A leitura e resenha de livros é um trabalho imprescindível tanto para a vida intelectual quanto para o debate público democrático. Este exercício reflexivo é ainda mais valioso quando realizado com o cuidado próprio de um bom intérprete, atento à pluralidade de ideias, perspectivas e valores. É isso que Marcos Lacerda vem fazendo em suas resenhas publicadas no Fios do Tempo e em outras tribunas e revistas.
Trazemos hoje sua resenha de “O diálogo possível: por uma reconstrução do debate público brasileiro (Todavia, 2022), escrito por Francisco Bosco, um dos melhores intelectuais públicos de nossa geração, competente mediador entre o mundo das letras e a linguagem popular televisiva. O próprio tema do livro ressoa o empenho que acabei de elogiar: como sair da guerra cultural e reconstruir o debate público? Como reconhecer o jogo das polarizações próprio à pluralidade democrática e, a partir disso, encaminhar um universalismo por vir? Este é o desafio posto pelo autor, em um diagnóstico da atualidade mundial e brasileira que é desdobrado aqui em suas variadas direções por Marcos Lacerda.
Desejo, como sempre, uma excelente leitura.
André Magnelli
Fios do Tempo, 02 de junho de 2022

Um universalismo por vir
Resenha de:
O diálogo possível: por uma reconstrução do debate público brasileiro (Todavia, 2022),
de Francisco Bosco
Francisco Bosco é conhecido intelectual público brasileiro, já com uma obra ensaística bastante relevante. Seu último livro, A vítima tem sempre razão? (2017) teve um bom eco nas discussões a respeito das ações de movimentos sociais associados às políticas de reconhecimento, especialmente no campo “progressista”. O autor também sugeriu ali uma tese forte: a de que a relação entre estes movimentos e a disseminação das redes sociais digitais representam uma mudança significativa no debate público brasileiro e na própria imagem que o país tem de si. Agora, lança um segundo livro conversando sobre o mesmo tema, mas de maior fôlego intelectual e com uma abrangência teórica e conceitual bem mais ampla. O livro se chama O Diálogo Possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro (Todavia, 2022).
Trata-se de um ensaio histórico-conceitual que se desdobra em torno de temas difíceis, perpassando questões como as do universalismo, identitarismo, modernidade, anti-modernidade, razão, fé religiosa, liberalismo, democracia, totalitarismo, esquerda, direita, mediações institucionais, movimentos sociais, soberania política, leis e regulações constitucionais, entre outros. Ao mesmo tempo em que se propõe a pensar estes temas a partir de questões próprias ao Brasil, especialmente no que diz respeito a alguns dos impasses da esfera pública brasileira contemporânea.
É um trabalho de fôlego que tem, assim, no tema brasileiro uma espécie de regulador temático, ou ao menos motivador geral da reflexão. No entanto, e isso é decisivo, o livro vai muito além e exige uma leitura mais pausada, um estudo mais demorado. Se o regulador temático é mesmo o Brasil, o regulador conceitual da análise, aquilo que confere organicidade ao livro, é o conjunto de polarizações que o atravessam e que tem tanto uma dimensão epistêmica, quanto política, tanto uma perspectiva mais conceitual, quanto histórica.
É por conta disso que o autor precisa passar por temas próprios à filosofia, história, economia, política, moral e assim por diante. Perder isso de vista é perder o que o livro tem, de fato, de mais significativo e relevante para o campo intelectual brasileiro, especialmente para aquelas regiões que mal se confundem com a reflexão no calor da hora, ficam no limiar entre a mera expressividade e, com sorte, conseguem ter alguns bons insights que serão objeto de controvérsia na esfera pública.
