No contexto do lançamento de “Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio”, que faremos nesta quinta-feira, 14 de outubro, às 19h, publicamos um texto de Luís Augusto Fischer (retirado do livro), onde o autor apresenta sua proposta de modelo para uma nova história da literatura brasileira.
Desejo-lhes uma excelente leitura. Até amanhã!
A. M.
Fios do Tempo, 13 de outubro de 2021

Um modelo para
uma nova história da literatura brasileira
Luís Augusto Fischer
Como se pode contar a história da literatura brasileira hoje, neste começo de novo século? Os modelos tradicionais de relato historiográfico que lidam com o objeto literatura têm ainda algum sentido? Têm capacidade para abranger o que se produziu nos tempos mais recentes? Estão eles de algum modo atualizados no forte e pródigo debate atual no campo dos relatos historiográficos?
Aliás, cabe uma pergunta anterior: há algum sentido em pensar numa nova história da literatura no Brasil? Pode-se continuar pensando em uma nação específica, neste tempo de mundialização acelerada dos mercados e de instantaneidade de conversas via internet? Ou só fará sentido pensar a literatura brasileira como parte da literatura na América do Sul, ou nas Américas, ou no Ocidente?
Uma terceira camada de dúvidas: essa hipotética nova história da literatura no Brasil deve considerar também o horizonte do ensino médio, nicho onde há várias gerações se reproduz uma interpretação trivial desse rico processo histórico das letras no país?
E os debates que balançam a opinião pública no país em tempos recentes, como o feminismo e o direito à diferença, as políticas de ação afirmativa e a emergência de novos parâmetros de validação e circulação de livros, a digitalização da circulação de obras literárias e a leitura escolar na era do Enem, assim como as mais vigorosas mudanças no conhecimento que temos agora sobre o passado brasileiro — mudanças que envolvem sínteses inéditas, feitas sobre o trabalho empírico de duas gerações de pesquisadores produzidos na universidade, no Brasil e fora dele —, estão esses debates nítidos e alinhados suficientemente, de tal modo que possamos repensar a história da literatura no Brasil levando-os em conta?
Este livro é uma resposta positiva a tais perguntas. Crítica e complexa, empenhada e cautelosa, mas positiva. Não é uma nova história da literatura, não é um relato organizado; é uma reflexão sobre as condições para que uma nova história da literatura brasileira seja escrita. Um estudo que repassa analiticamente aquilo que considera os principais problemas, assim como a mais importante tradição historiográfica no campo. Um estudo que não apenas conclui ser possível conceber essa empreitada, como também oferece caminhos novos para que ela aconteça.
A verdade singela é que os três principais termos do meu assunto, aqui — história, literatura, Brasil —, sofreram abalos tremendos nas últimas décadas.
“Brasil”, como objeto de reflexão, mudou de tamanho e até de natureza, no plano da vida real cotidiana assim como no da discussão conceitual sofisticada. Perdeu força o nacionalismo que nos animava desde talvez a Independência, muito reforçado pelo pensamento do Modernismo paulistano, que nos governou mentalmente até há pouco, se é que de fato já foi destronado dessa condição, como deveria. A onda de integração dos mercados, contemporânea do fim da Guerra Fria e irmã da vida digital via internet, reposicionou o sentido e o alcance da vida nacional. Deve-se somar a tais fenômenos a mais recente geração de historiadores e antropólogos que se ocupam da matéria brasileira, responsável por uma revolução nos modos como concebemos até aqui o passado colonial, a escravidão, as interações das populações que formam a população brasileira. O trabalho de Fragoso, Florentino, Caldeira e Viveiros de Castro, lido com vistas a pensar a literatura no Brasil, revela caminhos promissores.
Da mesma forma o termo “literatura”: não foi apenas o intenso fenômeno das novidades formais praticadas sobre os gêneros tradicionais de literatura (romance, conto, crônica, poema etc.), nem apenas o terremoto da edição digital que modificou nosso modo de ler, sejam estudos críticos, sejam ficção e poesia; a própria noção do que é literatura, nossa compreensão acerca das modalidades de texto que pertencem ao domínio conceitual da literatura, tudo isso mudou. Não há quem possa, de cara limpa e com pensamento consistente, renegar por exemplo o destacado lugar que a canção ocupa no mundo das letras, no Brasil talvez mais do que noutras partes. Isso para nem falar de dimensões mais complexas e reveladoras ainda, como é o caso do problema da língua em si: uma correta compreensão contemporânea do que é uma literatura, em qualquer parte do mundo e mais ainda em países de tradição colonial, não poderá ignorar que as traduções fazem parte orgânica do processo social da literatura. E o que dizer das modalidades orais de artes da palavra, agora em evidência graças ao novo patamar da discussão sobre o papel histórico e o lugar vivo das línguas ameríndias e africanas? No plano da dinâmica real e cotidiana da língua, também notável é a pressão que exerce sobre os padrões cultos tradicionais do português brasileiro a força desse fenômeno que é o das chamadas redes sociais, como facebook, instagram e whatsapp, que são o palco diário e multitudinário da prática da escrita por gente que, há 20 anos, não escrevia quase nunca e agora escreve todos os dias.
