No contexto de publicação pelo Ateliê de Humanidades Editorial de “A contrademocracia: a política na era da desconfiança” (2022), trazemos agora no Fios do Tempo a apresentação do tradutor Diogo Cunha, que expõe as teses do livro à luz da obra de Pierre Rosanvallon e dos acontecimentos políticos dos últimos anos no Brasil.
“A Contrademocracia” é o primeiro volume da “tetralogia das mutações da democracia contemporânea”, que estamos publicando pelo Ateliê de Humanidades Editorial.
Convidamos todos a conhecerem, adquirirem e difundirem “A contrademocracia” e a tetralogia de Rosanvallon, assim como o livro “O século do populismo”, que foi publicado por nós em 2021. Deste modo, você ajuda a financiar um projeto fundamental para a reconstrução do debate público e das práticas democráticas em nosso país.
Fios do Tempo, 31 de agosto de 2022
André Magnelli
Complicar a democracia:
vigiar, impedir, julgar
Diogo Cunha
A contrademocracia é o primeiro volume de uma tetralogia que forma uma das teorias democráticas mais densas e instigantes produzidas no século XXI. Essa “teoria da indeterminação democrática”, como seu autor, Pierre Rosanvallon, prefere chamá-la, é formada ainda por A legitimidade democrática, A sociedade dos iguais e O bom governo.Ainda fora do radar de boa parte da ciência política brasileira, os quatro volumes da tetralogia rosanvalloniana chegam agora ao público brasileiro graças à notável iniciativa do Ateliê de Humanidades Editorial. Espera-se, assim, que a obra de Rosanvallon ultrapasse os pequenos círculos dos teóricos políticos francófonos e contribua para ampliar a compreensão da democracia contemporânea e de suas mutações.
Se comecei mencionando a preferência de Rosanvallon pelo termo “indeterminação” para definir a sua própria teoria, é imprescindível, portanto, tentar elucidá-lo. A noção tem em Rosanvallon um sentido diferente daqueles atribuídos por dois outros grandes autores do século XX: seu conterrâneo Claude Lefort, com quem ele manteve uma estreita relação de amizade; e o grande jurista austríaco Hans Kelsen. Ao passo que para o primeiro a indeterminação remete à ideia do poder como lugar vazio e não apropriável, para o segundo ela faz referência a um ceticismo filosófico e a um regime que repulsa o absoluto. Para Rosanvallon, a indeterminação está ligada ao fato de o objeto e os procedimentos da democracia serem estruturalmente ligados a tensões (que ele também chama de aporias). Ele identifica quatro dessas tensões, sistematizadas em seu trabalho O século do populismo[1]: entre povo-corpo cívico e povo-corpo social; entre democracia direta e representativa; entre a impessoalidade da lei e a personalização do poder; e entre regime político e forma de sociedade. Dimensões estruturantes que estão na origem dos desencantos e dos inacabamentos da democracia e que, desde o século XIX, levaram elites políticas e intelectuais a buscar realizá-la por meio da simplificação das próprias aporias.
A busca por uma “estabilidade” da democracia – ou seja, de concepções desse regime que lhe suprimissem a indeterminação – levou Rosanvallon a propor uma tipologia do que chama de democracia limite, formas que exacerbam de maneira problemática algumas de suas características em detrimentos de outras, ao risco de provocar uma reviravolta da democracia contra si mesma. Há, para ele, três formas de democracia limite, cada uma apresentando uma forma de degradação: a minimalista, a essencialista e a polarizada. A primeira resulta do medo da multidão e simplifica a democracia, reduzindo-a ao estabelecimento de procedimento de escolha de governantes; sua forma degradada é uma espécie de oligarquia democrática. A segunda forma de democracia limite se funda na utopia de uma ordem social comunitária e homogênea, marcada pela eliminação do conflito e das divisões – ou seja, pela tripla extinção do político, do econômico e do psicológico; sua forma de degradação foi representada pelas experiências totalitárias do século XX. A terceira, enfim, é a democracia polarizada à qual pertencem os populismos contemporâneos. Nesse caso, a simplificação democrática é resultado de um imperativo de representação através da identificação a um líder; do exercício da soberania através do uso do referendo e a expressão do povo através de uma face-a-face sem intermediários com o poder, além de ser portadora de uma visão moralista da sociedade reduzida a uma dicotomia elementar entre “povo puro” e “elite corrupta”. Sua forma degradada é chamada por Rosanvallon de “democratura” – um regime fundamentalmente iliberal conservando alguns mecanismos da democracia (com a possibilidade, naturalmente, de derivar para um autoritarismo tout court).
