Fios do Tempo. A escuta sensível: a arte psicanalítica e o escutar cotidiano – por Patrícia Jasiocha

O que é a escuta sensível? Em que ela se diferencia de uma simples escuta? Como a clínica psicanalítica, elaborada por Freud, constitui-se como um campo profissional por excelência para o seu exercício? Por que ela é uma arte que nos faz falta no cotidiano?

Trazemos hoje, no Fios do Tempo, o texto de Patrícia Jasiocha com reflexões sobre a escuta sensível. Ele tem origem na sua participação, junto com Luciano Mattuella, no encontro do Ciclo de Humanidades 2022 sobre o tema “A escuta sensível: por uma arte que nos faz falta”, em 27 de outubro de 2022.

Desejamos, como sempre, uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 29 de janeiro de 2023


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A escuta sensível:
a arte psicanalítica e o escutar cotidiano

Para abordar o tema deste encontro do Ciclo de Humanidades 2022, pensei sobre aspectos que diferenciam a escuta sensível de uma simples escuta.[1] Apresento minha reflexão através de uma contraposição entre características das duas formas de escuta. Numa escuta sensível, aquele que escuta tem uma atenção e disponibilidade às particularidades que se apresentam, ao passo que a simples escuta se opera na base de um encaixe do que se ouve em definições, conceitos e categorias; além disso, a escuta sensível considera a singularidade, o contexto e a história daquilo que é expresso, enquanto que na simples escuta prevalece o enquadramento e a seleção das ideias e dos argumentos através de julgamentos de quem ouve. Diferentemente de uma simples escuta, a escuta sensível deixa vir a mensagem com suas entonações sem pretensão de explicar ou compreender de imediato; a palavra que vem de fora é aceita, acolhida, a fim de ser compreendida com o labor do tempo. O julgamento concludente, quando vem, é resultado de uma paciente elaboração no diálogo.

Tais características e diferenciações são claramente observáveis no campo da clínica, principalmente da clínica psicanalítica e da clínica psicológica. Então, é viável pensar que certos recursos da escuta clínica podem ser deslocados para uma escuta sensível no cotidiano. Neste texto, trago alguns elementos históricos a respeito da prática da escuta da psicanálise, procurando transpor elementos da escuta clínica para uma escuta sensível ao alcance de todos.

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Como ponto de partida, elegi a pesquisa à qual tenho me dedicado desde 2019, onde me atenho a alguns conceitos teóricos e momentos da história da psicanálise. O desenvolvimento do trabalho desta investigação segue por lugares marcados pela psicanálise em Viena e em outras cidades na Europa. Ela começa por Bellevue, o lugar do sonho em A Injeção de Irma, relatado e analisado por Freud em Interpretação dos Sonhos (1900).[2] Ele segue pela casa onde Freud morou na Rua Berggasse 19, distrito de Alsergrund, e pela Universidade de Viena, onde se formou em medicina começando sua carreira como médico neurologista. Continua pela grande cidade de Viena passando por locais como o Sigmund Freud Park, na área central, onde está o memorial que exibe o pensamento de Freud sobre a “efêmera voz da razão”.[3] Geograficamente mais distante de Viena, meu trabalho prossegue para o Freud Promenade, com vista para as Dolomitas, no Süd Tirol, as montanhas da região Semmering Reichenau an der Rax, pois foi lá que Freud atendeu Aurélia Kronich, o caso Katharina, que está relatado nos Estudos sobre Histeria.[4] Para consumar o roteiro histórico-cultural da psicanálise, meu trabalho termina na cidade de Salzburg, onde Stefan Zweig, poeta, escritor e grande admirador de Freud, morou por 15 anos.[5]

A parte da minha pesquisa que se conecta com o tema da escuta sensível é a parte em que discorro sobre como a escuta analítica, uma escuta que se diferencia da simples escuta, nasceu e cresceu com a psicanálise. Para acessar este fragmento da história, Paris é a cidade para a qual devemos nos transportar. Em 1885, com 25 anos de idade, Freud ganhou uma bolsa de estudos com duração de seis semanas e foi para Paris estudar no Laboratório de Patologia com o médico Jean Martin Charcot.[6] No Hospital da Salpêtrière, Freud se aproximou deste médico, e foi seu apreço por ele que o levou para perto da psicologia. Charcot diagnosticava a histeria como uma enfermidade que acometia tanto homens como mulheres. Ele resgatou dos curandeiros a hipnose e a usava como um tratamento para doenças mentais. Naquela época, os tratamentos envolviam choques térmicos e elétricos para estimular zonas do corpo, banhos medicinais e internação com contenção física. Eram tempos em que raramente havia diferenciação entre doença mental e física. O método de Charcot era ousado, pois se diferenciava daqueles adotados num tempo em que a questão da histeria assombrava o discurso médico, pois era vista como loucura sexual e possessão demoníaca. Freud se impressionou ao ver o prestigiado médico curando paralisias histéricas através da sugestão hipnótica. Foi astuto ao observar que Charcot “demonstrava que as paralisias ou gesticulações obscenas não resultavam nem de uma simulação diabólica nem de lesões localizadas, e sim que tinham origem traumática”.[7]