Por fim, “história” é também um âmbito que se alterou de forma radical. A mesma novidade tecnológica dos computadores e da rede mundial de comunicação digital mudou as possibilidades de produzir e conhecer relatos históricos. Como nunca antes, massas de dados empíricos, acumulados pacienciosa e dispersamente, agora podem ser visitadas e interpretadas em nova produtividade, sob visada de conjunto que alinha milhões de dados, o que se pode constatar, entre muitos outros casos, na história da escravidão nas Américas. Por outra mão vêm as novidades do que podemos chamar genericamente de micro-história, ou de história da vida trivial, com experiência muito produtiva no Brasil das últimas décadas.
Nem o país, nem o objeto, nem o método: nada ficou igual, portanto.
O problema de uma história da literatura brasileira e o ponto de vista do livro
O propósito deste ensaio é escrever um estudo sobre História da Literatura. Em um sentido primeiro, tendo como horizonte o Brasil e sua literatura; mas não está fora do campo de interesses a dimensão americana do fenômeno e, mesmo, a dimensão novomundista, envolvendo, além das Américas, outras regiões colonizadas pelos europeus a partir do século 16.[1] O ensaio vai tratar de enunciar um modelo de descrição historiográfica para a literatura produzida no Brasil, em particular para o romance e outras formas de narrativa, sem porém descartar totalmente os demais gêneros literários e os gêneros discursivos em geral, numa visada que pretende ter validade para o largo período histórico que vem desde os começos da colonização até uma geração atrás, no final do século 20. Por pretensioso que pareça (e seja), o estudo considera ser possível estabelecer linhas dominantes para tal processo, expressas num gradiente cujos polos estéticos, ou cujas máximas realizações, são Machado de Assis e Guimarães Rosa: Machado, fina flor do espaço histórico da plantation, e Guimarães Rosa, suprassumo do mundo do sertão.
Peço calma e paciência ao leitor, porque desde agora estou fazendo abstrações, generalizações e extrapolações. Sei que os nomes de Machado e Rosa não precisam de maior esclarecimento, mas já tratá-los como representativos da plantation e do sertão é coisa sem muita transparência. Adiante vou apresentar as razões dessa vinculação, ao evocar, comentar e criticar teses sofisticadas de dois dos mais importantes intelectuais brasileiros de nosso tempo, Roberto Schwarz e Eduardo Viveiros de Castro. Do primeiro, discutirei em detalhes a lente das “ideias fora do lugar”, que tanta força já demonstrou na interpretação de Machado de Assis, entre outros temas; do segundo, coformulador (com Tânia Stolze de Lima) e grande divulgador da tese do “perspectivismo ameríndio”, e além disso um inimigo declarado da tese schwarziana, tomarei ideias que reposicionam a obra de Guimarães Rosa. A equação que proponho é complexa, mas tem certa elegância algébrica e, quero crer, bom potencial para descrever um conjunto relevante de fenômenos na cultura letrada brasileira.
Não vou escrever aqui uma nova História da Literatura Brasileira. Não por ela ser desnecessária. Nosso momento histórico parece ter enterrado, na universidade (mas não no mercado escolar), a leitura do processo histórico da literatura brasileira em seu conjunto. Comprimindo aqui com ironia as variáveis do cenário, parece que nenhum dos dois grandes polos do pensamento crítico no campo acadêmico brasileiro da literatura tem interesse numa empreitada como esta. Do lado dos pós-estruturalistas ou desconstrucionistas, qualquer narrativa abrangente, com visada de conjunto (ainda mais um conjunto balizado pela nação), é coisa regressiva. O lado da tradição marxista (lukacsiana, benjaminiana ou adorniana) também tende a rechaçar tentativas de leitura do conjunto porque as histórias nacionais seriam perda de tempo ou manobra diversionista em relação ao inevitável fim, a revolução socialista, que deverá ser supranacional. Isso quer dizer que este trabalho talvez esteja fadado a encontrar poucos leitores e escassa simpatia nessas duas colunas máximas da opinião literária da universidade brasileira.
Justifico a abordagem ao âmbito nacional brasileiro em um dos críticos-chave para o autor deste estudo, Roberto Schwarz, que será aqui várias vezes trazido ao debate, como apoio ou como alvo de crítica. Em entrevista concedida em 2004, desenvolvendo um comentário acerca da prática crítica de Antonio Candido, seu professor e referência incontornável para ele (e também para este que aqui escreve), ele repassa certa acusação de nacionalismo que alguns atiram contra o trabalho do mestre: como “a maior parte da historiografia literária é de inspiração nacional e como a nação até outro dia era um horizonte quase autoevidente”, ficava a impressão de que o horizonte da literatura e da crítica era, ou deveria ser, nacional também. Só que não: não se trata de nacionalismo, e sim de chão concreto — “a referência nacional [explicitada no trabalho crítico] não é uma bandeira, um preconceito ou uma velharia cediça, mas a descoberta crítica de um vínculo oculto, que aliás pode não ser lisonjeiro”.[2] É disso que se trata, e é o que tentarei fazer valer, no plano da descrição historiográfica da literatura brasileira: o Brasil não é uma essência atemporal, mas um processo histórico que pode ser considerado a partir do conjunto da literatura que nele se manifesta.
