Hoje é aniversário do Luís Augusto Fischer (nascido em 1956), escritor, professor e ensaísta gaúcho, autor de livros como “Duas formações, uma história” (2021), “Machado e Borges” (2008) e “Literatura brasileira – modos de usar” (2003). O sociólogo e ensaísta Marcos Lacerda comemora este dia trazendo-nos uma saborosa resenha sobre a escrita e a boa prosa do autor, tendo por inspiração a leitura de três de seus livros: “para fazer diferença” (1999), “contra o esquecimento” (2001) e “De ponta com o vento norte” (2004).
Desejo um belo aniversário a Fischer e uma excelente leitura para todos!
A. M.
Fios do Tempo, 25 de janeiro de 2022

A boa palavra de
Luís Augusto Fischer
Li, por estes dias, com muito gosto e interesse, três livros do crítico literário e escritor Luís Augusto Fischer, de quem já escrevi uma resenha alongada neste mesmo Ateliê. Os três livros são os seguintes: para fazer diferença (1999), contra o esquecimento (2001) e De ponta com o vento norte (2004), todos pela editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre.
São livros que têm as suas próprias formas de estruturação, embora se aproximem em vários aspectos, muito pela forma de escrita do autor, que consegue ficar no limiar do ensaio mais filosófico; da crítica literária e da crônica, muitas vezes com um saboroso quê de despreocupado e um saber-se conversar com o leitor, que sente como se estivesse em boa prosa com o autor.
Mal percebe, o leitor está lá tentando compreender nuances da língua portuguesa, sentindo uma leve baixa na sua auto-estima; discutindo as tramas do insosso pós-modernismo, e se alegrando com a posição do autor, com Habermas, a modernidade, o iluminismo e a luta pela justiça social; relembrando de filmes como Central do Brasil e Cronicamente inviável, embora gostando mais deste, porque o leitor é um paulistocêntrico incurável, ora bolas; tomando partido nas querelas entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, que resultou até mesmo em abaixo-assinado; rindo da inteligência esperta e cultíssima de Nelson Rodrigues; ficando louco para comprar o livro do Carlos Heitor Cony e ler de imediato o seu “Quase-memória”; entrando na briga com a hegemonia de São Paulo e do modernismo de 22; se convencendo de que a cultura de massa tem lá seu valor; ficando intrigado com a relação do pajé Caetano com o operário Chico Buarque; com vontade de morar no Sul do país e reviver a geração de artistas gaúchos geniais, do qual faz parte o próprio Fischer, e por aí vai.
Em outras palavras, não só a forma da escrita atravessa os três livros, escritos em momentos históricos distintos, como o amplo repertório também acompanha cada um deles, com diferentes intensidades e viço, dependendo do momento da prosa, opa, da escrita. Podemos ler com entusiasmo um texto que trata de um encontro com o então ministro da cultura Gilberto Gil, nos tempos em que o Brasil era um pouquinho de iôiô e iáiá, não sei se era de todo feliz, mas cantar, cantava. Ao lado de uma momento de alumbramento diante de duas crianças brincando num parque de diversões. Depois, lá vamos, com o cenho franzido, o punho cerrado, lutar com um certo provincianismo de São Paulo, a capital cultural do país que, por vezes, erroneamente, vive num curto-circuito de autocongratulação e autorreferência meio patéticos, sejamos sinceros.
Seguimos. A vida é bela, não é bela. O sonho ingênuo, ou nada ingênuo, da moça pobre em ter um programa de televisão. A figura entre o cômico e o autoritário de um apresentador de programa popular. A importância da canção como forma artística e de pensamento no Brasil. O impulso vanguardista da nomeação do novo eterno novo em São Paulo. A crítica a conceitos tolos como os de “pré-modernismo”. Uma mudança de casa aqui, uma alteração nos livros acolá. O olhar atento para as coisas de sua cidade, tanto de nascimento, quanto a de escolha e moradia. A luz elétrica que apaga o breu da noite no interior. O som intermitente de carros de mensagens de amor. Umberto Eco, Paulo Francis, Paulo Coelho e até mesmo o biruta do Diogo Mainardi. Estátuas milenares sendo derrubadas pelos fundamentalistas do Taleban. Tragédias das páginas de jornal e da vida cotidiana, como as denunciações caluniosas. Um olhar mais atento ao tradicionalismo, embora sempre crítico. Outro, ainda mais aguçado, às vanguardas. Que tal?
Não dá, por óbvio, para falar de cada um dos textos, não é também muito interessante encher o bom leitor de citações, títulos de textos e assim por diante. Melhor, para meu gosto, e espero que não só pra o meu!, lembrar de algumas das questões que a mim mais fizeram sentido e estimularam o prazer da leitura e o impulso para o debate e a boa conversa.
