Na saída das comemorações do dia da independência, publicamos hoje no Fios do tempo: análises do presente um artigo de Aldo Tavares sobre a força do patriotismo. Por que o nacionalismo pode ser marcante mesmo quando o Estado é ausente ou negativo na vida cotidiana dos indivíduos? Qual seu poder de sedução? Qual sua força simbólica de encantamento? Contrapondo-se ao discurso da luta de classes e buscando uma linha de fuga para além da polarização existente, Aldo nos convida a perceber, a partir de Maquiavel e Roland Barthes, sobre o poder do neutro na política.
O poder do Neutro:
ou como o Estado sabe encantar
Rio de Janeiro, 9 de setembro de 2019
Pai de três filhos, Marcos da Silva José, camelô no Centro do Rio de Janeiro, confessa sua ansiedade antes de 7 de Setembro, pois “não vejo a hora de estar no desfile militar com meus filhos e minha esposa; é bonito, tudo bem organizado, todo mundo em ordem. Tenho orgulho de ser brasileiro!!!”, emociona-se o trabalhador, cuja renda mensal não ultrapassa R$ 1,2 mil por mês.
Desempregada há dois anos, Maria de Jesus Evangelista vive de bico na periferia da capital fluminense enquanto o mercado formal de trabalho não a emprega como faxineira. “Adoro o Dia da Pátria, é o dia da ordem e da beleza no meu Brasil”, observa essa trabalhadora, acompanhada por seus dois filhos menores.
Na avenida Getúlio Vargas ou na avenida do Pai dos Pobres, percebo famílias que acordam cedo em dia de descanso para aplaudir a força bélica do Estado Nacional. Crianças contemplam o Urutu como se fosse algum super-herói de quadrinhos hollywoodiano enquanto outras inocências sonham em ser piloto de avião, soldado do Exército, mergulhador da Marinha. O Estado encanta desde a tenra idade.
Mas por qual razão Ele seduz pais, puros de coração, e mães? O Estado os seduz porque desfila a sua farda mais bem ornamentada, a mais bem passada, onde não se vê mancha ou amassado, farda cujo vinco impõe orgulho, qual seja, o de Pátria. Uma vez nesse tecido social de Nação, o uniforme de 7 de Setembro, com efeito, anula a démodé luta de classe por causa do fabricante das fardas, ele: o que, segundo Roland Barthes, burla o paradigma ou a oposição de dois termos, enfim, suspende as ordens, as leis, o puro discurso de contestação, a violência e, como desejo, ele é violência: o Neutro.
Quando surge pela primeira vez em O príncipe, o Neutro domina o principado não hereditário porque, enquanto representação, ele é rosto de César Bórgia, o favorito de Maquiavel por ser o melhor exemplo de poder amado por seus súditos, e só é amado por ser o Neutro. No caso de o Estado se fazer representar como rosto militar que desfila na avenida e como rosto popular que assiste ao desfile, anulam-se ainda mais tensões sociais por causa de que o Neutro, a Pátria, apresenta outro neutro, o estético ou a sensação de o camelô Marcos da Silva José e de a faxineira Maria de Jesus Evangelista assistirem à bela ordem fardada ao som do belo Hino Nacional. O Estado, que não desfila como Estado diante desses dois trabalhadores, veste-se muito bem de Nação, compõe muito bem versos e canta muito bem “nossos bosques têm mais vida/ nossa vida, mais amores” para emocionar o camelô e a faxineira desempregada. Aliás, o Estado apropriou-se desses dois versos do romantismo de Gonçalves Dias, Canção do Exílio, a fim de se neutralizar enquanto Estado com o rosto da Pátria, mas esse mesmo Estado, sem Canção, não se neutralizou quando exilou pós-64 três brasileiros, quais sejam, estes: que não ouviam o Hino da Internacional Comunista e muito menos seguraram em armas para defender a escola pública nacional, a saber, eles: três educadores – Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
No campo político, o Neutro pode “tender a” e, nesse caso acima, tendeu ao nacionalismo, sem que isso signifique, é óbvio!, deixar de ser neutro. Se só a força da extrema-direita e da direita consegue expressar o Neutro – sugiro a leitura de O mito, na direita, em Mitologias, de Roland Barthes, p. 168) -, a extrema-esquerda nem tem condições mentais de entender o Neutro como nacionalidade, pois ela ainda canta em alemão, por exemplo, na UERJ, o Hino da Internacional Comunista, com a certeza ideológica de que nem a União Soviética e muito menos Elvis morreram.
Aldo Tavares
Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e pós-graduando em filosofia (UERJ)
Fonte da imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil, Rio de Janeiro-RJ
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