Fora do debate crítico de ponta, no mundo escolar e mesmo na graduação universitária, por certo há interesse em história da literatura, em livros didáticos, em geral praticando sobre o objeto literatura brasileira uma visada convencional, por preguiça ou convicção trivial, que leva a equívocos de fragilidade conceitual, leitura fraca das formas literárias e das estruturas sociais, assim como anacronismos, nacionalismos, adesismos e um forte modernismocentrismo, tudo sem culpa nem autocrítica. Fora do mundo escolar, também deve haver interessados, gente com vontade de conhecer um processo histórico de certo porte como é o caso, contando já com um conjunto de uns dez grandes autores. Como se conhece essa história, depois de sair da escola e de passar nos exames de ingresso para a universidade, para além dos clichês? Como o leitor interessado encontra guias para melhor compreender textos, ideologias, contextos, estruturas sociais e de sentimento?
Para filiar meu estudo ao contexto imediato e falar algo mais sobre o meu ponto de vista, cabe observar que no Brasil nas três últimas décadas, do fim da ditadura militar para agora, com a ascensão de posições políticas de centro e de esquerda reformista ao poder, de FHC até Lula e Dilma, vivemos um momento auspicioso de inclusão social e de certo otimismo quanto ao país. Por mais que agora, com crise do governo Dilma, seu impeachment, o governo Temer e o começo do governo Bolsonaro, haja um céu nublado na vida brasileira (polarização extremada de posições, decadência ética e política dos partidos de recente protagonismo, o PSDB e o PT, ascensão a cargos-chave da república de posições regressivas, censura a exposições e ameaças obscurantistas, até iniciativas oficiais que jogam explicitamente contra a ciência e o debate ilustrado), e que o horizonte internacional mostre também cenário turvo (no momento em que comecei a escrever este estudo, a Grécia estava à beira de quebrar e de sair da União Europeia, havia fugas massivas de miseráveis de várias partes da África em demanda da Europa, o assustador Estado Islâmico se declarava soberano sobre extensas faixas de território na Síria e noutros países, a China parecia ter nas mãos a definição do futuro de todos os países exportadores de commodities, como o Brasil, e depois a Grã-Bretanha viveu o chamado Brexit, solapando um processo sólido de integração, e houve um amalucado Trump no cargo mais forte da política mundial), meu trabalho nasceu, se desenvolveu e se inspira numa esperançosa perspectiva inclusiva. Meu trabalho alinha seu otimismo com o desejo de reformas sociais, tal como ocorreu em outros momentos “formativos” da história intelectual brasileira, como adiante veremos. Para ancorar meu ponto de vista num debate de âmbito ocidental, minha posição se aproxima de Habermas, com sua esperança na ação comunicativa como possibilidade de buscar acordos democráticos, e se afasta da radical negatividade de Adorno, que vê a atualidade (pós-Auschwitz) como um irrecorrível “sistema total de ilusões”.[3]
A literatura brasileira, matéria obrigatória na vida escolar, é um objeto peculiar para o historiador. Em regra ela foi e é narrada, nos livros e manuais, apenas por gente formada em Letras ou por letrados anteriores à especialização universitária, demonstrando ser um território vedado a historiadores de ofício. Assim ocorre também nos domínios das outras artes, sinalizando que o problema não é a literatura apenas, o que terá a ver com a tradição de ver nas artes algo de inefável, acessível apenas a uns poucos eleitos. É certo que muitos historiadores, sociólogos e mesmo antropólogos têm estudado aspectos, autores, livros, casos relativos à literatura brasileira, com grande ganho na compreensão dos fenômenos — sem ir muito adiante, citaria os trabalhos de Nicolau Sevcenko, historiador, de Sergio Miceli, sociólogo, e Alessandra El Far, antropóloga. Mas até agora nenhum desses especialistas apresentou uma narrativa de conjunto, nem se deduziu de seus trabalhos um modelo que pudesse eventualmente ser tomado para uma leitura do conjunto.
Como lembrado acima, as narrativas totalizantes, que tomam um objeto amplo como uma literatura nacional — mesmo a brasileira, de volume pequeno se comparada a outras — ou como uma economia nacional, são escassas em nossos tempos universitários, marcados pela ultraespecialização e pela fragmentação cognitiva que lhe corresponde. (Uma importante exceção, central para estetrabalho, é Jorge Caldeira, cujo trabalho vai ser adiante comentado com certo detalhe.) A crescente complexidade das sociedades atuais molda esse processo. Veja-se o caso do que alguns chamam de “virada identitária”,[4] aquele movimento nascido no final dos anos 1960, auge da Guerra Fria. Cá no começo da terceira década do século 21, já estando nós afastados daquele processo, encerrado com o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, podemos descortinar os contornos dessa virada, que se pode definir, de um lado, pela profunda crítica a várias modalidades de opressão (machismo, etnocentrismo etc.) e pela desnaturalização de enunciados e conceitos, assim como, de outro lado, pela crise da perspectiva nacional, que havia alguns séculos definia o modo ocidental de ver as coisas, as identidades e tudo que elas proporcionavam e impunham. Também entrou em crise a perspectiva internacionalista informada pelo marxismo, seja pela crise de sua versão soviética, seja pela derrocada objetiva da centralidade da classe operária fordista, posta em questão agora pela reivindicação das diferenças como o centro do jogo identitário e, mais ainda, pela nova realidade da economia, digital, desterritorializada e uberizada.