A teoria da indeterminação democrática rosanvalloniana escruta analiticamente a complexidade desse regime/forma de sociedade, sem deixar de propor soluções para os seus problemas mais prementes. Antípoda de uma tradição que vai de Joseph Schumpeter a Adam Przeworski, passando por Anthony Downs, Robert Dahl e Norberto Bobbio, Rosanvallon busca, num esforço ao mesmo tempo intelectual e político, complicar a democracia.
A ideia de indeterminação democrática, assim como de suas tensões estruturantes, são fundamentalmente pontos de partida incontornáveis para se entender as mutações da democracia contemporânea, e particularmente o que Rosanvallon chama de contrademocracia. Como mencionei acima, a indeterminação democrática e suas tensões estruturantes geraram um desencanto que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não é recente. E Rosanvallon identifica dois modos a partir dos quais os cidadãos, desde o final do século XVIII, procuraram aprimorar as formas de participação e de controle do poder e assim remediar o risco de contestação à democracia: o aperfeiçoamento das instituições eleitorais-representativas; e, segundo suas próprias palavras, o estabelecimento de todo um “emaranhado de práticas, de pôr à prova, de contrapoderes sociais informais, mas igualmente de instituições, destinadas a compensar a erosão da confiança através da organização da desconfiança” (p. 24).
Rosanvallon argumenta convincentemente que não é possível pensar a democracia e retraçar a sua história sem apreender esse universo da desconfiança. Se algumas de suas manifestações pontuais foram estudadas – resistências e reações às ações do poder, formas de desinteresse cívico ou de rejeição do sistema político etc. –, o que não foi feito e que Rosanvallon elabora magistralmente nesse livro é restituí-las e integrá-las como um sistema.
Historicamente, a expressão social da desconfiança tomou duas vias: a liberal e a democrática. A liberal se refere à suspeita com relação aos poderes e possíveis abusos de quem os exercem. A desconfiança democrática, objeto precípuo de A contrademocracia, faz referência às múltiplas formas de controle passíveis de serem empregadas para que os eleitos permaneçam fiéis a seus engajamentos: a vigilância, o impedimento e os julgamentos. São justamente os contrapoderes que desenham os contornos do que Rosanvallon chama de contrademocracia: não o contrário da (ou posicionar-se contra a) democracia, mas a sua “segunda dimensão” – a outra forma, permanente, que complementa a primeira dimensão, mais conhecida e mais intermitente das instituições eleitorais-representativas.
A dimensão primordial da contrademocracia é, portanto, a vigilância, que se desdobra em grandes práticas: a observação, a denúncia e a notação, examinadas por Rosanvallon desde a Revolução Francesa até os dias atuais, a partir da identificação de seus diferentes atores: cidadãos, movimentos sociais, imprensa, autoridades independentes, instâncias de auditoria e avaliação, agências de notação ou de observação. A vigilância se configura assim como um desdobramento do poder periódico de eleição, resultante de uma aspiração em prolongar seus efeitos pela ação de um controle mais permanente.
Eis a hipótese: na medida em que o laço eleitoral entre o representante e o representado sempre pareceu frágil, buscou-se através vigilância, ainda que de forma indireta e difusa, rematar a democracia. Essa dualidade entre democracia e vigilância, aliás, já existia durante a Revolução Francesa quando se consolidou a ideia de um povo-vigia permanentemente ativo contra os seus disfuncionamentos institucionais. Até o Terror, quando a prática da vigilância caiu em desgraça. As ações de controle, contudo, permaneceram. A sociedade civil nunca deixou de exercê-las, enriquecendo-as e diversificando-as.
