Fomos péssimos alunos, somos péssimos cidadãos: fracassamos como alunos da educação básica. Na falta de um senso de cidadania construído pelas instituições e na vida cotidiana, acabamos por desconhecer nossa própria história e a repetimos tragicamente, sem saber e como se destino fosse…
No artigo de hoje, Lindoberg Campos argumenta pelo reconhecimento deste fracasso, que é mais importante do que acusar o adversário político de alguma falha de caráter. O que precisamos para construir uma cidadania à altura de um Estado Democrático de Direito? Qual a nossa parte nisso, enquanto estudantes, professores e cidadãos?
Desejo uma excelente leitura!
A. M.
Fios do Tempo, 25 de setembro de 2021
Sejamos honestos
Bonito, Pernambuco, 25 de setembro de 2021
Sejamos honestos coletivamente, e cada um consigo mesmo. Fomos péssimos alunos da educação básica. E quando digo péssimos, significa dizer que jamais nos preocupamos com nossa vida estudantil. Falhamos como estudantes em diversos aspectos do cotidiano escolar. E, no entanto, essa falha não deve, nem pode, ser atribuída exclusivamente a problemas estruturais do sistema educacional. Refiro-me a uma culpa única e exclusivamente nossa.
Falhamos como estudantes porque não aprendemos o senso de cidadania. E veja que digo “senso” porque se expande para além de uma sistemática disciplinar. O senso de cidadania está na nossa capacidade de compreender a escola como lugar de possibilidade e de experimentação social. Não isento de responsabilidades, os sistemas educacionais e suas estruturas logísticas, pedagógicas e administrativas pesam muitas vezes com sua máquina burocrática sobre as mentes ainda em formação. No entanto, a constatação de sermos péssimos estudantes se dá pelo fato da percepção de quão péssimos cidadãos somos. Faltou-nos perceber que um depende do outro, se retroalimentam numa trama social complexa.
Hoje sequer sabemos o que é Poder Moderador quando ouvimos um presidente “republicano” ressuscitar uma instituição pretérita. Admitamos, faltamos à aula de história que nos ensinou que Poder Moderador era algo do período imperial e se referia a uma percepção um tanto quanto personalíssima do poder do Imperador. E, mais uma vez admitamos, não conseguimos identificar o perigo que essa vontade particular representa quando um presidente, dentro do sistema democrático, diz que esse poder se concentra em uma instituição como as Forças Armadas. Ou o sujeito não gosta de história, ou ignora o passado em nome de uma execução de sua vontade de poder.
Sim, fomos péssimos alunos porque certamente um professor, um mínimo que seja, em algum momento nos disse que deveríamos ler a Constituição de 1988. Lemos? Mas para que leríamos a Constituição se o mais importante era a Bíblia, palavra de Deus? Talvez a culpa não seja nossa, mas de nossos pais que assim nos ensinaram. A reprodução é natural. Estamos fadados a repetir os atos de nossos antecessores?
Mas é preciso admitir. Nunca, nós estudantes, nos preocupamos em compreender realmente o que era a sociedade e suas instituições. Nunca nos preocupamos em aprender os conceitos de cidadania e democracia. Por isso, para nós, é fácil aplaudir um presidente que afirma que a vacina vai nos transformar em jacaré ou que um cidadão armado jamais será escravizado. De fato, não sabemos como funciona a República Federativa do Brasil porque isso não era e não é pauta de reflexão cotidiana. E justamente por não ser algo presente em nossa vida comum chegamos ao ponto em que abertamente força-se o limite da democracia. Mas o que é democracia mesmo? Há aqueles que dirão “governo da maioria”. Patético? Pode ser, mas por que seria?
É preciso entender que o poder, ainda que emane do povo, se executa de forma indireta por meio de instituições estabelecidas dentro de um panorama histórico que explica sua funcionalidade. Se a Constituição de 1988 é chamada de Cidadã significa que rompe com uma herança autoritária e propõe um novo panorama. E esse horizonte cidadão se realiza pelo equilíbrio de forças assentadas numa partição que impede uma vontade personalíssima contemporânea.
Mas o que importa, se o interessante mesmo é achar que os problemas desse país se resolvem com armas? Não lemos Euclides da Cunha, pagamos o preço. Já em 1897, diante da miserável tapera, o autor dizia que erramos. Repetimos um refluxo ao passado, ao invés de enviar o “engenheiro e o mestre-escola” para integrar aquela população à “civilidade”, enviamos a Comblain, único argumento moral e necessário… Talvez, se tivéssemos participado mais ativamente do grêmio estudantil, saberíamos que democracia é um constante jogo de equilíbrio de forças para impedir arroubos autoritários. O problema se concentra quando admiramos desfiles e paradas militares não como representação de uma parcela da força coletiva que se manifesta sob o signo de uma bandeira única, mas como instituições capazes de atuar em momentos de crise, intervindo e nos levando para patamares de condução social igualitária.