A virada identitária já produziu frutos interessantes no campo da crítica, da produção de antologias e até de alguma descrição historiográfica, no Brasil. Fiquemos em alguns casos. Em primeiro, os volumes da antologia Escritoras brasileiras do século XIX, organizados por Zahidé Lupinacci Muzart (vol. 1 em 1999, vol. 2 em 2004); em segundo, os também dois volumes da antologia Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (vol. 1 em 2015, vol. 2 em 2016), que seguiram os quatro volumes da obra Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, todos sob organização de Eduardo de Assis Duarte; e em terceiro, vários dos trabalhos de crítica e reflexão ligados à pesquisa liderada por Regina Dalcastagnè sobre literatura brasileira contemporânea, que tem produzido levantamentos empíricos significativos. Nesse tempo da contemporaneidade, devemos citar um quarto exemplo, protagonizado, na crítica, por Érica Peçanha do Nascimento, estudiosa da literatura periférica, especificamente de São Paulo mas com um horizonte aberto para outras latitudes, que publicou, entre outros, Vozes marginais na literatura, em 2009, numa perspectiva que privilegia o corte sociológico mas não ignora o corte étnico, dada a forte predominância da experiência negra no contexto.
É possível falar em um quinto caso, que traz diferenças radicais em relação aos outros tanto por seu tema, a literatura de ou sobre os indígenas, quanto por sua abrangência, a América Latina. Estamos falando de um livro excepcionalmente bem concebido e escrito, Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, de Lúcia Sá. Tomando como ponto de partida o território que apenas a partir do século 16 foi chamado de América, mas que já era território de uma gama de grupos étnicos, Lúcia Sá concebe uma divisão em quatro grandes ramos, filiados a quatro grandes troncos étnico-linguísticos (caribes, tupis-guaranis, arauaques e os nativos do Alto Rio Negro), cada qual tendo já sido objeto de narrativas, analíticas ou ficcionais, por parte de europeus e de ameríndios, cada qual sendo marcado por uma rica tradição oral. A riqueza e a originalidade da abordagem não cabem numa síntese meramente indicativa como esta que aqui faço, mas insisto que na tese de Lúcia Sá se encontra um ponto alto de convergência entre o domínio do relato antropológico e o da tradição literária, tanto a escrita quanto a oral — a autora, sabiamente, trata de pensar nas relações entre, digamos, Macunaíma, os relatos do naturalista Koch-Grünberg e a tradição oral associada, tudo nos marcos da literatura comparada. Um achado e tanto, que ainda não soubemos valorizar.
Em todos esses casos, que já conquistaram certa relevância dentro e fora dos muros da universidade, temos exemplos de produção acadêmica que por assim dizer fatiam o conjunto da literatura produzida no Brasil — um por gênero, outro por etnia, outro por tempo, outro ainda passando por baixo das fronteiras nacionais em favor de continuidades culturais muito mais profundas —, com vistas a dar visibilidade a linhagens específicas, mulheres no primeiro caso, afro-brasileiros no segundo, ameríndios no quarto [EB1] caso, concebidas de acordo com os preceitos da mencionada virada, ou a conjunturas particulares, no terceiro [EB2] caso.[LF3]
A virada e seus efeitos não são o fim do mundo, apenas o fim de um tempo histórico, anterior à presente revolução digital. Impactados pelas — ou mesmo encantados com as — novidades de computadores e internet, alguns pretenderam que acabava ali também toda possibilidade de descrever e interpretar fenômenos em conjunto, como sugeriu uma tendência pós-modernista francesa. Ocorre que a história da literatura acadêmica de fato morreu — isso em sua versão sofisticada, porque na versão banal, escolar, continuou viva, vendendo bastante e fazendo cabeças com sua interpretação trivial das coisas —, mas foi enterrada no mesmo sepulcro em que, com pressa injustificada, depositaram o cadáver da modernidade como um todo. O processo histórico, no entanto, não terminou, como de resto nunca terminará a marcha da história.
Veja-se uma analogia com recentes estudos de história, do Brasil e fora dele. É certo que na História em geral, como campo de trabalho — envolvendo dimensões amplas e variadas, a sociedade, a economia, a política etc. —, também assistimos ao espetáculo da grande diversificação e especificação de interesses, correspondendo a uma miríade de estudos tópicos, indo de baixo a alto na sociedade (de história de excluídos a história das elites, literalmente), abordando todo e qualquer assunto (estruturas econômicas e hábitos cotidianos, grandes correntes políticas e pequenas tradições esportivas etc.). Parecia enterrado o paradigma nacional e a visada de conjunto. Mas eis que surgem os casos de Jorge Caldeira e de Thomas Piketty. Produzindo ambiciosas sínteses, que abarcam conjuntos amplos de estudos particulares, estudos como esses servem de farol para o que aqui se pretende levar a cabo acerca da literatura brasileira.
Não se trata de falta de apetite da minha parte; pelo contrário, me agradaria muito poder escrever uma história da literatura no Brasil; mas isso, para mim, depende do estudo que aqui realizo, que visa a limpar o terreno e pensar sobre alternativas. Além disso, é algo que agora está acima das minhas capacidades objetivas. Por algum motivo não muito misterioso, as histórias da literatura brasileira relevantes, em especial aquelas produzidas depois de Machado de Assis, foram concebidas e escritas no momento ascendente das vidas intelectuais e das carreiras de seus autores,[5] em regra antes dos 40 anos de idade. Escrever uma história de literatura, mesmo de uma literatura relativamente pequena como a brasileira, requer também juventude.