Assim, a psicoterapia, em finais do século XIX e início do século XX, passou a ser um método de trabalho da medicina para curar doenças nervosas. Um método inédito para as doenças que não tinham causas físicas localizadas no cérebro ou no sistema nervoso. Ele se diferenciava de outros tratamentos porque buscava influir sobre a patologia por meios psíquicos e não por meios diretamente corporais, como os banhos ou choques elétricos.[8]

No início de 1886, quando Freud voltou de Paris para Viena, escreveu um relatório para a Faculdade de Medicina mencionando que a teoria das doenças orgânicas estaria completa e que seria, então, o tempo das neuroses. Theodor Meynert, chefe de Freud na psiquiatria, detestava a perspectiva de Charcot. Nesta base, a bagagem teórica que Freud trouxera de Paris não foi bem acolhida em Viena, o que contribuiu para seu pedido de demissão do Hospital Geral de Viena. Em abril de 1886, Freud alugou duas salas e abriu seu consultório na Rathausstrasse, n° 7, no primeiro distrito, o centro da cidade.[9] Já em seu consultório, usou, por um certo tempo, a hipnose e a catarse como métodos de cura. Amadureceu-se, com as tentativas de aflorar os afetos presos ao trauma e expressos nos sintomas somáticos da histeria, um método psicanalítico com contornos próprios, nomeado por Anna O. de “talking cure”, a cura pela palavra.[10]

Anna O. era o pseudônimo de Bertha Pappenheim, uma paciente do Dr. Breuer cujo caso ele discutia com Freud. Breuer descobriu, no decorrer das visitas diárias à sua paciente, que o ato de falar e contar histórias trazia alívio temporário para os sintomas que a acometiam. O efeito catártico, de limpeza ou expulsão pelo livre desenrolar da fala (chamado por Freud de “ab-reação”), acontecia na medida em que despertava lembranças importantes e dava vazão às emoções que Frau Pappenheim tinha sido incapaz de evocar ou expressar quando não estava num estado de hipnose. Porém, Freud não se considerava um bom hipnotizador e abandonou a hipnose ao ver que seus resultados não eram duradouros e sobretudo porque as causas dos sintomas não eram tocadas.

Foi com as dificuldades que encontrou em utilizar o método hipnótico em suas pacientes que a cura pela fala foi inventada. Freud atribuiu parte dos créditos desta invenção a Breuer e a Anna O. Outras pacientes também apresentaram dificuldades com a hipnose e acabaram contribuindo para este resultado, como a Frau Emmy von N., Lucy R. e Elisabeth von R., pacientes que revelavam o próximo passo do processo terapêutico na medida que os impasses ao tratamento eram reconhecidos por Breuer e Freud.[11]

Assim, através do seu trabalho com as doenças nervosas e por ter apreendido o pedido de escuta que ouvia de suas pacientes, Freud inovou. Criou seu método, fazendo da via da fala e da palavra veículos do pensamento e dos afetos. Estabeleceu-se, assim, a psicoterapia, conferindo um elevado grau de humanização nos tratamentos das doenças mentais. Na prática psicanalítica, o falar (associar livremente) e a escuta das manifestações do inconsciente estão na origem desta escuta diferenciada. A escuta da subjetividade.

A escuta analítica se diferencia da escuta médica porque se interessa por aquilo que escapa à consciência, ao corpo físico e à razão. Se ocupa não somente pelo que está materializado em palavra, mas também se interessa pelos elementos que vêm disfarçados, escondidos ou embutidos nas palavras. Vai além do que está declarado explicitamente, aparente e visível. Falamos aqui das manifestações do inconsciente. Portanto, a clínica psicanalítica é um campo profissional por excelência da escuta sensível. É um lugar de escuta do relato dos sonhos, dos chistes e dos atos falhos, dos sinais de repetição e resistência que surgem na fala dos pacientes e na relação de transferência. São rotas que Freud nos deixou para a prática de uma escuta sensível.

Porém, há outros lugares nos quais a escuta sensível é praticável. Qualquer ser humano, ao falar, escrever e se expressar, está entrando no mundo do outro. Em alguma medida e de algum lugar, vai causar impacto e influenciar o mundo externo. Portanto, conviver com esta noção e escolher palavras para se expressar é parte de uma escuta sensível. A escuta sensível implica em levar em conta a complexidade humana: o mundo subjetivo, imaginário, intangível, não corpóreo, a existência da fantasia, a alteridade enquanto diferenças e particularidades. Escutar com sensibilidade é uma arte porque uma escuta pode ser criadora, capaz de produzir leituras e interpretações e de ressoar na vida do outro. Pode ampliar olhares, gerar encontros e trocas entre os nossos mundos recíprocos.

