Artigo. Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil…e vermelho – por Lindoberg Campos

Neste dia comemorativo de 07 de setembro, o Fios do tempo: análises do presente publica um artigo de Lindoberg Campos, propondo uma reflexão sobre o que é esta “pátria amada, Brasil”. Trazendo à tona as histórias esquecidas sobre as quais o país se construiu  e se constrói, Lindoberg propõe um sentido em ser patriota, para além do “se colocar diante da bandeira com gestos e ações orquestradas e cantando o hino com vigor”.


Descobrimento

Mario de Andrade

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.


Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil…e vermelho

Rio de Janeiro, 07 de setembro de 2019

Euclides da Cunha nos deixou uma lição ímpar: não reduzir a compreensão de Brasil a conceitos prévios e absolutos. Para quem ousou se lançar na leitura de sua obra, Os sertões, fica clara a virada de perspectiva de seu autor sobre o que era o Brasil. Se antes do contato com “nossos rudes patrícios” se apresentava um escritor convicto nas suas ideias de que a República deveria levar a “civilização” para o indômito interior por meio de seu braço armado, a realidade de uma nação que relega o seu próprio povo ao esquecimento e o lança à sorte mostra que a complexa teia histórica carrega em seu berço muito mais dinamicidade e traumas que poderíamos supor.

Somos, oficialmente, há 197 anos uma pátria. Pátria amada, Brasil. E nesses quase dois séculos assistimos atônitos às mais diversas tentativas de dar um sentido de identidade coesa e una. Mas o conceito de pátria ou nação é relativamente recente na história da humanidade. Data do século XIX a partir das lutas de independência dos Estados nacionais protagonizados na Europa. Desde então se convencionou buscar no passado momentos históricos e narrativas fundacionais que fossem fontes aglutinadoras de um senso de pertença o qual os indivíduos pudessem compartilhar.

No romantismo brasileiro, buscamos no indígena o mito identitário original para suprir uma lacuna de diferenciação para com a herança lusitana, mas esquecemos que o poder imperial brasileiro, patrocinador dessa busca ensandecida, trazia em seu pretérito a mácula de massacres e dizimações de populações inteiras de tribos indígenas. Fez-se do índio mero acessório imagético sem uma efetividade de sua participação na constituição e construção de uma identidade nacional. Sequer a República foi capaz de sanar tais problemas. Na sanha do progresso cego e inumano, as armas republicanas varreram à baioneta os movimentos populares, renegando uma possibilidade de cidadania e identidade na construção da nova imagem de nação e ainda validou o racismo estrutural por meio de teses científicas, ampliando o abismo humano no país.

Ainda que se represente o Brasil sob a égide do verde-amarelo da bandeira republicana, herdeira da imperial, o nome pelo qual designamos esse imenso território possui raízes etimológicas que remetem a “vermelho como brasa”. Sim, somos vermelhos na origem. Era a tinta vermelha extraída do pau-brasil que tanto encantou os europeus que dizimaram nossas florestas em busca do lucro econômico. Vermelhas eram as peles pintadas dos indígenas quando da chegada dos colonizadores lusitanos, franceses, espanhóis e holandeses. Antes de ser pátria amada Brasil, essa terra era Oreretama, Pindorama, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e de todos nós! Ao vermelho originário agregaram-se o verde da Casa de Bragança, o amarelo dos Habsburgo e o anil republicano.

Contemporaneamente, como se o espectro de um patriotismo tosco e mesquinho, herdeiro do regime militar, tivesse despertado de seu sono tumular, ouve-se aqui e acolá frases acerca do senso de patriotismo brasileiro sempre subordinado a uma concepção única ou sob a égide de uma instituição ou outra.

Pátria não é, ainda que pareça, definível ou tutelada por essa ou aquela instituição. No modelo republicano, no qual pretensamente estamos inseridos, pátria é um conjunto de crenças, valores e instituições que dialogam, intercambiam e perfazem uma pluralidade necessária. Não bastaria conhecer a Lei 5.700/71, como se ela reduzisse a compreensão substancial dos símbolos patrióticos, se faltasse o conhecimento efetivo das vicissitudes históricas e temporais que solidificam determinadas escolhas. 