Mas também se requer um modelo, seja aos 20 ou aos 60 anos de idade do autor. Um modelo historiográfico capaz de suportar, nos bastidores dos pressupostos e no palco das intenções explícitas, uma narrativa de fôlego como é a história de uma literatura. Aqui, no problema do modelo, está o miolo do interesse deste trabalho. Aquela possibilidade de acumular evidências à maneira positivista, e simplesmente dispô-las em sequência cronológica e/ou causal, entrou em crise terminal no plano acadêmico exigente (mas não no plano da escola), e disso até mesmo os melhores historiadores da literatura brasileira mencionados no quadro já sabiam, cada um à sua maneira.

Há experimentos de interesse no campo historiográfico da literatura. Tome-se L’histoire littéraire des écrivains, de 2013, dirigida por Vincent Debaene, Jean-Louis Jeannelle, Marielle Macé e Michel Murat.[6] Trata-se de uma coletânea muito interessante, com nove estudos que de modo variado se articulam, em perspectiva histórica, sem compor uma narrativa única. O ponto de partida distingue seu procedimento daquele das histórias literárias acadêmicas: os diretores do volume pensam na “história literária dos escritores” como “a história literária tal como ela é contada e construída pelos autores eles mesmos, o relato ‘indígena’ e plural de uma aventura coletiva”. O material básico para uma empreitada desse tipo consiste, então, de prefácios, ensaios, entrevistas, tomadas públicas de posição, e se encontra em manifestos e panfletos, em autobiografias e diários, assim como na organização de coleções editoriais e de antologias, e até mesmo no enredo de romances. O inimigo principal parece ser o que os organizadores chamam de “classicocentrismo”, representado por Gustave Lanson e outros, os historiadores das grandes narrativas, equivalentes aos brasileiros Romero e Veríssimo. Os diretores dessa nova história pretendem, com a obra, participar do que chamam de “um movimento mais geral de pluralização da história literária”, alargando-a e recusando a grande narrativa.
O texto de apresentação nota que o material de base para a história que eles propõem aparece com mais clareza a partir do final do século 19. O motivo seria, segundo os autores, uma reação exatamente à história da literatura, uma tentativa de reapropriação do discurso historiográfico por parte dos escritores. Haveria então uma força centrífuga, protagonizada pelos escritores, contra a força centrípeta representada pela história literária. Finalmente, dessa nova abordagem resultaria uma “desnacionalização de facto” do corpus, uma vez que os escritores, naqueles vários gêneros discursivos tomados em conta, apresentariam preferências, genealogias, famílias, séries de referências e laços afetivos e intelectuais que não têm motivos para respeitar a dimensão nacional. Felicitam-se os diretores, enfim, porque seu esforço seria coroado com a evidenciação de que “a história da literatura não é una e monolítica”, e sim cambiante, mutável etc., bem ao gosto do momento pós-virada identitária, mas ao mesmo tempo implicando a construção de uma linhagem interna ao mundo das letras, com história específica, alheia ao mundo das relações sociais, econômicas, políticas do conjunto da população.
Poderiam ser colocadas na companhia dessa iniciativa francesa dois estudos de fôlego produzidos no Brasil, ou ao menos sobre o Brasil, ambos agora obrigatórios para pensar história da literatura. Primeiro deles é o clássico O livro no Brasil, de Laurence Hallewell (primeira edição brasileira em 1985, tradução de um estudo de 1982; segunda edição revista e aumentada em 2005), uma extensa pesquisa documentada sobre editoras, livros, mercado, enfim. O outro é A formação da leitura no Brasil, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (primeira edição em 1996, segunda em 2019), que traz no nome duas variáveis definidoras, uma a de “formação”, tema que adiante abordaremos, na esteira de Antonio Candido, outra a de seu objeto, o leitor, a leitura, isto é, a recepção dos livros no Brasil, muito dependente do sistema escolar.
Para compor um fundo para essa conversa, lembro que mais de uma iniciativa já existe em direção semelhante, ao menos na forma de antologias de textos desse teor — prefácios, cartas, comentários, críticas de escritores falando de escritores. Lembro aqui quatro, em ordem cronológica e sem maior relação entre si. O primeiro, que os colegas franceses deveriam talvez conhecer, é o Edmund Wilson de The shock of recognition, que traz o subtítulo The development of literature in the United States recorded by the men who made it (1943), no qual lemos textos de escritores norte-americanos a falar sobre a literatura de seu país, com suas limitações e potencialidades, compondo no conjunto uma espécie particular de história, organizado e comentado por Wilson. O segundo se encontra na obra Los novelistas como críticos, em dois volumes, compilação produzida por Norma Klahn e Wilfrido H. Corral, publicada em 1991. O terceiro é um nome brasileiro: Sandra Guardini Vasconcelos, que publicou (e traduziu) em 2007 uma excelente coletânea de textos de mesma natureza sobre o tema, no livro A formação do romance inglês, que igualmente dá a ver o lento processo de tomada de consciência e de construção objetiva do romance no mundo inglês. O quarto é Fernando Gil, que organizou e comentou material semelhante ao de Sandra Vasconcelos para o caso brasileiro, em Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836–1901).