O ensaio histórico-conceitual de Francisco Bosco passa por uma série de intelectuais, de diferentes contextos históricos e geográficos. Vai de Stuart Mill, Rousseau, Locke e Thomas Paine; conversa com o italiano Domenico Losurdo, o brasileiro Capistrano de Abreu; a alemã Hannah Arendt; o filósofo Vladimir Safatle e chega em pensadores conservadores como o inglês Roger Scruton, os brasileiros Olavo de Carvalho e Flavio Gordon. Estende o longo diálogo para o economista Marcos Lisboa, o ensaísta Tales Ab’saber, os pensadores das coisas do Brasil Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e Abdias do Nascimento.
O conjunto amplo de autores e visadas intelectuais o leva a um exercício reflexivo impressionante, que faz encontrar a teoria política clássica; estudos sobre o conceito de totalitarismo; temas difíceis como os da colonização e da escravidão; discussões mais de cunho filosófico e, mesmo, epistemológico, junto a teorias críticas da modernidade. Habita limiares entre a filosofia e a poesia, com a presença dos pré-socráticos e o disforme como valor de afirmação possível da alteridade. Depois, como que dá um salto, e está lá discutindo economia, taxas de lucros e dividendos, reformas institucionais. Mal conseguimos recuperar o fôlego e o autor nos leva para os impasses, algo agourentos, da conjuntura nacional, mostrando equívocos e pertinência da esquerda identitária ou da nova direita; das lutas por reconhecimento da identidade e das defesas de preservação de valores do conservadorismo moral, sem deixar de lado as sombras obscurantistas do pensamento reacionário.
Assim, é preciso enfatizar. Este não é um livro sobre a conjuntura nacional, muito menos se trata de uma reflexão feita “no calor da hora”. Ao contrário, é um trabalho denso, difícil muitas vezes, de ensaio histórico-conceitual com amplo domínio de um repertório intelectual vasto.
Ou melhor, é e não é ao mesmo tempo. É que, sem prejuízo do amplo esforço conceitual, o Brasil ocupa um papel significativo no todo. E, ainda mais, o Brasil das querelas contemporâneas, aquelas que vão dar em coisas como o legado das jornadas de junho de 2013; o sentido da polarização PT-PSDB; os conflitos pelo monopólio do sentido da história do país por parte de movimentos da esquerda identitária ou da nova direita; a fissura no pacto democrático pós-redemocratização com a atuação política dos militares, entre outros exemplos possíveis.

Universalismo por vir e o jogo de polarizações
Ora, mas diante de tantos temas, viravoltas no tempo, longas conversas com tradições do pensamento, movimentações bastante seguras entre campos de conhecimento distintos, existem esquemas conceituais que permitem ver no todo do livro uma certa organicidade. Francisco Bosco não faz um jogo de justaposição aleatória de temas, ideias, conceitos, ou posições normativas. Temos um esquema conceitual formado pelo jogo de uma série de polarizações.
Elas são formadas por pares como universalismo/identitarismo; sujeito/ estrutura; liberalismo/democracia; democracia liberal/regimes socialistas e assim por diante. Nas páginas vamos encontrar uma série de tensões, como, por exemplo, as que se dão entre universalismo e identitarismo, que acompanha a tensão entre sujeito e estrutura, por exemplo.
Se o primeiro, o universalismo, atua no âmbito da dimensão formal que permite a todos nos vermos como sujeitos, independente da origem social, étnica, de gênero ou racial, o segundo, ao contrário, realça estas mesmas diferenças e atribui a elas uma dimensão estrutural. Para este caso, não há sujeitos propriamente, mas atores sociais que reproduzem, voluntária ou involuntariamente, estruturas de dominação difusas, como o “machismo”, ou o “racismo”, ambos chamados “estruturais”. O mesmo se estendendo para a noção de classe social.
Esta tensão entre universalismo e identitarismo acompanha uma outra diretamente. Aquela que polariza liberalismo e democracia. De um lado uma concepção da política que coloca em primeiro plano os direitos dos indivíduos, as mediações institucionais e a racionalidade como base de fundamentação da política.
