluços. É uma cosmovisão homeopática porque se baseia no princípio tão enfatizado por aquela Joana d’Arc do pensamento francês contemporâneo, Simone Weil: a premissa da aceitação da existência do vazio, portanto, oposta à negação do vazio proclamada por Aristóteles no quarto capítulo da Física. Não foi por acaso que o grande Pascal abriu o portal do Eros ao abismar os seus pensamentos na imensidão do vazio. E não foi por acaso que Simone Weil, como Jean Wahl, trouxe involuntariamente a filosofia para o nível da física quântica.

7. Silêncio e vazio, um vazio imensurável, são as atmosferas suscitadas pela passagem da mulher adúltera. Aquele que está livre do pecado que atire a primeira pedra. Ninguém mais do que Cristo e a mulher se curvam ao chão. Falta humildade aos perpetradores. A soberba os enche de malícia. Mas Cristo desarmou no momento a união da arrogância com a inveja e a ira. Tão logo eles apanharão o bode expiatório porque a espécie assassina não se contenta com a expiação simbólica, ela é sacrílega porque precisa de carne e vítima.

8. Numa cosmovisão alopática haverá sempre limites intransponíveis para a possibilidade de perdão. A justiça como forma jurídica parece pressupor o imperativo de um Leviatã. Alguém investido com poder, absoluto ou mesmo limitado por muitos controles, encarnará o sinal daquela lei abstrata tão ridicularizada e temida por Kafka, exposta ao ponto de zombaria por sua arbitrariedade em sua história Antes da lei [Vor dem Gesetz, de 1915]. E isso acontecerá, forçosamente, mesmo que essa justiça seja investida de um manto de benevolência, como tenderá a acontecer depois que a Colônia Penitenciária se tornou obsoleta, aquela que rompe o dever com o sangue, segundo outra famosa história de Kafka; tampouco advirá mesmo que seja modulada como restauradora e reparadora, quando se destrona o saber de sua aura divina. O sujeito julgado tenderá a se encontrar diante da Justiça como diante do leito de Procusto: se é longo, é encolhido à força, se é curto, é esticado até o ponto de deslocamento. É porque a justiça depende da ética, e esse foi o grande perigo de Hegel e de Marx ao pensá-la como um atributo ou, pior ainda, como uma encarnação do Estado. A cosmovisão alopática, contraria contrariis curantur, o contrário cura os opostos, atinge um limite quando chega no excesso de Carl Schmitt quando ele define a soberania em função da oposição insolúvel entre amigos e inimigos; ou ainda quando leva à modernização de certos populismos que em nome do povo transformam adversários em inimigos; ou mesmo quando conduz às restrições implícitas no pensamento do exercício do poder como uma luta pelas hegemonias. Porque o poder é o poder, uma triste e trágica tautologia.

9. Perdoar é um verbo que exige conjugação plural com o uso de todos os pronomes singulares e plurais e, além disso, o recurso à forma passiva que parte da necessidade de ser perdoado, também com uma humilde premissa: admitir que é preciso perdoar a si mesmo e a outrem repetidas vezes como uma profilaxia de vida sábia, porque mesmo que não seja culpado de danos graves a outros, o maior dos quais sendo a morte, ou quando se é culpado de danos a si mesmo, como tantas vezes acontece, é sempre necessário admitir gradações sutis nas modalidades de danos a outros, ou a si mesmo, como o aborrecimento, a indiferença, o engano, a cegueira, o raiva, o desejo narcisista, mesmo a preguiça, o preconceito, o desdém, a lascívia, a indolência, o egoísmo, pois sempre haverá fricções que, mesmo que não letais, são hostis aos outros por causa dessa condição apontada por Kant: nossa insociável sociabilidade.

10. Assim, o anerkennen [reconhecer] hegeliano ou marxista por alopatia atinge um limite como o atual, onde a multiplicação das reivindicações de tantas vítimas se assemelha à agitação de um bazar, no qual é impossível encontrar uma taxa de câmbio para pesar e comparar as diferentes dores e sofrimentos que se revelam tão incomensuráveis e sem possibilidade de troca, assim como as faltas daqueles que as causaram, pequenas, médias ou graves. Se eu gritasse que minha dor é maior que a de todos os outros, meus ouvidos seriam dilacerados pelos uivos de bilhões de seres que afirmariam com razão que sua dor, por menor que pareça, é mais mortífera que qualquer outra, assim como a culpa daqueles que a causaram é maior. Quanto pesa a dor de um banqueiro em uma noite de solidão sombria e a de um pobre? Não há balanças para pesar o díspar. 

11. Impõe-se, portanto, apoiar as ideias de perdão e de justiça numa ética que parta de uma cosmovisão homeopática, encarnada por Cristo, uma ética rés-do-chão, comunitária e, portanto, circular, humilde, experimental, benevolente, assídua em sua reflexividade, conduzida cuidadosamente com a criança, aprendendo com ela, tornando-a um exercício contínuo nas salas de aula das mais jovens e mais velhas, referindo-se tanto à natureza como à sociedade, para além da cidadania política, sempre apoiada pela psicagogia e pela parresia.

12. Seus pontos de partida não podem ser outros que a anagnorisis, a compaixão ou comiseração, e o Eros sublimado como caridade e ágape. Ao contrário da annerkennen, que procede desde dentro ao campo de marte ou ao seu substituto, como o fórum político, anagnorisis procede de fora para dentro através da comoção diante do sublime da tragédia natural ou social, essa certeza da finitude, do vazio e da angústia que nos sobrepuja a todos, ricos ou pobres. “Pretender conhecer os outros é pretender conhecer a si mesmo”, exclamou Hamlet pouco antes da resolução trágica. Muito mais árduo é pretender reconhecer a si mesmo, uma tarefa ineludível se se quer reconhecer os outros para transformar os ressentimentos em re/co/nascimentos, um neologismo plausível se lemos a palavra francesa em dois sentidos: re-con-naissance, reconhecimento é renascimento!

Tradução de André Magnelli

Bogotá, 1946. Sociólogo y profesor asociado de la Universidad Nacional, ya pensionado. En la actualidad es el vicepresidente ad honorem del recién creado Instituto Alter Forum de Estudios del Sahara, Al Andalous. Ha publicado más de 40 libros y de 140 ensayos en ciencias sociales y letras. Es el autor de una Teoría Dramática y Tramática de las Sociedades  que viene desarrollando desde hace muchos decenios. Cuenta con doce libros de poesía. Lleva diarios desde el año 1963. Correo electrónico: garestre@gmail.com.


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