Para além das formas de vigilância, a desconfiança que estrutura a contrademocracia mobiliza os poderes de sanção e impedimento. Na medida em que os cidadãos possam se sentir pouco capazes de conduzir ações e tomar decisões, vai se fortalecendo a ideia de eficácia das sanções. É o que Rosanvallon chama de “soberania social negativa” – ou “soberania crítica”. Note-se, como lembrou o autor, que no impedimento – ou veto, para utilizar uma expressão mais corrente na ciência política – a vontade se realiza completamente, na medida em que ela é polarizada por uma decisão unívoca e clara que esgota o conteúdo de uma ação. Já o mandato ou a simples autorização, por outro lado, não possui tal qualidade. Neste último caso, a questão da realização da vontade permanece aberta, pois o futuro é incerto e as ações daquele que recebeu o mandato seguem indeterminadas.
Pode-se notar ainda, quanto aos impedimentos, numa perspectiva sociológica, a maior viabilidade de organizar coalizões – ou agrupamentos – negativos, que nem precisam ser coerentes, já que as contradições se acomodam melhor no momento de impedir que algo se realize. Ademais, a intensidade das reações exerce um papel essencial. Rosanvallon escreve: “uma nova democracia da rejeição se sobrepôs à original democracia de projeto. Impôs-se nesse modo a soberania do povo-veto. O governo democrático não é mais apenas definido por um procedimento de autorização e de legitimação. Ele se torna essencialmente estruturado pela confrontação permanente a diferentes categorias de veto que provêm de grupos sociais, de forças políticas ou econômicas” (p. 35).
Convém ainda não perder de vista que a soberania crítica remete à dualidade entre poder e oposição e que essa dualidade se manifestou ao longo de mais de um século, sobretudo mediante a luta de classes e em seguida pelo reconhecimento crescente do próprio papel de uma oposição parlamentar. Mas tal resistência também se manifestou historicamente através das figuras do rebelde – personificado por Wilkes na Inglaterra do século XVIII; Thoreau e Emerson nos Estados Unidos do século XIX; Blanqui, na França –, do resistente personificado por Albert Camus; e do dissidente personificado por Alexander Soljenítsin.
A ascensão de um “povo-juiz” é a terceira e última dimensão da contrademocracia, e cujo vetor mais visível é a judicialização da política. Rosanvallon revisita os processos políticos em Atenas, o impeachment na Inglaterra do século XVII e o recall nos Estados Unidos. A ascensão do papel de juízes, tribunais e cortes constitucionais se inserem num contexto de falta de reatividade dos políticos. Recorre-se assim ao judiciário para se obter dos governantes a prestação de contas de suas ações – o princípio de accountability – e mais capacidade de responder às demandas da sociedade – o princípio de responsiveness. A leitura de A contrademocracia reforça o papel da ação de julgar para compreender a complexidade da relação entre democracia e contrademocracia. Julgar faz parte de uma gramática geral da atividade democrática. Não se trata de uma oposição simplificadora entre lei e política, mas a importância de compreender os tipos de coordenação que regem a relação entre duas formas igualmente políticas, e de restituí-las ao conjunto do universo contrademocrático. Segundo Rosanvallon, “a real especificidade dos poderes de julgamento reside mais no diálogo que eles pedem, e que eles estabelecem à sua maneira, para regular a pólis, entre o universo contrademocrático de vigilância e de impedimento e o da esfera eleitoral-representativa” (p. 264). De modo que, embora cristalizada na ação dos juizes, há uma dimensão política do julgamento, que vai além do quadro estritamente jurídico e que não se pode perder de vista. Esse “poder do julgamento” se estabeleceu nas democracias e é exercido por diversos atores – mais ou menos institucionalizados – que Rosanvallon identifica e sistematiza, determinando, inclusive, a periodicidade das “sessões” e os tipos de sanção. Esses atores são as altas cortes de justiça, os tribunais penais, os “tribunais de experts”, o “tribunal da opinião pública”, o “tribunal da oposição”, o “corpo eleitoral”. As sanções, por sua vez, vão do impeachment à não renovação do mandato, passando por prisões, multas, períodos de inelegibilidade, degradação da reputação e variação das relações de força.
Para cada dimensão da contrademocracia, Rosanvallon revela uma outra perspectiva da democracia que acabou se impondo sobre aquela mais visível e que foi frequentemente ignorada por especialistas e pelo senso comum. No caso da vigilância, ao primeiro pilar representado pela democracia eleitoral-representativa, se juntou e se sobrepôs o segundo pilar representado pela “democracia de vigilância”; no caso do impedimento, à original “democracia de projeto” se juntou e se sobrepôs uma “democracia de rejeição”; finalmente, no caso do julgamento, a uma “democracia de confronto” se juntou e se sobrepôs uma “democracia de imputação”. Eis, portanto, as formas desse regime em sua dimensão contrademocrática: a democracia contemporânea, eleitoral-representativa, de projeto e de confronto, se revelou também uma democracia de vigilância, de rejeição e de imputação.