Fomos péssimos alunos porque não aprendemos que a Independência em nada muda o sistema antecessor; que a República, ainda que desejada, nasceu sob o signo do autoritarismo, que se repetiu por outras duas vezes (Período Varguista e Ditadura Militar). Somos péssimos cidadãos porque assistimos bestializados o chefe do executivo proferir discursos cotidianamente que desafiam a nossa compreensão da organização do poder no Brasil. A Constituição de 1988, até nossos dias atuais, foi a melhor construção que conseguimos socialmente e mediante a tentativa de superação de uma experiência histórica antecessora. O mínimo que se pode fazer é aperfeiçoá-la, sem, contudo, colocar em xeque sua validade ou testar os limites daquilo que entendemos por jogo democrático.
Outorgar às Forças Armadas um papel de Poder Moderador é, no mínimo, anacronismo inconstitucional, em última análise deveria ser comparado a um crime, na falta de previsão legal. Aceitar passivamente as constantes ameaças do chefe do executivo demonstra o quão péssimos alunos fomos em não “aprender” o funcionamento da sociedade na qual vivemos. Péssimos cidadãos somos porque sequer possuímos o senso de cidadania em sua integralidade.
Fomos péssimos alunos porque a nós não nos importava aprender o processo de escravidão em sua profundidade. Preferimos ignorar que o fato do incentivo à imigração europeia tinha seus princípios higienistas. Se não lemos a Constituição, não é de se esperar que tenhamos lido a lei que expressamente dava apoio de 6 meses para os imigrantes, enquanto para o negro liberto deu-se apenas a “liberdade”, ainda que tardia. Mas esquecemos de integrar, preferimos alijar.
Mas liberdade é o que importa para chefe do executivo. Não a liberdade do “quae sera tamen”, mas a liberdade daquele que pode comprar armas de fogo no Brasil do século 21. Heranças… não demos atenção às heranças que carregamos. Só lembramos das capitanias hereditárias, lembramos. Saber como seu processo dá início a uma sequência de usurpação de terras e dizimação de indígenas, não sabemos. Talvez porque achemos que índio é coisa de 1500, ou porque realmente é mais interessante para um povo tupiniquim achar que nome estrangeiro na família é status de diferenciação.
Esquecemos que a herança não é apenas genética, é social, estrutural. Mas, para mostrar que realmente estudamos e que somos críticos, é preferível remar contra a maré, dizer-se consciente e afirmar que a escravidão foi benéfica para os negros do Brasil. O que dizer? Enfim, louvemos o 13 de maio e ignoremos o 20 de novembro (aviso para quem faltou a aula de língua portuguesa: contém ironia). E por último, afirmemos que bandido bom é bandido morto. Afinal, na redação do ENEM não podemos dizer isso, ainda. Lógico, o ENEM também é cerceamento de liberdade quando impede que critiquemos os direitos humanos. Maldito comunismo que insiste em permanecer rondando nossas pacatas e felizes vidas capitalistas.
Se, ao acreditar nos eventos cíclicos dos fenômenos, a história se repete, cabe uma dedicação maior em analisar os fatos contemporâneos à luz do pretérito para saber que os regimes totalitários se impõem pela força ou pela conquista democrática que logo é capturada por um discurso que subverte a lógica. Negar a eficácia das vacinas, menosprezar a conquista científica, bem como reproduzir discursos que não congreguem a multiplicidade, a pluralidade e a dinamicidade da experiência de cada sujeito social são mostras do quão fomos negligentes com nossa obrigação estudantil.
Nosso dever mínimo era ser melhor que nossos antepassados, aperfeiçoar suas conquistas, seja no plano da experiência social ou das normas e instituições que regulam as relações sociais. No entanto, no país que louva torturador e elege quem menospreza as instituições democráticas acusando-as a todo momento, lamentamos tal como Elis Regina e Belchior, que perpetuam suas vozes a zombar de si e de todos nós: [a nossa] “dor é perceber que, apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Sejamos honestos, falhamos; e pessimamente.

Lindoberg Campos é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), fundador-proprietário da instituição e marca Rodeador Cultural e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades.
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