Do outro, uma concepção que privilegia a soberania popular e que estimula a pressão social em relação às instituições, como forma de fazer avançar pautas de igualdade social, racial, de gênero, religiosa e assim por diante. A soberania popular desconfia do universalismo do liberalismo. O liberalismo teme que a soberania popular possa conduzir a tiranias e conflitos sem fim, levando em conta que ela desconsidera os limites institucionais.
Entre universalismo e identitarismo, sujeito e estrutura, liberalismo e democracia, se situa também uma outra polarização, aquela que se dá entre liberdade negativa e liberdade positiva. Ela segue a mesma lógica. A primeira tem uma dimensão universal, abstrata, formal. A segunda, uma dimensão particular, concreta, real. E assim vai sendo desenhada em grande parte a sua argumentação.
Veja o caso da relação entre liberalismo e socialismo, por exemplo. O primeiro polo se associa a movimentações históricas e políticas ligadas à democracia liberal. O segundo se associa a movimentações históricas associadas aos regimes socialistas. O século XX se viu entre as democracias liberais e os regimes socialistas, tendo claro como meio termo o estado de bem estar-social europeu.
Mas a polarização segue. Podemos vê-la na leitura que contrapõe as democracias liberais, com a presença do colonialismo e da escravidão como sua sombra e, por outro lado, o comunismo, ou o socialismo real, com o totalitarismo estalinista, e regimes violentos e genocidas como o maoísta, por exemplo.
Temos aqui mais um exemplo claro dessa movimentação dos polos. O universalismo formal se mostrou falso, tendo em vista o fato de que deixou em segundo plano pessoas negras escravizadas e, mesmo, povos colonizados. Mas também a ênfase na soberania popular conduziu a regimes totalitários e a uma série de violências políticas.
Os exemplos históricos apresentados, liberalismo e socialismo, confirmam algumas das suas teses que mostram que, se levado aos extremos, os polos da liberdade negativa, sujeito, universalismo, de um lado, e os polos da liberdade positiva, da estrutura e do identitarismo, do outro, tendem a produzir desigualdades, formas de violência e regimes autoritários e totalitários.
Universalismo por vir
Mas o autor não apresenta as polarizações com o intuito de afirmar um polo sobre o outro, ou mesmo com a proposta de simplesmente colocá-los de forma justaposta e descrever os extremos como impossibilidade de qualquer tipo de síntese. Existe uma proposta no livro que é, a um só tempo, epistêmica e normativa, e que pretende criar espaços de encontro possíveis entre os polos.
É aí que se situa a proposta da construção de um universalismo por vir, sempre em formação, cuja base deve ser a construção de espaços de encontro entre os sujeitos, levando em consideração as “assimetrias estruturais” de origem social, mas as analisando sem dogmatismo, é importante ressaltar.
Este universalismo por vir, concreto, teria uma feição dialética. Haveria uma tese, a do universalismo formal, de base iluminista, com feição democrática, postulando a existência do humano como humano, indiferente para as diferenças e realçando a importância do sujeito como base de sua fundamentação, além das formas de racionalidade moderna, gravitando em torno dos polos que mencionamos: universalismo, sujeito e liberalismo.
Haveria, no entanto, uma antítese. O avesso disso. A necessidade de fazer uma crítica ao caráter meramente formal, de falso Universal, no fundo um particularismo específico, que poderia ser delimitado nas suas dimensões social, de gênero, racial e étnica. Contra este falso Universal, seria necessário realçar as diferenças e afirmá-las em suas identidades irredutíveis e que teriam sido recalcadas, colocadas em segundo plano, subsumidas no Universalismo formal. Aqui teríamos os polos do identitarismo, da estrutura e da democracia como soberania popular.
