Publicamos hoje, no Fios do Tempo: Análises do presente, um artigo de Lindoberg Campos (Ateliê de Humanidades / PUC-RJ) sobre a escolha do filho do presidente como embaixador nos EUA. Lindoberg se propõe a pensar nossa crise de legitimidade por meio de uma viagem pela história patrimonialista de nossa “pátria amada”, desde o suposto pedido de emprego a parente na Carta de Pero Vaz de Caminha, passando pela pressa de Dom João VI em pôr a coroa sobre a cabeça de seu filho, até chegar no triste fim de patriotas como “Policarpo Quaresma”, fulminados que o são no país dos “beija-mão”.
Em lugar do “Vossa Alteza há de ser muito bem servida” e do ritual do “beija-mão”, no qual os súditos vão até o monarca mostrar sua subserviência e fidelidade às suas escolhas personalíssimas, ainda esperamos que o presidente ocupe seu lugar enquanto representante do povo que o elege em sistema representativo.
Vossa Alteza há de ser muito bem servida por esta Pátria Amada Brasil
Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2019
Diz uma regra imemorial que genro não é parente. Ao acreditarmos nessa verdade imutável, ficaria inválida a gênese de nossa corrupção estrutural calcada no célebre pedido de Pero Vaz de Caminha em sua missiva ao rei de Portugal, Dom Manuel I, relatando o encontro das terras brasílicas, então batizadas de Ilha de Vera Cruz.
Quando se desconsidera o erro crônico de que Caminha pedira um emprego a seu sobrinho, erro cujas raízes são desconhecidas, e detendo-se um pouco na redação epistolar, percebe-se que o pedido feito ao monarca lusitano refere-se ao fim da pena de degredo de seu genro, Jorge de Osório, que estava na ilha de São Tomé. Mas, se o pedido do escrivão da armada lusitana não se configura juridicamente naquilo que se entende contemporaneamente por “nepotismo”, a sua presença em documento oficial cujo intuito era relatar a descoberta de novas terras, destacando-se de todo o restante do conteúdo epistolar, é muito ilustrativa e referencial para se pensar na grave crise já estrutural que o Brasil está mergulhado, no qual os interesses públicos são confundidos frequentemente pelo favorecimento pessoal ou apadrinhamento.
Mas se o favorecimento pessoal requerido por Caminha na célebre “certidão de nascimento” do Brasil é apenas um símbolo sempre resgatado em momentos de debate sobre as esferas pública e privada, não se pode negar a efetiva ação de Dom João VI quando de seu regresso a contragosto para Portugal. Na manhã de seu embarque e abraçado ao seu filho, Pedro, o monarca lusitano já previa as relações conflituosas que em breve se desenrolariam entre a Metrópole e a Colônia. No intuito de preservar o vasto Império lusitano, ainda que com novas configurações, sob a tutela dos Braganças, profere o sábio conselho: “Pedro, põe a coroa na tua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela”.
Sabe-se que o processo de Independência do Brasil deu-se sob a tutela do patrimonialismo, que, desde o modelo latifundiário das Capitanias Hereditárias, inaugura no Brasil a profunda confusão entre gestão do patrimônio público por interesses privados, beneficiando um seleto e pequeno grupo de “amigos do rei”, minando, desta forma, a possibilidade de execução de um sistema republicano/democrático mais profundo em sua fundamentação.
No entanto, os exemplos de Caminha e Dom João VI são apenas amostras de um processo de beneficiamento estrutural mais substancial e que tem sua aparelhagem em diversas esferas do poder administrativo, legislativo e judiciário. Exemplos pululam pela história brasileira. A própria literatura, em sua sagacidade irônica e denunciativa, traz em seu bojo ilustrações mais distintas de uma sociedade conivente e compassiva com casos de desvio de conduta, realçando o caráter de uma cultura nascida de uma “piscadela e um beliscão”, só para lembrarmos de Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida.
Considerando nepotismo como uma faceta de um sistema de corrupção mais amplo e que afeta os interesses públicos, não há como não lembrar do trágico herói de Lima Barreto, Policarpo Quaresma. Seguidor de um modelo de nacionalismo peculiar, o personagem sofre com as mais distintas interdições e represálias de um Estado eivado de vícios que confundem o verdadeiro sentido do patrimônio público. Policarpo é apenas um exemplo de um sistema que nega o status de cidadania à sua população, elegendo um pequeno percentual de cidadãos que efetivamente gozará dos direitos e privilégios.
As recentes declarações do presidente Jair Bolsonaro com o intuito de indicar seu filho ao cargo de embaixador nos Estados Unidos reacendem o debate acerca do favorecimento de pessoas com laços familiares na gestão da máquina pública. A insistência no cargo de um parente direto e suas articulações para ganhar votos favoráveis no Senado inflamam os ânimos de um país que está marcadamente dividido desde as eleições presidenciais, e só agravam o deficiente modelo democrático brasileiro ainda herdeiro de um longo processo colonial de patrimonialismo e clientelismo.
Não bastasse a simples indicação de um filho para ocupar um cargo de tamanha envergadura, as declarações de Bolsonaro, ao jogar com uma terminologia técnica de que a nomeação para o cargo não está inserida no arcabouço jurídico da compreensão de nepotismo, não contribuem para uma construção de cidadania mais efetiva e necessária. Apenas mostram o quão voláteis são as compreensões democráticas que se polarizam de acordo com interesses escusos. Exibem as marcas deficitárias de um sistema pseudo-republicano que navega ao gosto da maré dos interesses pessoais. A negação de que tal ato não configura em si mesmo uma mostra de nepotismo lança por terra as parcas conquistas democráticas e geram instabilidade perniciosa ao modelo político vigente.
Não poderia ser diferente diante de um presidente que flertou com grupos autoproclamados monárquicos, nostálgicos de um tempo em que a lei e a ação eram exercidas sem a mediação democrática e no qual alguns pequenos grupos usufruíam de direitos.
Indiferente à conceptualização jurídica do termo nepotismo, fica evidente que as palavras de Caminha ao rei lusitano reverberam nos dias atuais; no entanto, sua positividade apenas carrega um simulacro de esperança. Na “terra chã e formosa” em que se “plantando tudo dá”, esquecemos de plantar o sentimento republicano da coisa efetivamente pública. Em lugar do “Vossa Alteza há de ser muito bem servida” e do ritual do “beija-mão”, no qual os súditos vão até o monarca mostrar sua subserviência e fidelidade às suas escolhas personalíssimas, ainda esperamos que o presidente ocupe seu lugar enquanto representante do povo que o elege em sistema representativo.
Não esperamos que o filho de sua alteza Presidente coloque em seu peito a faixa de embaixador (como se sinalizasse uma futura coroa em sua cabeça), mas sim que seja efetivamente um representante do povo, que em sufrágio universal o elegeu como representante da República no parlamento. Esperamos não que o poder emane mais uma vez e sempre da vontade personalíssima de um indivíduo messiânico, mas sim que se cumpra o preâmbulo máximo constitucional e que, efetivamente, o poder emane do povo e para o povo.
Lindoberg Campos
Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e doutorando em literatura (PUC-RJ)
Fonte da imagem: Court day at Rio. APDG. 1826.
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