Ressalta-se que a última parte da obra é dedicada à discussão de um problema crucial da contemporaneidade: o do “impolítico” [impolitique]. Para Rosanvallon, o aumento das práticas contrademocráticas nos últimos anos é a prova de que não há uma “despolitização” ou uma “passividade” do cidadão. A questão fundamental que deve ser colocada é se, de alguma forma, a contrademocracia pode se voltar contra a própria democracia. A resposta é positiva e no nosso entendimento o Brasil oferece uma ilustração perfeita. Nesse sentido, A Contrademocracia é um livro particularmente útil para analisar e compreender o processo político brasileiro pós-manifestações de 2013 e sobretudo o momento em que está sendo publicado, no final do mandato de um presidente populista autoritário.
Rosanvallon define o impolítico como “a falta de apreensão dos problemas ligados à organização de um mundo comum” (p. 41-2). Essa dissolução das expressões de pertencimento a um mundo comum se manifesta, em primeiro lugar, a partir do aprofundamento da separação entre a sociedade civil e as instituições e da constituição de uma contrapolítica que deprecia poderes que não mais se procura conquistar, sobrepondo atividade democrática e efeitos não políticos. Além disso, nesse contexto, são afastadas as qualidades essenciais do político através de um processo de perda de visibilidade e legibilidade do próprio regime político. A dimensão contrademocrática, portanto, mistura tanto elementos positivos de crescimento do poder social quanto tentações populistas. A rigor, a via que conduz na direção de uma “democracia civil” é a mesma que conduz a formas de fragmentação e de disseminação quando se fazem necessárias coerência e globalidade.
Em A Contrademocracia, o populismo é compreendido como uma patologia da democracia e, sobretudo, da contrademocracia.[2] Por um lado, o populismo como patologia da democracia eleitoral-representativa está intrinsecamente ligado às tensões estruturantes da representação. O populismo faz referência à ideia de um povo “sano” e “homogêneo”, que deve se opor ou se proteger daquilo que é exterior a ele: o estrangeiro, a oligarquia, as elites. Busca-se, através da celebração desse povo fictício, encontrar um remédio à má-representação, ao mesmo tempo em que se fustiga o princípio representativo como o confisco da política por um punhado de tecnocratas que se opõe às virtudes da aclamação do povo e da sua expressão direta (p. 284). Se Rosanvallon identifica a emergência do populismo com a crise da representação derivada de uma redução da legibilidade do social, ela mesma provocada pelo desarranjo das antigas estruturas de classe, ele não considera esse fator suficiente para apreender suas causas e exprimir suas peculiaridades. Propõe então um aprofundamento da análise a partir da ideia de populismo como patologia da contrademocracia. Nesse sentido, o populismo é compreendido como a radicalização da contrademocracia de vigilância, de impedimento e de julgamento, podendo ser definido como “política pura do impolítico, antipolítica acabada, contrademocracia absoluta” (p. 285).
O populismo transformaria a preocupação ativa e positiva de inspecionar a ação dos poderes, de submetê-los à crítica e à avaliação, em estigmatização compulsiva e permanente às autoridades governantes, a ponto de transformá-las em inimigas e exteriores à sociedade. O populismo é igualmente uma patologia da soberania de impedimento, ligada ao surgimento de partidos “antissistemas” no final do século XIX e que vai se transformar numa visão negativa do político fechado em si mesmo com ressonâncias posteriores. Os populismos contemporâneos ressuscitaram essa visão da ação política banalizando-a. Na visão de Rosanvallon (p. 289), o populismo como patologia da soberania negativa se traduz “no fechamento da soberania negativa no seu imediatismo, como força radicalmente nua, incapaz de uma crítica ativa, expressão de uma violência resignada”. O populismo é finalmente a “exacerbação destruidora da ideia do povo-juiz” (ibid.). Vale a citação:
A cena do tribunal com as trocas de argumentos e suas produções de expertises se degrada em teatro de crueldade ou em jogos circenses. O poder tende consequentemente a ser criminalizado ou ridicularizado em sua essência. Nesse contexto, a função de acusação absorve toda a atividade cívica, afastando ainda, de forma quase estrutural, o cidadão do poder. O Ministério Público, que tem como função representar o Estado e requerer a aplicação da lei no interesse da sociedade, acaba nessa perspectiva por se constituir no único poder percebido, em suas obras, como de essência democrática. Esse povo-juiz exacerbado do populismo […] só quer conhecer uma justiça de repressão, de sanção, de estigmatização, constituindo em objeto de sua vindicta uma vasta categoria de indesejáveis e de parasitas (p. 289-290).