No entanto, se parássemos na antítese, correríamos o risco de cair num mundo sem a possibilidade de espaços de encontro, onde os grupos sociais teriam as suas próprias “verdades”, que seriam sempre autorreferentes e inacessíveis para os que não fazem parte do grupo social, de gênero, racial ou étnico. A explicitação do conflito, que nega a conciliação “universal” dos primeiros polos, levaria a uma espiral de conflitos sem fim, degradando a convivência social, as formas de racionalidade, a vida política, a possibilidade de um mínimo de regulação moral e de possível re-união ou reconciliação. Ainda que existam razões justas, segundo o autor, no identitarismo, nas perspectivas das estruturas de dominação que anulam o sujeito, ou nas pressões por mais soberania popular na democracia, se levadas ao extremo podem conduzir a regimes tirânicos, tanto políticos quanto epistêmicos, desconsiderando os ganhos reais do universalismo, do liberalismo e da noção de sujeito como capaz de escapar às injunções das estruturas de dominação.
Assim seria necessário uma síntese dialética. Se a antítese é a negação da afirmação do universalismo, a síntese é uma negação da negação que, acaba por ser uma sua afirmação, mas uma afirmação que já passou pelo crivo da negação. A síntese recupera o universalismo [sujeito, liberalismo] da tese, tendo passado pelo crivo do identitarismo [estrutura, soberania popular] e faz com que ambos deem forma a algo que é, a um só tempo, afirmação e superação dos polos.
Esta afirmação como superação de ambos os polos, universalismo e identitarismo, permitiria a criação de um novo universal capaz de realizar cada um dos polos numa forma superior. É o momento da reconciliação, mas só possível tendo passado e levado a sério a crítica que gera uma fissura. Mas uma reconciliação não como solução de compromisso, e sim como criação de algo novo, a partir da aproximação produtiva entre a tese e a antítese.
O Brasil e o jogo de polarizações
Este jogo de polarizações pode ser visto também no Brasil, tanto na sua dimensão histórica quanto conceitual. Claro que com as devidas variações em relação ao continente europeu. Fomos colonizados, temos uma larga história de escravidão. Criamos, também, uma tradição forte de pensamento. Nossas dimensões históricas e conceituais têm, claro, as suas autonomias.
Mas são autonomias relativas, já que sempre estivemos, voluntariamente ou não, em contato direto com o resto do mundo e conversando diretamente com o legado conceitual dos grandes sistemas de pensamento europeus, que são também universais, a seu modo.
Podemos assim ver no país uma série de relações entre perspectivas mais próximas ao universalismo, ao sujeito ou ao liberalismo, de um lado, em contraponto a perspectivas mais próximas ao identitarismo, à estrutura ou à democracia, de outro. O debate sobre democracia liberal ou regimes socialistas encontra por aqui também algum amparo. O mesmo valendo para o que coloca em lados opostos, embora sempre com a possibilidade real de encontro, perspectivas institucionalistas e concepções mais próximas de uma ideia de soberania popular. Momentos históricos do país, como abolição da escravidão e o advento da primeira República; lideranças políticas altamente populares como Getúlio Vargas ou, mais recentemente, o ex-presidente Lula; a tensão no período da guerra fria ecoando nos conflitos do país entre reformismos democráticos fortes como os que se esboçou no governo Jango e o golpe militar de 64; pluralização de movimentos sociais, um partido de massa como o PT, propostas de maturação das instituições, com um partido como o PSDB e assim por diante.
Uma forma interessante de pensar a tentativa de criar liames entre os polos, no caso do Brasil, é a que se dá com relação à miscigenação e à ideia de cultura popular.
Ambas seriam formas de resolução dos impasses trazidos pelas polarizações. Assim, entre universalismo e identitarismo, sujeito e estrutura, liberalismo e democracia teríamos a nossa mediação universal, digamos assim. Aquela capaz de criar um pacto de conciliação de classe e, ao mesmo tempo, permitir a realização social de expressões altamente democratizantes em nós. A miscigenação seria a nossa astúcia popular, ela teria resolvido os impasses das “ideias fora do lugar”, do jogo entre as mediações institucionais e a soberania popular, da difícil equação entre colonização, escravidão de pessoas negras e modernização democrática. A cultura popular, especialmente a canção e o futebol, seriam modos de realização do povo brasileiro, no sentido mais amplo possível do termo, com negros, mestiços, brancos e indígenas das mais diversas etnias tendo protagonismos os mais variados e com a lógica das assimetrias “estruturais” colocadas em suspenso, ao menos provisoriamente. O nosso universalismo por vir já estaria realizado.
