Fios do Tempo. O caso telegram e as tecnocracias transnacionais – por Marcos Lacerda

O caso Telegram animou o debate público brasileiro por causa da decisão de bloqueio por parte do Ministro Alexandre de Moraes. Terá sido uma decisão acertada do ponto de vista jurídico? Terá ela justificações políticas ou pragmáticas que vão além da questão legal? Trazemos a análise de Marcos Lacerda sobre a questões implicadas em tais fatos, criticando as facilidades de um posicionamento ideológica e politicamente míope.

Para uma outra perspectiva, convidamos também para a leitura do texto da parceira Bia Martins, publicado no site Em Rede (A decisão de bloquear o Telegram foi acertada? Sim e não).

A. M.
Fios do Tempo, 25 de março de 2022



O caso telegram e
as tecnocracias transnacionais

O telegram é um aplicativo, como qualquer outro, embora com menos controle. É possível compartilhar informações, fazer contatos, criar grupos e assim por diante. Lá existem grupos extremistas, como existe também em outras redes sociais, à direita e à esquerda. Discurso de ódio não é atributo exclusivo de um espectro ideológico, muito menos de um grupo social. Um livro lançado este ano, “O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias” (2022), de Elizabeth Roudinesco, mostra isso claramente. Apologia da violência, da perseguição social, da censura, da queima de livros, da estigmatização do bode expiatório da vez são comuns também no chamado campo “progressista”, especialmente na sua deriva identitária, embora tenham uma maior condescendência social. Atores sociais com posição de destaque nos campos acadêmicos, intelectual, artístico, no âmbito deste espectro ideológico, também emitem discursos de ódio abertamente, sem muita preocupação.

Mas voltando ao telegram. Existe um problema real. É que ele tem algo de deep web, no sentido de o anonimato ser mais facilitado. Há uma liberdade maior, que pode ser usada para ações deletérias também. Grupos da extrema direita tem se utilizado dele. No entanto, é completamente falso dizer que o telegram se trata exclusivamente de um espaço de extremismo e crimes. Sinal de desinformação profunda. Basta fazer um pequena pesquisa. Dizer isso é agir da mesma forma que os negacionistas (de direita e de esquerda) agem, espalhando desinformação para causar pânico moral difuso. E é sobretudo agir em prol do monopólio de conglomerados empresariais que dominam o mercado das redes sociais. Dimensão fundamental, mas que simplesmente desaparece do debate. 

Para se ter uma ideia, o Facebook (incluindo Instagram, Messenger e WhatsApp) controla mais de 70% das redes sociais em celulares. E impõe suas normas, que não são decididas democraticamente, nem de longe. O que queremos, uma democracia de conglomerados empresariais, cujas decisões que envolvem a nossa vida devem passar por executivos e bilionários donos dessas redes sociais? Não parece sequer razoável pensar assim, e chega a ser curioso ver parte da esquerda se tornar defensora de uma tecnocracia transnacional, desde que defenda valores “progressistas”, e que claro distribuam dinheiro por fundações com algum nome em inglês. Sinal da degradação do horizonte de expectativas e de emancipação de parte expressiva da esquerda. 

Teve um jornalista da “Folha de São Paulo” que ressaltou o fato de o aplicativo ter que se ajustar às leis brasileiras. E que era bem feito o banimento dele. Então o que define a liberdade – não só de expressão – é exclusivamente a legislação, não podendo haver nenhum tipo de tensão entre a vida real e as normas institucionalizadas? Está na lei, logo é verdade? Então as normas institucionalizadas são uma verdade moral que deve ser utilizada contra subversivos que ousam, vejam só, questioná-la? Isso não cheira à visão autoritária da realidade social? Não se pode questionar isso, mostrar algum mínimo distanciamento crítico? Onde fica a tensão que novas tecnologias trazem para o monopólio dos meios de comunicação de massa por tecnocratas e seus funcionários bem adestrados, incluindo o tal jornalista da Folha de São Paulo? Que miséria a vida intelectual do país! Quanta estreiteza de espírito travestida de boa intenção social e política. 

E tem mais. Na querela do telegram, também se viu sites petistas, que já sofreram perseguições parecidas, e políticos da oposição comemorando, como se o aplicativo fosse uma invenção da militância de extrema de direita. Qual a lógica? Ah, existem espaços do ciberespaço fora do controle dos conglomerados empresariais e, nestes espaços, existem também grupos extremistas. Logo, vamos banir estes espaços! Não parece razoável. A estranha euforia diante da ação também atingiu cientistas sociais. O que faz soar o alarme, vamos dizer assim. Fica a impressão que sociólogos e sociólogas estão se transformando em uma espécie de lobistas de luxo, usando sua expertise para garantir o monopólio dos mesmos conglomerados empresariais, Google, Facebook etc., numa suposta “luta contra o extremismo”, acompanhando matérias sensacionalistas de meios de comunicação não menos monopolistas, como a Globo, por exemplo, ou o Intercept, o estranho jornal “independente” financiado por um bilionário. Espera-se mais de um espectro ideológico que costuma se atribuir o adjetivo de crítico. Muito mais do que a adesão apressada às versões de atores sociais poderosos que controlam e monopolizam os meios de comunicação de massa, seja na imprensa tradicional, seja nas redes sociais e no âmbito do ciberespaço. 

Marcos Lacerda

Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPel e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades. Doutorado em Sociologia pelo IESP/UERJ (2011-2015). Foi Diretor do Centro da Música da Funarte / Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para a música no Brasil, entre maio de 2015 e março de 2017. Atua na coordenação e curadoria da coleção Caderno Ultramares, da OCA Editorial de Portugal, ao lado do crítico e editor Sérgio Cohn. Autor de “A sociedade das tecnociências: Introdução à obra de Hermínio Martins” (Ateliê de Humanidades, 2020) e organizador, com André Magnelli, de “Sociologia das tecnociências contemporâneas” (Ateliê de Humanidades, 2020). 


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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