Em contraponto com essas experiências, na Argentina tem aparecido uma obra de fôlego, mas não sei dizer se com alto ou baixo impacto na universidade e nos circuitos de ensino e pesquisa do país, a Historia crítica de la literatura argentina, sob direção geral de Noé Jitrik, obra planejada para 12 volumes, que vem sendo editada há mais de dez anos — o volume segundo, que foi o primeiro a sair, tem data de 2003 e leva o sugestivo nome de “La lucha de los lenguajes”, sob a direção de Julio Schvartzman. Trata-se de um trabalho feito a muitíssimas mãos, a partir de um esquema geral concebido por Jitrik, e o resultado é um agregado de ensaios temáticos reciprocamente isolados, cada qual com maior ou menor força segundo o autor, mas de todo modo não é uma iniciativa inovadora, nem em método, nem em concepção. A tradição crítica argentina conheceu outra proposta de história literária, sob o título geral de Historia social de la literatura argentina, com direção geral de outro representante da mesma geração de Jitrik, David Viñas, e extenso elenco de colaboradores. Tanto quanto sei, apenas o volume VII foi editado, de um conjunto de 15 imaginados, em 1989. Em 2006 foi publicada uma Breve historia de la literatura argentina, por Martín Prieto; para as comemorações do bicentenário da Independência do país, o mesmo Jitrik publicou um Panorama histórico de la literatura argentina, em 2009. As duas histórias coletivas encontram termo análogo, para o mundo brasileiro, tanto na obra de Afrânio Coutinho quanto na mais recente de Sílvio Castro, para a editora Alfa, de Lisboa; as duas outras não encontram paralelo adequado entre nós, me parece: não houve, de dentro da academia, um esforço de síntese dessa magnitude que viesse a público no mesmo período.
Meu caso nada tem a ver com esse cenário. Ainda que concorde com várias das críticas, explícitas ou não, ao modelo que os franceses de L’histoire littéraire des écrivains chamam de “savante”, acadêmico, minha tentativa será mesmo a de um “grand récit englobant”, uma grande narrativa de conjunto, mas com inovações críticas e historiográficas que espero justifiquem o esforço. (Vontade eu tinha, tão abrangente eu desejo uma história da literatura, era de propor que estudos como aqueles que o livro apresenta fossem eles também incorporados a uma perspectiva de conjunto. Mas bem, há muitas distâncias entre o caso brasileiro e o francês; sem ir muito longe, a perspectiva internacionalista é, para eles, uma evidência cotidiana, dada a situação geográfica do país, dada sua história e o papel que a literatura francesa desempenhou Ocidente afora, dada a atualidade multiétnica e, apesar de tudo, multilinguística do país, aspectos todos eles distintos do caso brasileiro. O que não quer dizer que não devamos, no Brasil, pensar comparativamente, ou considerar o papel da literatura não brasileira na constituição e na atualidade da literatura praticada no Brasil. Mais sobre isso, adiante.) Mas também não tem meu caso a ver com as duas histórias sintéticas de Prieto e Jitrik, porque pretendo menos fazer uma narrativa sobre o conjunto da literatura brasileira baseado nas mesmas premissas de uma história que isola a produção literária numa série exclusiva (descrita pelos termos usuais a designar supostas escolas, tendências etc., em sucessão fantasiosamente linear), e mais, muito mais, encontrar um jeito de formular uma história da literatura segundo outras premissas, que espero poder apresentar adequadamente no curso da minha argumentação. Para dar uma manchete, evoco aqui o subtítulo do trabalho — “Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio”, e com essas duas categorias indico o rumo do meu raciocínio.
É bem possível, então, que o que aqui se ensaia analisar e propor fique, desde sempre, condenado a circular apenas entre uma fatia específica do campo literário universitário, parece que cindido de modo agora irremissível entre quem acha que vale a pena alguma história de literatura como uma narrativa totalizante, muito pouca gente, e quem não considera tal empreitada válida, por qualquer motivo. Na face defensável dessa cisão, estamos diante de uma enorme diferença de pressupostos — de um lado (o meu), os defensores da visão de conjunto sobre a literatura, concebida como fortemente conectada com as demais dimensões históricas da experiência humana, o que inclui a dimensão nacional (devidamente desessencializada e não excludente), e de outro aqueles marxistas (em geral adornianos) a quem repugna uma abordagem nacional, neste particular caso ecoando os defensores de abordagens exclusivistas do literário, como ocorre na tradição formalista e com os defensores de perspectivas desconstrucionistas, de variados matizes, dos mais críticos ao poder aos mais niilistas.