Ora, mas a coisa não é bem assim, basta ver que no âmbito da política, dos ganhos econômicos e da vida intelectual existem diferenças gritantes entre classe e raça mais propriamente. Uma teoria crítica da miscigenação revelou, em diferentes momentos da vida do país, aquilo que o ideal da cultura popular e da miscigenação pareciam não querer enxergar, em suma, as profundas desigualdades sociais e raciais na formação da nossa sociedade. Talvez estas desigualdades pudessem ser a nossa verdadeira mediação universal, e não a cultura popular ou a miscigenação. Pior ainda, talvez a valoração da miscigenação pudesse ser uma estratégia cínica de compensação simbólica pelas misérias reais, com seu fundo racial e social mal disfarçado. Temos aqui algo análogo em relação ao jogo de polarizações no sentido mais amplo, não necessariamente vinculado ao Brasil. De um lado, um falso universal, no nosso caso, a miscigenação e a cultura popular, de outro um esforço crítico de contestação desse falso universal, realçando os marcadores sociais de raça e classe social, além de etnia, faltou dizer, com a questão dos indígenas. O universalismo e o “sujeito” da miscigenação e da cultura popular são colocados em suspenso pelo identitarismo e pela estrutura que vem das teorias críticas de classe, raciais e também étnicas.
Aqui o livro chega aos temas mais próximos da conjuntura nacional, tendo como base esta tensão entre conciliação de classe da miscigenação e explicitação do conflito racial, social e étnico.
Mas essa crítica tem também a sua dimensão histórica. O conceito, em todo este livro de Bosco, vem sempre acompanhado da história. Existem alguns fenômenos sociais relativamente recentes que colocaram em suspenso a miscigenação e a cultura popular como forma de fundamentação da nacionalidade. Com isso, fizeram com que os polos, no Brasil, se distanciassem e assumissem um perigoso jogo de extremos.
Eles representam dois momentos decisivos de cisão na nossa “comunidade nacional imaginada”. O primeiro, com a perda de centralidade da cultura popular como instância-mestra de mediação da vida nacional, capaz de realizar a sociedade brasileira de forma democrática, como nenhuma outra expressão. O segundo, com a revisão do legado da Ditadura civil-militar e do pacto democrático pós-redemocratização
O primeiro momento teria como ator principal, até determinado momento ao menos, os movimentos da esquerda identitária que questionam o que haveria de limitação e visão supostamente não inclusiva nesta perspectiva. Mas só num primeiro momento. Porque com a entrada da nova direita digital o mesmo se viu. Há também na nova direita uma crítica constante, especialmente a artistas e intelectuais que se tornaram embaixadores dessa perspectiva da cultura popular como identidade nacional. No fundo, parece que no lugar da cultura popular como instância-mestra de mediação da sociedade brasileira, temos agora uma “guerra cultural” que explicita um campo em disputa, com seus aspectos emancipatórios e regressivos, tanto entre progressistas quanto em relação a conservadores. As chamadas “jornadas de junho” de 2013 talvez sejam o lugar de explicitação concreta do advento destes novos atores sociais e políticos.
O segundo momento, por sua vez, tem como fator principal o retorno ativo dos militares na vida política nacional, colocando em suspenso o pacto da constituinte da redemocratização. Muitos argumentam que um dos fatores principais teria sido a criação da chamada Comissão da Verdade, que visava punir os diversos crimes de Estado impetrado pelos militares que deram o golpe de 64. A existência da comissão causou um alvoroço e, ao que parece, realinhou a elite militar em torno de causas políticas, fazendo com que eles se reorganizassem como atores políticos e passassem a agir, nas sombras ou publicamente.
