Artigo. República, “desculpa o transtorno, estamos em construção”, por Lindoberg Campos

Neste 15 de novembro, dia da proclamação da República, o Fios do tempo: análises do presente publica um artigo de Lindoberg Campos sobre nossa república em construção. Se, nestes 130 anos, ele mostra que a história republicana tem muitas coisas a não se comemorar, tendo em vista que seu nascimento e percurso teve as marcas do autoritarismo e da exclusão, esta mesma história deve ser rememorada a fim de lembrar de que, para todos nós que republicanos somos, há muito ainda a fazer, e muito pouco a esperar.

São filhos da Pátria mais modestos e que constroem o espírito deste país cotidianamente que melhor expressam o inacabamento de nossa República. […] Redesenhar os prognósticos do futuro só se realiza com o diagnóstico dos males presentes herdados do passado, republicano ou não. A compreensão de democracia não pode ser capturada apenas como forma de ascender ao poder para depois assaltá-la com construções simulacrais de salvadores da Pátria.


República,
“Desculpa o transtorno, estamos em construção”

Rio de Janeiro, 15 de novembro de 2019

Sempre carregamos, em nossa bagagem histórica, uma herança que indubitavelmente nos molda e da qual não podemos fugir se quisermos projetar um futuro dinâmico. Ao completar 130 anos, a República já passou por provas de fogo (e continua a passar) que testam seus limites democráticos e desafiam o horizonte histórico. 

A república de um futuro que nunca chega

Há algumas longas décadas nos acompanha uma estranha análise sobre nossa constituição enquanto nação que se resume na frase de Stefan Zweig: “o Brasil é o país do futuro”.  Tenebrosa assertiva que condenou nossas expectativas a cumprimentos de desejos e vontades alheias, que não estavam integrados à nossa imagem narcísica fundacional.

Não o condenemos. Diante de uma Europa, berço do republicanismo, que ruía em guerra e negava a cidadania, isto é, o mínimo direito de existência a inúmeras pessoas, o simples fato de encontrar uma terra que acolha e permita que se pinte um horizonte de esperança torna-se o paraíso terrestre isento das querelas do seu simulacro celeste.

O que faltou a Zweig, como incrivelmente falta a muitos hodiernamente, foi o conhecimento da herança que essa terra possuía. Uma herança baseada na negação dos direitos a uns e favorecimento ilícito a outros poucos. 

Uma república de espírito anti-democrático

A mesma terra que acolheu imigrantes, muitos de forma voluntária e incentivada pelo Decreto nº 528/1890, foi a mesmo que negou o direito daqueles que aqui estavam por forçosa compleição da escravatura. Não bastou a tentativa negacionista, ou amenizadora, da escravidão que manchou cronicamente a história de nosso país por mais de três séculos, foi preciso oficializar por meio do hino da República que em sua letra camuflava tal patologia histórica: “Nós nem cremos que escravos outrora/Tenha havido em tão nobre País”.

República foi apenas um nome de regime a mais numa história que pouco teve de mobilização popular para efetivar tal modelo. Ainda que pareça paradoxal, nossa República nasce sob o símbolo da ditadura, não da democracia. Isso não apenas porque o povo assistiu bestializado ao movimento de fundação republicano levado a galopes de cavalo pelos militares do século XIX, mas porque sequer tivemos compaixão ou espírito cidadão pelo modelo governamental que nos antecedeu, e do qual o líder involuntário do movimento, Marechal Deodoro, era devedor de simpatia e amizade. Expulsou-se o Imperador Pedro II como se enxota uma raposa de um galinheiro.

Nascido de um espírito antidemocrático, o sistema republicano é um modelo governamental existente de acordo com as vicissitudes temporais e espaciais. A República trazia em seu berço uma herança da qual não podia ou, na pretensão de realização de seus intuitos, não quis se desfazer.

Foi na neófita República que o racismo se estruturou de forma mais explícita baseada em teses (pseudo)cientificistas que embasaram políticas públicas excludentes por meio de instituições diversas como institutos etnográficos e faculdades de medicina e direito do início do século XIX.

Para limpar o que era tido como uma mácula racial, leis foram implementadas no intuito de abrir nosso território para outros povos com o intuito de lavrar essa terra onde tudo que se planta dá. Mas, como bem explicita o artigo 1º do Decreto nº 528/1890, nem todos os povos eram bem-vindos. Aos Asiáticos e africanos tal abertura era vetada, e a explicação para essa restrição pode ser resumida no artigo de 19 de julho de 1892 do Correio Paulistano; nele exibe-se a mais pura e dilacerante mácula que uma nação pode carregar: o preconceito infundado e gratuito.

