Fios do Tempo. Independência ou golpe?! – por Lindoberg Campos


Há algo de fantasma a ressuscitar neste peculiar 07 de setembro de 2021. Se a Independência foi proclamada sem povo às margens de um riacho, um presidente grita hoje por sua “independência” apelando a uma insurreição popular diante das instituições. Independência ou golpe!?

No texto de hoje, Lindoberg Campos (professor da UFOP) traz uma reflexão sobre o que foi a Independência do Brasil e qual o sentido do processo pelo qual passamos. Como bem aponta o autor, a fim de afastarmos os fantasmas de nossa história que sempre voltam apelando a golpes messiânicos de força, temos muito o que fazer, como povo, para experimentar o doce gosto de uma independência efetiva.

Este texto é o primeiro de uma coluna quinzenal que Lindoberg Campos manterá no Fios do Tempo, em parceira com o Rodeador Cultural.

Desejamos uma ótima leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 07 de setembro de 2021



Independência ou golpe?!

Bonito, Pernambuco, 07 de setembro de 2021

Ainda que a imagem clássica da proclamação de nossa independência (política, não esqueçamos) seja bela, idílica e portentosa, condizente com a grandiosidade da extensão territorial, sabemos que não foi tão épica quanto alguns desejam. Afinal, quem nunca viu a tela em que Pedro Américo retrata um Pedro de Alcântara no mais alto de um monte (que na verdade não é maior que alguns metros acima da foz do pequeno riacho do Ipiranga), montado em seu cavalo a empunhar a espada de libertação de um povo ao som do grito “Independência ou morte”? A imagem é completada pelo movimento dos cavalos da Coroa lusitana que se rebelam ante o ato “insano” de um filho inconsequente da Coroa. No canto inferior esquerdo, como que extasiado pela epifania heroica que se apresentava, um homem do povo está a puxar sua carroça de bois.

Onde estava o povo na hora da independência? Ora, sabemos da importância do ato de independência, sobretudo porque seu início se dá com a assinatura de uma mulher de apenas 25 anos, Leopoldina. O ato de Pedro de Alcântara é apenas ilustrativo e mítico. Os movimentos independentistas pululavam pelo imenso território nacional cuja identidade era mantida sob acordo de classes e grupos dominantes de uma política herdeira do lusitanismo administrativo. Pintada em 1888 por Pedro Américo, é notória que a construção da tela possuía o intuito da criação de mito fundacional tão comum no período do Romantismo (Segundo Reinado). Trazer para o fim do século XIX uma imagem deslocada de uma realidade mais ampla é no mínimo temeroso para as consequências advindas de um processo emancipatório baseado numa narrativa hegemônica. Não que a culpa repouse no próprio Pedro Américo, mas, no contexto contemporâneo, a interpretação dessa imagem pode nos indicar importantes caminhos para uma compreensão da independência para além de uma vontade popular que se manifesta ou se condensa numa figura personalíssima.

A independência não foi ato heroico nem bravo de um único sujeito, ainda que a tentação de substancializar tais conquistas paire na cabeça de muitos. A volta de Dom João VI a Portugal abre caminho para a manutenção dos Braganças tanto no controle do território lusitano, quanto no de terras brasileiras. Se era para entregar a coroa do Brasil a outros, que ficasse na cabeça da descendência caseira. A ruptura foi apenas simbólica e orquestrada para manutenção do status quo. Ainda que o então príncipe regente Pedro de Alcântara tenha lançado manifestos a favor da Independência entre janeiro e agosto de 1822, marcando seu posicionamento e forçando a ruptura com as Cortes de Lisboa, sua ação de voltar a Portugal em 1831 para travar uma guerra de sucessão demonstra, ou pelo menos indica, o pragmatismo de sua ação anterior. Ele, literalmente, abandonou o país no colo do filho menor de idade para garantir o domínio sobre terras lusitanas. Quanto mais terra para governar, mais poder para administrar. E a função dos herdeiros sempre será manter “as conquistas” dos antecessores.