Um acontecimento decisivo foi o infame tuíte do general Villas Boas, emparedando o STF caso concedesse direito a habeas corpus do ex-presidente Lula. Estava claro ali que os militares estavam atuando politicamente em favor daquele que veio a ser o presidente da república, eleito sem a presença de Lula. Um capitão da reserva que sempre vocalizou os interesses dos militares como deputado federal.

A nova polarização político-afetiva
O fato é que, assim como já o fizera em seu A vítima tem sempre razão?, Francisco apresenta uma tese forte sobre mudanças profundas na sociedade brasileira. Tanto o esgarçamento no ideal de cultura popular, quanto a fissura no pacto democrático, vêm acompanhados de uma série de revisionismos históricos nas disputas “narrativas” das chamadas “guerras culturais” e conduzem o país para uma nova dinâmica na esfera pública, e no âmbito das disputas políticas, que tem na polarização “político-afetiva” a sua definição mais precisa. Mas não se trata de uma polarização qualquer. Bosco fala em um tipo de polarização que vai se engendrando com o desmantelamento do equilíbrio entre PT e PSDB, que marcou a política brasileira pós-redemocratização, tendo sempre como baliza fundamental a constituição de 88.
Temos aqui alguns elementos importantes que vale enumerar:
1) A desfiguração da cultura popular, que implica no descrédito em torno da miscigenação como imagem do país, real e idealizada ao mesmo tempo, deixando um vão em seu lugar, ora ocupado por movimentações da esquerda identitária (feministas, negros, lgtbqi+) ora por movimentações da nova direita (conservadores, evangélicos, nacionalistas de direita, moderados ou extremistas, monarquistas, maçons, entre outros);
2) Uma fissura no pacto democrático pós-redemocratização, que implica numa revisão da própria concepção de democracia liberal, já que alguns falam por exemplo em democracia iliberal como um projeto do atual presidente da república e da elite militar para o país, dentro de uma lógica constante de guerra híbrida digital. Os atores sociais principais aqui são mesmo os militares que passaram a atuar de forma constante na política nacional, tanto como agentes políticos concretos, participando de governos, quanto como palpiteiros na esfera pública;
3) A substituição da polarização política PT-PSDB por uma polarização político-afetiva difusa, que está associada à presença de novos atores sociais, muito variados e com suas próprias complexidades, entre eles os militantes identitários de esquerda, a comunidade evangélica, os identitários de direita, gamers, fãs de clubes do tiro, aposentados, donas de casa, ancaps, conservadores morais, entre muitos outros;
4) Eu incluiria também um quarto elemento, as disputas em torno dos revisionismos históricos da sociedade brasileira feitos tanto por “progressistas” quanto por “conservadores”. Exemplos interessantes aqui são os da Brasil Paralelo, mais à direita, ou parte do colunismo da Gazeta do Povo, e sites petistas como o DCM, Brasil 247 ou mesmo youtubers do polo “progressista”, com variações entre a redução da realidade social brasileira às teses racialistas, feministas, até mesmo neostalinistas, ou ecossocialistas. Assim, é bom ressaltar que a revisão da história brasileira, dos aspectos de sua formação, da dimensão de disputa, do que pode haver de arbitrário nas versões consideradas “oficiais”, se tornou algo comum ao debate público e tem sido requerido pelos vários atores sociais em disputa, não apenas pelo chamado “campo progressista”, como por vezes costuma aparecer. A legitimidade das revisões da história é também algo em disputa, sendo pouco razoável, do ponto de vista da análise científica, considerar justo apenas as versões dos grupos “progressistas”, ou dos grupos “conservadores”.
Tendo feito o enquadramento geral da situação, mostrando a nova configuração das disputas políticas no país, que têm dimensões morais, sociais, culturais e também de fé religiosa, como fazer para refundar o pacto nacional, vamos chamar assim, e fazer com que seja possível construir mediações, espaços de encontro, em suma, algum diálogo possível, levando em consideração a heterogeneidade real dos novos atores sociais e políticos, tentando superar o estímulo ao gozo perverso do conflito como aniquilamento do outro, feito tanto por “progressistas” quanto por “conservadores”?
