Fios do Tempo. O drama do narcisismo brasileiro – por Lindoberg Campos

Brasil vive a se contemplar no espelho de Narciso trazido pelas Caravelas que aqui aportaram. Esta é a provocação de Lindoberg Campos em seu mais novo artigo no Fios do Tempo.

Se Narciso acha feio o que não é espelho, cegando-se para sua própria imagem e a do mundo, nem sempre é uma boa coisa apelar, como Cazuza, para que mostremos a nossa cara. Deixando as coisas um pouco em suspenso, vale visitar nossa história movidos pela perplexa questão: “que país é este?”.

Desejamos uma ótima leitura.

A. M.
Fios do Tempo, 30 de outubro de 2021



O drama do narcisismo brasileiro

Bonito, Pernambuco, 30 de outubro de 2021

Em 1988, no bojo da euforia pela promulgação da Constituição Cidadã, Cazuza lançava seu álbum Ideologia que trazia na letra da música Brasil um grito há muito pendente e que escancarava um clamor preso na garganta de muitos: “Brasil, mostra tua cara!”. O pedido era evidente, o desejo também, queríamos liberdade para se expressar, opinar, fazer-se cidadão depois de um período de cerceamento das vontades. 

No entanto, tempos depois uma outra cara surgiu nas ruas; essas defendiam rupturas no processo democrático, cerceamento de liberdades e relativizavam uma experiência traumática anterior, alegando estarem a defender preceitos que formaram nossa sociedade. Diante do cenário, cabe refletir: ao gritarmos em 88 pelas ruas exibindo e mostrando nossas caras, sabíamos que havia outras caras que se mostravam contrárias a essa liberdade? Ou melhor, diante do grito, que cara esperávamos ver? Talvez essa reflexão não tenha sido explorada previamente; talvez não quiséssemos reconhecer as diversas caras ocultas e tenebrosas que ainda possuíamos desde 1500 e que de alguma forma se faziam permanentes. 

Ainda extasiados com nossas caras transmutadas pela liberdade, não ouvíamos o alerta de que “Narciso acha feio o que não é espelho”, e não percebíamos que o problema não era apenas a liberdade de eleger ou destituir um presidente apenas; o problema era mais profundo, e para além da questão da corrupção. O problema eram as caras que flertavam com um negacionismo, o problema estava em como compreender a nós mesmos enquanto ente coletivo a formar uma nova experiência social. 

Muito antes dos caras-pintadas ganharem as ruas a pedir a queda do primeiro presidente eleito, já pintadas eram as caras dos povos indígenas quando as caravelas portuguesas apontaram na linha divisória do horizonte a iniciar uma história. Esta, agora, pautada pela exploração desenfreada e pela desconsideração pela realidade dos povos que aqui habitavam. Os primeiros colonizadores surpreendem-se com a liberdade dos corpos, com a naturalidade da conexão humana e do mundo, admiram, desejam em segredo burlando sua religiosidade pragmática, miram no espelho uma cara contrária à sua; a admiração se reduz ao primeiro contato. Se ao indígena lhe falta o espelho físico, moeda de troca no escambo dos povos, não lhe falta, no entanto, a consciência da alteridade, ainda que dentro da lógica guerreira. O narcisista europeu, em nome da expansão da fé e do império, imprimiu às terras incógnitas de Pindorama uma cultura da negação das suas raízes históricas. O que importa é a construção do colonizador. Ao francês Jean de Léry, exemplo do olhar estrangeiro atento ao outro, restou a reflexão da sua tentativa de deslocamento.

Um deslocamento de experiência que não foi suficiente para barrar ou frear a exploração dos povos e a escravização de outros tantos. Já num Brasil assentado sob a bandeira do Império, ao traçar um panorama da escravidão em território nacional, Joaquim Nabuco exibe a cara de um Brasil marcado pela exploração estabelecida, pela divisão social gritante e perniciosa. Apenas antecipava uma perspectiva de brasilidade que se evidenciou logo adiante n’Os Sertões de Euclides da Cunha; sob a pena do literato, revivemos as diferenças sociais, econômicas, culturais e exibimos a falsidade da unidade.