Mesmo sendo belo, o discurso da unidade nacional promovida pelo manifesto de 6 de agosto de 1822 é artificial. A Constituição de 1824 naturaliza a figura do poder moderador e dá ao monarca de raiz lusitana o destaque e importância que apenas camuflam uma realidade mais dinâmica. É na figura do imperador, o Moderador dos conflitos – que em última análise significa dizer “princípio do autoritarismo” – que repousa a vontade popular. É ele, segundo a Constituição de 1824, o guardião perpétuo da liberdade dos povos. Cenário épico, mas desgastado pelo tempo. Se Aristides Lobo acertou em sua análise do processo de Proclamação da República ao afirmar que o povo assistiu bestializado e atônito sem saber o que aquilo significava, cabe interrogar qual o papel do povo no processo de independência para além da imagem única consagrada. 

A história se repete. E não apenas no pretérito. Contemporaneamente, outras linhas sucessórias se delineiam num horizonte ainda caótico e imprevisível. Numa espécie de rememoração histórica, o atual presidente, eleito num sistema democrático e republicano, herdeiro de um pensamento baseado na substancialização das narrativas, parece querer forçar os limites da democracia porque outorga a si um poder popular validador. A democracia não é, para ele e seus seguidores, um conjunto de vozes plurais que buscam dentro dum jogo dinâmico seus espaços de convívio. A democracia seria a ditadura da maioria (na verdade, de uma minoria que se proclama majoritária). Ao rememorar o extinto poder moderador e realocá-lo no seio das forças armadas, o presidente parece borrar os limites entre um atributo do seu cargo – chefe supremo das forças armadas – e a hermenêutica constitucional, dando a si o poder de ordem que atente contra a natureza do controle constitucional, que é a de ser “guardião” da soberania popular. 

As interpretações privadas que veem na ideia de que o “poder emana do povo” uma forma de validação peremptória de suas próprias ações apenas inflamam uma relação já conturbada. Não há heróis míticos, nem salvadores da pátria num país marcado pela usurpação do poder e pela crônica relação conflituosa de interesses que até hoje relegam um contingente inteiro à marginalidade da cidadania. 

Soberania e cidadania não se confundem com a vontade própria do eleito para o cargo executivo. A despeito de uma independência nascida sob o símbolo do “grito” e da espada – a crermos na imagem de Pedro Américo –, sabemos que numa democracia, quando se acabam as palavras, precisa-se de mais palavras, diálogo, acordos, não de balas nem de vontades autoproclamadas que tentam maquiar pretensões autoritárias disfarçando-se de levante popular.

A quem interessa esgarçar o processo da frágil e recente democracia até o seu limite de ruptura? A quem interessa assumir o poder numa possível ruptura democrática? A quem interessa protagonizar uma espécie de novo Pedro a empunhar uma arma que condense em si uma pseudo-vontade popular validadora? Uma vez ocorrida a mudança para uma ditadura personalíssima, ocorreria apenas a manutenção de certos privilégios daqueles que se locupletam do atual círculo do poder ansiando pelo sequestro das instituições. Ora, o gesto da Independência não foi ato isolado, mas sim um longo processo plural e complexo. De modo análogo, uma ruptura institucional travestida no discurso de vontade popular não pode encerrar um processo de aprendizado da cidadania, que se constrói a duras penas no cotidiano das instituições e relações sociais.

Com a incitação de uma revolta popular contra as instituições, conduzida por quem deveria preservá-las, o 7 de setembro de 2021 torna-se um ponto de inflexão na história do Brasil. Resta saber como se comportará o povo, ou melhor, como se comportará em suas ações aqueles que acreditam interpretar a vontade popular. Aí saberemos de que modo a história vai se repetir: se com golpes de discursos messiânicos resguardados ilegitimamente por braços armados ou se com o melhoramento do processo democrático através da negociação democrática dos conflitos e problemas. Neste caso, afirmações esdrúxulas e insanas como a do atual presidente serão relegadas ao limbo de pretensões autoritárias anacrônicas. De todo modo, a própria expectativa de um rompimento possível do regime constitucional movido por achismos suportados por parte das instituições de Estado e setores da população mostra já o quão distante estamos de uma experiência efetivamente cidadã e democrática. 

A fim de afastar os fantasmas de nossa história que sempre voltam apelando a golpes messiânicos de força, temos muito o que fazer, como povo, para experimentar o doce gosto de uma efetiva independência.


Lindoberg Campos é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), fundador-proprietário da instituição e marca Rodeador Cultural e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades.


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