É bom ressaltar que o desejo de aniquilamento do outro traz uma série de recompensas narcisistas – e também simbólicas, econômicas – para muitos dos atores sociais, progressistas ou conservadores. Este tipo de ação política extremista é valorada e, em muitos aspectos, normalizada, seja por partidos de esquerda, de direita, por conglomerados transnacionais, pelo chefões das redes sociais que criam medidas seletivas de banimento de usuários, admitindo discursos de ódio desde que sejam feitos por atores sociais considerados legítimos, o que a turma da direita chama, acertadamente a meu ver, de “ódio do bem”, e assim por diante.
Quer dizer, existe uma máquina bem azeitada de estímulos e recompensas para ações extremistas, caricaturas, ridicularizações, discursos de ódio, entre “progressistas” e “conservadores”. Um fenômeno social poderoso como o linchamento virtual, com variações como as do cancelamento, explicita isso nitidamente.
O fato é que a polarização político-afetiva conduziu ao uso contínuo de categorias de acusação que servem apenas para manter o distanciamento e a fenda entre os polos políticos-sociais. Tenta-se reduzir todos os atores sociais da nova direita em termos como “fascistas”, “neoliberais”, “bolsonaristas”, que significam muito pouco, ou quase nada. O mesmo se faz em relação aos atores sociais da esquerda identitária, seriam “comunistas”, “feminazi”, ou adeptos da “ideologia de gênero” e de “supremacismos raciais” invertidos.
O que não quer dizer que não haja entre a heterogeneidade destes novos atores sociais, convicções fascistas, neoliberais, misândricas, comunistas, supremacistas raciais e assim por diante. Mas não são necessariamente hegemônicos, muito menos explicam o fenômeno todo ou são capazes de sintetizar a multiplicidade real de perspectivas. De todo modo, o uso destas categorias de acusação são uma forma de desumanização dos opositores e, obviamente, interdição de qualquer debate real. A lógica é a da aniquilação, pura e simplesmente.
Trata-se, no meu modo de ver, e aqui me utilizo de uma categoria própria, de uma deriva extremista, que atinge tanto o campo progressista quanto o conservador, a tal ponto que não conseguimos ver a possibilidade real da criação de algum tipo de consenso mínimo que possa unir divergentes em temas minimamente comuns, ou mesmo unir divergentes respeitando as suas divergências.
O livro de Francisco Bosco, em grande parte, se propõe a sugerir a possibilidade de criar espaços de encontros entre estes polos que compõem a polarização político-afetiva brasileira. O primeiro passo talvez seja levar a sério o outro, procurar compreender as suas razões, legitimar também a sua presença como protagonista do nosso novo espaço público, com seus valores próprios e suas respectivas formas de expressão, sejam eles feministas, evangélicos, racialistas, conservadores, adeptos das teses da miscigenação, críticos a estas teses, progressistas, marxistas heterodoxos, liberais, anarquistas, entre muitas outras denominações possíveis. Caso contrário viveremos numa eterna guerra civil baseada em fantasiosos regimes de “microagressões”, ao lado dos desejos de eliminação simbólica e física da alteridade real, aquela que de fato causa transtorno, inquietações e exige de nós um passo para trás, como esforço honesto de alargamento da percepção moral e da capacidade cognitiva.

Marcos Lacerda
Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPel e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades. Doutorado em Sociologia pelo IESP/UERJ (2011-2015). Foi Diretor do Centro da Música da Funarte / Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para a música no Brasil, entre maio de 2015 e março de 2017. Atua na coordenação e curadoria da coleção Caderno Ultramares, da OCA Editorial de Portugal, ao lado do crítico e editor Sérgio Cohn. Autor de “A sociedade das tecnociências: Introdução à obra de Hermínio Martins” (Ateliê de Humanidades, 2020) e organizador, com André Magnelli, de “Sociologia das tecnociências contemporâneas” (Ateliê de Humanidades, 2020).
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