A escuta sensível é um trabalho difícil. Mas nós, brasileiros, temos muitas qualidades das quais poderíamos nos beneficiar ainda mais, para o bom exercício da escuta. Falo isso como brasileira que vive há anos na Áustria e convive na passagem destas culturas contrastantes. Nosso apreço pelo estrangeiro, a curiosidade, o interesse pela comunicação, a capacidade de expressão dos afetos, a permissão para sentir e se emocionar, a criatividade. Somos capazes de acolher aquilo que escapa à razão, de encontrar espaço para o imaginário e não utilitário, não tememos fantasiar… Porém, ao mesmo tempo que dispomos de recursos valiosos para acolher sonhos e fantasias e nos transportarmos para os mundos dos outros, alguma coisa acontece, em nosso país, que dissipa tais qualidades. Alguma coisa complexa, na qual precisamos trabalhar arduamente, a fim de estancarmos o desperdício desse potencial.

Numa conversa com uma psicanalista em Viena, ouvi que nós brasileiros “temos problemas com as leis”. Apesar da sentença ser generalista, mesmo preconceituosa, ela não deixa de ter sua parcela de razão se esmiuçamos a questão. Mas a conversa era sobre psicanálise e, neste campo, há evidências de que muitas das nossas qualidades contribuem mais para o exercício da escuta sensível do que aquelas qualidades presentes na terra mãe da psicanálise. Na Áustria, prepondera a comunicação protocolar, a soberania das leis e do coletivo e a exclusão dos afetos, prevalecendo modos de vida tidos por íntegros e austeros. Essas diferenças entre o Brasil e a Áustria, assim como os lugares que a psicanálise ocupa tanto no sistema de saúde como no imaginário austríacos, também são explorados em minha pesquisa.

Para concluir, tomo emprestado o pensamento do psicanalista inglês que refuta a idealização de teorias perfeitas, que tendem a levar ao sectarismo e à impossibilidade de se escutar o outro ou de se abrir ao que difere do que supostamente já se sabe. Adam Phillips escreve: “O repertório pode ser mais útil do que uma convicção”.[12] Transponho o seu pensamento para usá-lo como ponte para a prática da escuta sensível. Na arte da escuta sensível, o repertório é mais útil do que uma convicção. Que possamos seguir, sustentando uma permanência na busca por novos repertórios capazes de aguçar a sensibilidade que já dispomos, mas que muitas vezes se rendem a obtusas convicções.


Notas

[1] Este texto está baseado em uma palestra que ministrei junto com Luciano Mattuella no Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, em 27 de outubro de 2022, com o tema: “A escuta sensível: por uma arte que nos faz falta”.

[2] FREUD, Sigmund [1900] (2001) A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Ed.

[3] FREUD, S. [1927] (1996)  O Futuro de uma ilusão. In: Obras completas, Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago.

[4] FREUD, S. [1895] (1996) Estudos sobre a Histeria. In: Obras completas, Volume II. Rio de Janeiro: Imago, p. 151.

[5] ZWEIG, Stefan [1941]  (2014) O mundo de ontem – recordações de um europeu. Porto Editora, Portugal.

[6]  GAY, Peter (1989) Freud uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 59-66.

[7] ROUDINESCO, Elisabeth (2016) Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, p. 59.

[8] MEZAN, Renato (1996) Psicanálise e psicoterapias.Estud. av., São Paulo, v. 10, n. 27, p. 95-108.

[9]  GAY, Peter (1989) Freud uma vida para nosso tempo, op. cit., p. 64.

[10] APPIGNANESI, Lisa; FORRESTER, John (2010) As mulheres de Freud. Rio de Janeiro: Record. p. 133.

[11] Ibid., p.134.

[12] PHILLIPS, Adam (1996) Beijo, Cócegas e Tédio – ensaios psicanalíticos sobre aspectos não estudados da vida. São Paulo: Companhia das Letras, p. 16.


Patrícia Jasiocha

Psicóloga clínica e psicanalista. Administradora com especialização em dinâmica dos grupos (1998). Graduada em Psicologia pela UFRJ (2018) com especialização em Psicanálise. Atualmente, como livre pesquisadora em projeto autônomo no Ateliê de Humanidades, estuda temas da teoria psicanalítica e da história da psicanálise. Dedica-se à escrita do seu primeiro livro onde combina excertos da sua pesquisa com memórias da sua vivência na Áustria. Como atividade principal atua com a prática clínica em  consultório online e mantém suas bases de observação, estudo e pesquisa em Viena e no Rio de Janeiro.


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