Embora tenha escrito o livro em 2005, parece claro para o leitor ciente dos acontecimentos recentes no Brasil que Rosanvallon antecipa o modus operandi da Operação Lava-Jato, peça fundamental que conduziu o Brasil do impolítico à antipolítica, e cujo resultado foi a chegada de Jair Bolsonaro ao poder nas eleições de 2018. O Brasil contemporâneo oferece assim a ilustração perfeita da reviravolta da democracia contra si mesma.
Há, em A Contrademocracia, outras reflexões particularmente pertinentes para o caso brasileiro. Ressalto brevemente o que Rosanvallon chama de “o trabalho do político”. Pensando com ele, digamos que a solução para o impolítico – e também para a antipolítica e para a linguagem da destruição no caso brasileiro – passa pela reconstituição da visão de um mundo comum e pela possibilidade de superar o sentimento de uma divisão social irreconciliável. O trabalho do político, nesse sentido, vai além de uma reconstrução do debate público, na medida em que também é definidor da democracia como instituinte do social. O que Rosanvallon identificava como necessário no momento em que escreveu o livro, em 2005, parece ainda mais urgente no Brasil de 2022, a saber: o trabalho da sociedade sobre si mesma por meio de uma ação reflexiva.
Os trabalhos do político, que definem a democracia em sua função de instituição do social, referem-se à produção de um mundo legível, à simbolização do poder coletivo e a evidenciar as diferenças sociais. Partimos assim de uma dimensão fundamentalmente cognitiva, na medida em que a democracia deve possibilitar a construção de uma história comum e indicar um horizonte de sentido, acabando, num mesmo movimento, com o sentimento de incompreensão e de impotência dos homens e das mulheres que fazem a pólis. Como lembra Rosanvallon, “a soberania não é apenas exercício do poder: ela é autocontrole e compreensão do mundo” (p. 329). Em seguida, tornar a política mais visível consiste na lembrança permanente da tarefa a ser realizada: transformar o “povo inalcançável” em comunidade política viva. O que Rosanvallon chama de “simbolização” é uma reflexão coletiva para a construção de uma narrativa que comporte os fracassos e esperanças de uma história comum; história e memória da luta dos homens e mulheres em prol da construção de uma sociedade de iguais. Enfim, (re)simbolizar o político consistiria em pôr à prova as diferenças sociais, dando forma a uma coletividade organizada segundo as regras da justiça distributiva, dos princípios de alargamento das possibilidades e das normas da relação entre o individual e o coletivo (p. 332).
A grande mutação da democracia na virada do século XX para o XXI, portanto, é a ascensão de uma nova forma de participação e implicação cidadã. Nesse sentido, para Rosanvallon, há um duplo trabalho a ser feito, tanto intelectual quanto prático, atividades indissociáveis, diga-se de passagem. Refletir sobre essas práticas contrademocráticas, a fim de formular os termos de uma renovação da democracia. Organizar e consolidar a contrademocracia, não apenas para conjurar os riscos de sua degradação num populismo redutor e destruidor, quanto para restaurar e desenvolver um sentido autêntico do político.
Diogo Cunha.
Recife, julho de 2022.
Nota
[1] Publicado em 2021 pelo Ateliê de Humanidades Editorial.
[2] Rosanvallon reviu alguns pontos da sua análise sobre o populismo em A Contrademocracia no seu trabalho mais recente O Século do populismo, publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial em 2021.

Diogo Cunha é professor adjunto de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP-UFPE) e tradutor da obra de Pierre Rosanvallon no Brasil pelo Ateliê de Humanidades Editorial.

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