Por exemplo, há uma transversalidade de temas entre os livros. Um deles, os problemas ligados aos gaúchos, ao Rio Grande do Sul, à obsessão que tem os gaúchos com este negócio de identidade. Assim, no primeiro livro, temos o tópico “Gauchidade”, em que se destacam textos primorosos para quem quer compreender a literatura gaúcha, casos de “Uma geração de produtores de arte”, “Desenho de uma geração” e “A poesia no Rio Grande do Sul”, além da ótima resenha para o disco Ramilonga: a estética do frio, do Vitor Ramil, outro craque de sua geração; no segundo livro, “Meus mortos”, embora nem todos sejam gaudérios. Deles destaco, no entanto, dois escritores, de gerações distintas. O poeta Jayme Caetano Braun, cujo poema “Brasil doente” me acompanha desde que vim morar no extremo Sul; e o romancista Luiz Sérgio Metz. E no terceiro livro, “Coisas da terra”. Mas antes, mesmo na seção sobre as manhas da língua, está lá o dialeto gauchesco em textos como “Passado o veranico de maio, o frio de ranguear cuzco” ou “Amigo, boleie a perna”.
Aliás este “Manhas da língua”, tópico do terceiro livro, tem alguns textos memoráveis, entre eles um que trata da escolha do nome de “Condoleeza Rice”, que foi a chefe da segurança do governo dos EUA, no seu período mais bélico, a era Bush. Há na escolha de seu nome algo que se aparenta com a forma como nós, brasileiros, escolhemos os nomes de nossos filhos. Ao menos, há alguma aproximação. Nós imitamos os americanos, não poucas vezes, com o “Máicon” de “Michael Jackson”, eles lá imitam os europeus, ao menos neste caso, com a expressão “com dolcezza”, com doçura, que vai dar na “Condoleeza”. E Rice significa arroz. Arroz com doçura. Tem também o nosso, nosso não, lá dos vascaínos, Odvan em homenagem à canção de Roberto Carlos: O divã.
Ainda em relação a estes textos mais despretensiosos, ou que conseguem fazer aparecer dimensões da realidade cotidiana que deixamos de lado, temos o Ronaldinho Gaúcho e o Romário com algo do sertanejo de Euclides da Cunha; uma curiosa querela com um leitor sobre Harry Potter; uma outra querela com leitores, ainda mais interessante, por conta de uma interpretação a respeito de Caetano e Chico, com o engraçadíssimo título “Tesconjuro assombração”. E o Cafu, capitão do penta, quando do momento da celebração do título, a quem ele o dedicou? À pátria, à nação, ao povo brasileiro? Não, à sua esposa. É o homem cordial atuando aqui, da forma mais imprevista.
Seguimos com os livros. Por vezes, alta noite, se estamos na estação do verão pelotense infernal, sentimos como que o vento norte, que sopra “caliente, que viene de la selva, y al que tradición popular le atribuye un efecto negativo sobre el comportamiento, haciéndolo responsable de asesinatos, suicídios, incidentes violentos, ataques súbitos de locura”. Cruz credo. Tesconjuro assombração!
Por fim, terminamos da forma como começamos. Deixando tudo em aberto, o amplo leque possível de repertório temático, forma de escrita, análise. O prazer pela palavra. Textos longos sucedidos por textos, por vezes, de uma página apenas. Modernidade, racionalidade, iluminismo, pós-modernismo, cidades do Brasil e do mundo, artes, literatura, canção popular, cinema, Rio Grande do Sul, São Paulo, vento norte, vento sul, cultura de massa, futebol, nossos vivos, nossos mortos, nossa língua e tantas coisas mais. E, como não se adia um abraço, dou esse texto aqui como uma forma de abraço e de celebração da vida a este escritor que sabe que, nascendo no extremo Sul, em POA, Satolep, periferia de São Paulo, Rio de Janeiro, Nordeste, Norte, o que for, somos todos brasileiros, radicalmente, e cidadãos do mundo, deste tempo, do nosso tempo.

Marcos Lacerda
Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPel e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades. Doutorado em Sociologia pelo IESP/UERJ (2011-2015). Foi Diretor do Centro da Música da Funarte / Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para a música no Brasil, entre maio de 2015 e março de 2017. Atua na coordenação e curadoria da coleção Caderno Ultramares, da OCA Editorial de Portugal, ao lado do crítico e editor Sérgio Cohn. Autor de “A sociedade das tecnociências: Introdução à obra de Hermínio Martins” (Ateliê de Humanidades, 2020) e organizador, com André Magnelli, de “Sociologia das tecnociências contemporâneas” (Ateliê de Humanidades, 2020).
Deixe uma resposta