Ser patriota não é apenas aquele que se coloca diante da bandeira com gestos e ações orquestradas e canta o hino com vigor. Ser patriota também é saber que essa mesma bandeira que tremula no mais alto céu está transvestida de sangue, dominação, guerras, alijamentos sociais pretéritos e contemporâneos. A criticidade não apequena ou invalida o senso de patriotismo, mas o lança no porvir que permite uma construção mais cidadã, fraterna e igualitária de uma nação que se pretende verdadeiramente humana. 

É preciso ampliar o entendimento de pátria para além de uma compreensão reducionista, ideológica, ufanista e partidária. Pátria, como dizia Mário de Andrade, “é o acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…”.

Mais importante que declamar “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” é saber que, se não houver políticas públicas efetivas na área de proteção ambiental e remanejamento do resíduos, em breve não existirá mais palmeiras, sequer sabiá que possa cantar. Mais efetivo que discutir “integração hodierna do indígena à sociedade” é saber se essa mesma “sociedade” possui políticas inclusivas, ou se, por trás de um discurso pretensamente democrático, ocultam-se interesses escusos e neocolonialistas. 

Não é preciso estar “abancado à escrivaninha em São Paulo” ou em qualquer lugar desse imenso chão nomeadamente Brasil para, tal qual no poema Descobrimento na epígrafe acima, se surpreender com a ignota percepção de que “na escuridão ativa da noite que caiu, um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, depois de fazer uma pele com a borracha do dia, faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu”. Se a Constituição de 88, dita cidadã, já trazia em sua letra o princípio da dignidade humana e o dever do Estado em prover condições mínimas de oportunidades de emprego e habitação, percebe-se que contemporaneamente os deveres são negligenciados e até mesmo colocados em xeque.

Pátria não é arena de ringue das paixões políticas, da divisão “nós e eles”, como se os muros resolvessem litígios crônicos. Pátria é a ágora do debate claro e limpo de opiniões divergentes, mas que se irmanam na luta pelo direito coletivo e individual da condição mínima de qualquer ser humano: viver com dignidade.

Brasileiro não é apenas aquele indivíduo que se julga definidor de critérios, ou o que possui condições financeiras favoráveis. Brasileiros são todos aqueles que madrugam à espera do ônibus no subúrbio para trabalhar nos centros urbanos; são todos aqueles que se amontoam nos trens lotados e se esmagam num sistema de transporte precário porque a corrupção desviou o dinheiro; são todos aqueles que lutam contra o sol impiedoso para manter vivo o gado e a lavoura no semi-árido já que as políticas governamentais não são aplicadas de forma eficiente e eficaz; brasileiros são todos aqueles que cotidianamente são martirizados em filas de hospitais; na busca do alimento vital para sua prole; brasileiros são os negros carregados nos tumbeiros e que deixaram como herança apenas a força, vontade e esperança de um dia terem seus direitos garantidos minimamente; são os índios dizimados no passado e que no presente veem um futuro ameaçador de mortes e perseguições a repetir os erros históricos numa espiral infinita.

Não é preciso que uma nova Canudos (como se já não houvesse tantas nos subúrbios, favelas e periferias) se levante como um grito de clamor a nos acordar do nosso sono dogmático de uma compreensão tacanha e mesquinha de patriotismo. O amor à pátria não se exibe tão somente nos desfiles militares do tradicional 7 de setembro, mas também subsiste no carnaval da raça que ganha as ruas e exibe o caldo cultural mais genuíno e múltiplo de uma nação que se faz com suor e sangue.

Lindoberg Campos

Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e doutorando em literatura (PUC-RJ)


Fonte da imagem: Pátria, de Pedro Bruno (1909), óleo sobre tela

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