Se o período imperial necessitou de guerras para estabelecer seu poder, criando e fantasiando narrativas fundacionais para legitimar sua ação, à República coube um pulular de casos de intolerância, corrupção e guerras em nome de um poder que deveria emanar do povo e para o povo. Não é preciso lembrar os períodos ditatoriais, oficiais ou não, para vislumbrar a deficitária campanha de um regime que traz explicitamente em seu título o status de coisa do povo.

A nossa cultura de empréstimo, como bem delineou Euclides da Cunha, promoveu calamidades nas execuções de planos desastrosos: varremos do mapa à ponta de baioneta Canudos; palmilhamos milimetricamente o sertão nordestino caçando cangaceiros, mas sequer tivemos o compromisso de solucionar o problema da seca, legando à miséria crônica milhões de vidas humanas e levando à subumanidade outros tantos nos subúrbios das metrópoles; enchemos de migrantes o norte do país na busca pela borracha potencializando o esquecimento e deixando à própria sorte esses “rudes patrícios”. Não bastasse, ainda repetimos gestos desde o período colonial promovendo a matança sistemática de populações indígenas, criando desavenças entre povos autóctones e colonos numa ilusória campanha de ocupação de terras do Centro-oeste, deixando que se matassem da forma que melhor achassem. Por fim, perseguimos dissidentes políticos como se caça bruxas e enviamos aos porões da República assaltada. Tudo isso em nome da ordem e do progresso. A intolerância e a recusa da alteridade, ainda que paradoxal, parecem ser a marca republicana brasileira que cambaleante segue seu rumo.

Não poderia ser diferente, como um oráculo que lança na virtualidade temporal um presságio, o hino da República parece sintetizar todas as nuances desse sistema em voga e tão necessário de contínua construção. Rejeitado pela população como novo hino Nacional do Brasil, talvez num dos raros lances de mobilização popular – ou de vontade própria do Marechal Deodoro, as circunstâncias verdadeiras se perderam no tempo –  que reivindicou a volta do hino composto em 1831, coube o prêmio de consolo o modesto lugar de representante da Proclamação da República. Ainda hoje, filhos da Pátria recebem prêmios de consolo, ao invés de embaixadas, lideranças de partidos.

O que resta a nós, os filhos da pátria

São filhos da Pátria mais modestos e que constroem o espírito deste país cotidianamente que melhor expressam o inacabamento de nossa República. Assim Bezerra da Silva dizia que:

toda nossa esperança é somente lembrança do passado
a alta cúpula vive contagiada… pelo micróbio da corrupção
O povo nunca tem razão, estando bom ou ruim o clima (…)
É só caô caô pra cima do povo
Promessa de um Brasil novo
E uma política moderna.

Alijados do protagonismo, tal qual o evento de 1889, requisitados apenas como validadores na “festa da democracia nas urnas”, resta ao povo assistir bestializado os acontecimentos republicanos? Povo, concepção necessária e perigosa!! Cumpre saber se o vaticínio de Bezerra da Silva se cumprirá lançando sobre nós, pobres filhos da pátria, a sentença de que:

para tirar o Brasil dessa baderna
só quando o morcego doar sangue
e o saci cruzar as pernas.

Redesenhar os prognósticos do futuro só se realiza com o diagnóstico dos males presentes herdados do passado, republicano ou não. A compreensão de democracia não pode ser capturada apenas como forma de ascender ao poder para depois assaltá-la com construções simulacrais de salvadores da Pátria. Já não bastasse a deficitária consciência republicana que nos atormenta desde as dores do parto em 1889, o horizonte que se nos apresenta nesse instante, por meio de discursos inflamados, são máculas de um passado carcomido numa moldura totalitária. Alguns olham para o passado de forma enviesada e defendem a ressurreição de um cadáver putrefato que procria vermes que corroerão nosso futuro num lance instantâneo. Outros, saudosos de calabouços escuros, revivem uma história da qual sequer foram partícipes.

Resta-nos, numa utopia carnavalesca, refundar a República resgatando o cerne de sua origem, jogando ao inferno de Dante as figuras de heróis pasteurizados que porventura possam assaltar tão melindrosa conquista democrática. Cantar o “Liberdade, liberdade/Abre as asas sobre nós” num ritmo solto e verdadeiro e que não oculte sob eufemismos literários e políticos nossas feridas narcísicas. E que o horizonte avizinhado por Zweig não esteja numa imagem suprassensível, nem seja uma letra morta de um “hino de glória que fale/De esperanças de um novo porvir!”, mas que se realize substancializando os ideais republicanos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Republicanos que somos, não esperemos, façamos!

 



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