Aqui, um parêntese mais largo. Um dos mais importantes críticos de literatura de nosso tempo e figura central para mim, Roberto Schwarz, em um texto de debate com Alfredo Bosi definiu o que parece ser, para ele, a condição ideal para o exercício crítico.[7] Lembrando que Bosi, naquele contexto de 1992, fazia uma leitura fraca do presente, porque parecia não levar em conta o fato de que as promessas inclusivas do desenvolvimentismo brasileiro teriam perdido a possibilidade de virar realidade, dadas as novas formas de internacionalização do capital, e portanto estava, em seu livro ali criticado (Dialética da colonização), desejando a “miragem de uma integração nacional em patamar mais alto, humanamente defensável”, Schwarz considera que Bosi deveria ter trazido as “ilusões” do passado ao primeiro plano, para analisá-las, mas sempre tendo em vista o “ponto de fuga da transformação efetiva”, ou seja, explicito eu, o socialismo. Subscrevo a leitura de Schwarz quanto ao trabalho de Bosi — e também seu elogio ao bom papel que o livro terá tido e talvez ainda tenha junto aos leitores, aos professores de escola e alunos, por mostrar contradições importantes inscritas na vida e na obra de muitos escritores ali comentados —, mas não posso deixar de lembrar minha perspectiva reformista, habermasiana, bem mais modesta em matéria de mudança social, mas talvez — espero — suficiente para, e compatível com, um projeto historiográfico como o que aqui se esboça: ali onde Schwarz considera essencial tomar em conta a “transformação efetiva”, aquilo que se chamou desde Marx de revolução, o socialismo (mas qual? como?), bem ali, no ponto de fuga, no futuro desejado e tomado cá no presente como critério de crítica e de valoração das ações e das obras, bem ali eu aloco uma utopia modestíssima, que deseja reformas na direção de maior igualdade social, com maior distribuição de renda e mais democracia, num quadro de sustentabilidade ambiental, sem no entanto considerar que tais mudanças resolvam a vida de todos em toda parte, como deseja em abstrato o socialismo. Não pretendo com isso diminuir a importância política de lutar sempre e mais por tais reformas e mudanças, mas também não fantasio que haverá um ponto ótimo dessa trajetória, tal que seja capaz de ancorar, como defensável e suficiente em termos epistemológicos, um projeto crítico no presente. Não acredito na pretensa superioridade cognitiva ou moral dos que se têm na conta de revolucionários, nem me ilude a fantasia de que meu pressuposto reformista seja mais digno do que o pressuposto revolucionário — mas creio que o lado que escolhi padece menos de certo mal para o exercício da história (da literatura ou de qualquer outra matéria) que adiante vou tentar detectar e criticar, o mal da teleologia.
Além dessa marca reformista, carrego conscientemente outra, que também me coloca em condição periférica, aos olhos de uma visada escatológica: vivendo em Porto Alegre, cidade grande mas que não é capital política ou financeira do país, e professor de uma universidade secundária segundo rankings diversos, ainda que sempre entre as primeiras do Brasil, meu ponto de vista não desfruta daquela condição que, segundo a utopia da negatividade adorniana — que é ótima para mostrar que tudo não passa de ilusão e rende momentos de verdadeira capacidade crítica em meio a muita espuma autocongratulatória e imobilista (embora reivindicada como de esquerda revolucionária), mas que configura muitas vezes uma modalidade interessante de neoplatonismo, a meu juízo —, seria básica para poder ter uma adequada visão de conjunto, a saber, estar vivendo no local em que as coisas se expõem de modo total e supostamente mais nítido.[8] Por todos esses motivos, evoco aqui a cruel imagem de Lukács, utilizada mais de uma vez e contra inimigos diversos. Ele ironizou, em 1962, aqueles teóricos e seguidores da Escola de Frankfurt que desqualificavam a priori ações que consideravam meramente reformistas, as quais seriam apenas engambelação e diversionismo contra o fatal curso da história na direção da sonhada revolução ou, pior, sem direção alguma, dado o “sistema total de ilusões” da sociedade totalmente administrada; Lukács dizia-os instalados no confortável Grande Hotel Abismo, sem correrem risco algum, vendo de longe a vida real, o “abismo” da piada, a partir da janela do quarto desse hipotético hotel situado na beira do buraco, mas dotado de todo o conforto, com todas as refeições do dia e sempre no ar-condicionado. Meu ensaio reivindica ser uma ação no campo específico da história da literatura, e uma ação reformista, sem ilusões revolucionárias.[9]
Bem, é talvez inútil admitir isso tudo lisamente, mas é assim: cá estou eu propondo uma leitura de conjunto da literatura brasileira, assumidamente próxima da história social e mesmo da história econômica, tendo uma visão reformista da sociedade, o que quer dizer que não uso qualquer utopia socialista para pensar o presente e regular meu ponto de vista, e bem ao contrário pretendo avaliar os eventos e os processos do campo literário de modo mais próximo das coisas, da empiria, do que de algum evento ou processo ideal. Para formular a outra ponta do problema, tomo auxílio de Franco Moretti: em nota de comentário, no livro O burguês: entre a história e a literatura, ele justifica determinada opção, feita ao revisar certo capítulo de seu livro, com uma distinção de grande valia para os meus fins. Diz ele que a opção escolhida “ressalta a diferença entre história literária como história da literatura […] e história literária como (parte da) história da sociedade”.[10] Meu caso é, como o dele, o segundo: este estudo quer pensar a história literária como parte da história da sociedade brasileira, sem ancorar meu ponto de vista numa utopia revolucionária que sancione minha visão desde um futuro redentor.
Assim, cá estou eu, com essa perspectiva, querendo entender e descrever melhor o objeto a que me dedico há tempos, a história da literatura brasileira (e novomundista), pensando em ajudar o leitor a melhor compreender e a mais livre e informadamente poder usufruir da — e dar a ver a — literatura abrangida por essa história. Cá estou eu, sem a fantasia, que nunca tive, de que apenas a revolução socialista, quando viesse, iria conferir sentido a tudo, mesmo ao presente, o qual seria deduzido sempre e tão somente daquele futuro, daquela utopia. (Pessoalmente, conheci por dentro uma estrutura de pensamento e crença bastante semelhante a essa na escatologia cristã, de que me afastei ao final da adolescência; vai ver, é por isso que eu sou inimigo de qualquer escatologia, como adiante vou comentar ao discutir sobre Bakhtin e S. J. Gould. O mundo vai acabar mesmo é com um suspiro, como disse o famoso poeta cético.)