Em ambos os autores, há a clara percepção dos limites de compreensão de brasilidade que desconsiderasse a amplitude da extensão territorial em seus aspectos éticos, morais e culturais. A pena de Euclides revelou, para um país atônito diante da resistência de uma tapera miserável encravada nos mais inóspitos sertões interioranos, que havia um país e um povo ainda a ser descoberto em sua dinamicidade, carências, desejos e aspirações. Mas parece que a República, aquela que nasce sob o símbolo da “coisa do povo”, não compreendeu seu próprio papel na reelaboração e ressignificação da “identidade” nacional; passou à baioneta os corpos de “rudes patrícios” até que Canudos se tornasse, tal qual a Itabira de Drummond, um retrato na parede da memória, mas que ainda dói.

A própria Semana de Arte Moderna de 1922, numa tentativa de compreender a brasilidade, topou com esse problema em sua trajetória de ressignificar a herança herdada, de exibir sua cara. A unidade é falsa e provisória, serve para momentos tidos originários. No mais, campeia a diversidade e multiplicidade de uma herança constituída que não pode ser resumida na criação de heroísmos artificiais e movidos pelos sabores das paixões imediatas. Cabia, a partir dali, antropofogizar o mundo, e isso significava extrair da herança miscigenada uma aceitação e valorização dessa mistura. Parece que o alerta não nos tirou do sono histórico. Conhecemos períodos em que a diversidade e multiplicidade da experiência da brasilidade foram postos em vigilância, em negação. 

Foi dentro do período ditatorial (1978), que tomou o poder baseado no pseudodiscurso da proteção da moral, da família e da pátria, que Caetano Veloso asseverava que “Narciso achava feio o que não era espelho”. Aos defensores do golpe de 64, cujo lema “Brasil: ame-o ou deixe-o” dava o cunho da visão absolutista, não lhe restava o mínimo argumento ético que sustentasse o silenciamento de vozes dissidentes, apenas a certeza da profunda cisão que há na forma como se compreende o Brasil. O período ditatorial criou seus mitos fundacionais, e nesse projeto pouco ou nada do “Brasil profundo e marginal” tinha espaço. É que Narciso acha feio o que não é espelho. A diversidade, para alguns, prejudica o progresso.

Por isso é preciso eliminar Canudos, o espelho de uma sociedade que se tenta negar ou não aceitar porque é diferente ou porque nos coloca diante de um espelho que exibe a nossa outra cara, a cara do abandono, da indiferença, da falta de percepção da realidade. Do mesmo modo, vislumbra-se em indígenas ou quilombolas entraves ao progresso, máculas a serem saneadas. Para alguns, povo é massa de manobra; em casos contemporâneos, povo é validador de anseios privados e vontade de poder e de domínio. Para estes, o conceito de povo é vago; deve apenas servir para validar a vontade de um sujeito que outorga a si um poder quase divino. De Messias e Pedros já temos bastante nessas terras tupiniquins. Tudo que toca em privilégios, mudanças de paradigmas ou que ameacem o poder da casa-grande e dos coronéis, de ocasião e de título, deve ser interditado. É preciso pôr em suspenso, vigiar e manter uma narrativa específica. A Narciso importa o espelho, sua imagem refletida, ainda que falsa. 

Podemos, contemporaneamente, repetir o “Brasil, mostra tua cara”; no entanto, alguém já imaginou qual cara irá ser mostrada? Num Brasil do século XXI, constatar discursos que ressuscitam torturadores, esquemas que travam compra de vacina, promoção de atritos com outras forças constitucionais, sob o arroubo do autoritarismo de um patriarcado tacanho e retrógrado, nos aponta para o desvelamento de uma caricatura fantasmagórica. Ao fim, resta o alerta e cuidado com que tratamos os nossos fantasmas, eles podem se materializar.

Precisaremos de uma nova espécie de oráculo que nos diga qual caminho seguir diante das inúmeras veredas que se abrem? Apesar de ser um país jovem, quando se compreende a partir de uma narrativa histórica centrada na Europa, já oferecemos exemplos mais que suficientes para interpretarmos nossa herança a partir dela própria. Não tivemos um “Velho do Restelo” – personagem d’Os Lusíadas que tece reflexões sobre as consequências nefastas que as navegações poderiam ocasionar – que nos alertasse sobre os perigos futuros. Mas o massacre indígena, contemporâneo e pretérito, a ironia com que se trata questões raciais, o desprezo por discursos plurais parece ser um bom sinal daquilo que se avizinha. O que fazer para não ter o mesmo fim de Narciso?  

Lindoberg Campos é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), fundador-proprietário da instituição e marca Rodeador Cultural e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades.


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