Cá estou eu sem portanto referir minhas análises e propostas a um devir radioso, em que não haveria mais nação alguma, porque não haveria nem mesmo burguesia, classe média, proletariado ou precariado, nem opressão qualquer. Cá estou eu, bem mais singelamente, pensando em ajudar a ler literatura para ser mais inteligente e mais sensível, e também para melhor entender e enfrentar a opressão; e não só aquela opressão que seria a suprema, a última delas, na visão que se tem desde qualquer das janelas do Hotel Abismo, mas outras, menores em alcance mas nem por isso inexistentes, mais cotidianas, menos vistosas. Não me considero vítima de nenhuma conspiração, nem me considero mais importante ou ousado do que ninguém; ao escrever isso aqui não estou correndo riscos para os quais caiba pedir a atenção solidária do eventual leitor, nada disso: aqui vai apenas uma tentativa de me apresentar e de analisar e propor algo no campo da história da literatura brasileira
Notas
[1] Desde logo, fica anotada minha dívida para com os trabalhos de Ian Alexander, neste particular.
[2] Martinha versus Lucrécia, p. 288–9.
[3] Uma síntese excelente dessa diferença se encontra em Grande hotel abismo: a Escola de Frankfurt e seus personagens, de Stuart Jeffries, especialmente a Parte VII.
[4] L’insécurité culturelle: sortir du malaise identitaire français, de Laurent Bouvet, analisa o caso e cita abundante bibliografia sobre o conceito.
[5] Veja-se este quadro:
Autor | Idade | História | Primeira edição |
Sílvio Romero (1851–1914) | 29 | História da literatura brasileira | 1880 (muito revisada em 1902) |
Ronald de Carvalho (1893–1935) | 26 | História da literatura brasileira | 1919 |
Nelson Werneck Sodré (1911–1999) | 27 | História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos | 1938 |
Antonio Candido (1918–2017) | 41 (27 no início do processo) | Formação da literatura brasileira: momentos decisivos | Redigido entre 1945 e 51, editado em 1959 |
Alfredo Bosi (1936) | 34 | História concisa da literatura brasileira | 1970 |
José G. Merquior (1941–1991) | 36 | De Anchieta a Euclides | 1977 |
Outros casos: Erico Verissimo (1905–1975), aos 39 anos, em 1944, publica nos Estados Unidos, onde residiu, uma excelente narrativa, Brazilian literature: an outline (Pequena história da literatura brasileira na tradução, que só ocorreu em 1994); Afrânio Coutinho (1911–2000) publica a coletânea A literatura no Brasil entre 1955 e 1959, quando tinha de 44 a 48 anos. Casos diversos: José Veríssimo (1857–1916) publica sua História da literatura brasileira no ano de sua morte, aos 59; Manuel Bandeira (1886–1968) escreve a Apresentação da poesia brasileira em 1946 e sua Literatura hispano-americana em 1949, aos 60 e 63 anos; José Aderaldo Castello (1921–2011) publicou sua Literatura brasileira: origens e unidade em 1999, passando dos 70 anos. Para um outro quadro, de grande valor, ver The triumph of brazilian modernism, de Saulo Gouveia, pp. 94–5, com dados, inclusive de ordem biográfica, sobre autores de histórias da literatura no Brasil nos anos 1950.
[6] As citações são da Introdução, p. 17–25, com tradução minha.
[7] “Discutindo com Alfredo Bosi”, in Sequências brasileiras.
[8] Certa vez, um ótimo crítico cultural paulista, Marcelo Coelho, ao elogiar gentilmente um livro meu, Para fazer diferença (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999), fez a frase sintética desse ponto de vista, combinação de adornismo com a naturalização do absurdo centralismo da vida brasileira, agora ancorado em São Paulo: “Fischer, neste livro, mostra como se pode ser inteligente a partir de um ponto de vista fraco — a província rio-grandense”. E se trata, note bem, de um elogio. Procurei discutir um pouco este tema, mostrando a vinculação que os adornianos fazem entre [cidade grande] e [condições certas para a grande arte e o grande pensamento crítico] no artigo “Em busca do narrador: traços do pensamento do jovem Schwarz”, publicado no livro Um crítico na periferia do capitalismo, organizado por Milton Ohata e Maria Elisa Cevasco.
[9] Não sou especialista no tema, nem no autor, mas parece ter havido duas diferentes conjunturas em que Lukács criticou adversários com essa imagem: nos anos 30, assestou suas baterias contra os social-democratas; depois, nos anos 60, contra os adornianos. Ver, para o primeiro caso, “Gran Hotel ‘Abismo’”, publicação póstuma, de 1984, em Revolutionäres Denken, traduzida ao espanhol por Román Setton; e para o segundo “Der Spiegel entrevista o filósofo Lukács”, com apresentação e tradução de Rainer Patriota, in http://www.Revistaon-linedeeducaçãoeciênciashumanas n. 9, Ano V, nov. 2008. Consultados na web, março de 2017. Uma síntese narrativa do caso, que mostra Brecht em aliança com Lukács contra Adorno e Horkheimer, se encontra no cap. 5 do livro justamente intitulado Grande hotel abismo, de Stuart Jeffries.
[10] p. 198.
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