Fios do Tempo. Artes da memória e do esquecimento – por Kim Abreu

Na última quinta-feira, dia 25 de maio, começamos a primeira rodada do Ciclo de Humanidades 2023, que tem por tema “Memórias para um futuro”. No primeiro encontro, fizemos uma excelente conversa, Kim Abreu e eu, sobre “O que não podemos esquecer? Usos e abusos da memória“.

Trazemos hoje a gravação deste encontro, a ser assistido a qualquer momento e lugar: https://youtube.com/live/ioGOCuiAAco.

Além disso, publicamos no Fios do Tempo o texto “Artes da memória e do esquecimento“, de Kim Abreu. Sendo uma síntese de alguns elementos de sua tese de doutorado, ele nos apresenta o que são a arte da memória e do esquecimento; o que é a proposta incomum de Nietzsche de um “esquecimento ativo”; e por que é necessário recuperarmos, hoje, as artes da memória e do esquecimento.

Desejo, como sempre, uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 30 de maio de 2023



Artes da memória
e do esquecimento

Partindo do pressuposto de que a memória é essencial para o conhecimento humano, toda a tradição filosófica, e não somente filosófica, apostou na memória como baluarte para se assegurar a Verdade. Como pode, então, o esquecimento, a antítese da memória, também ser igualmente relevante no processo do conhecimento? A memória pode ser algo ruim? Esquecer pode ser algo bom? Esquecemos a arte de lembrar e precisamos lembrar a arte de esquecer?

Minha pesquisa atual conjuga a arte da memória com a arte do esquecimento. Por um lado, a conhecida “arte da memória” ou “mnemotécnica” dos gregos e romanos, desde os aedos e os retores romanos até os padres cristãos e os alquimistas renascentistas; por outro lado, a desconhecida “arte do esquecimento” idealizada por Temístocles e nunca concretizada até a chegada de Nietzsche com o esquecimento ativo.

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O que é a arte da memória?

Frances Yates, uma das maiores autoridades no tema, faz a seguinte consideração acerca da arte da memória ou mnemotécnica:

Apenas algumas pessoas sabem que, entre as muitas artes que os gregos inventaram, está uma arte da memória que, como outras artes gregas, foi transmitida a Roma, de onde passou para a tradição europeia. Essa arte busca a memorização por meio de uma técnica de imprimir “lugares” e “imagens” na memória. Tem sido classificada como “mnemotécnica”, ramo da atividade humana que parece ser pouco considerado nos tempos atuais. Mas, antes da invenção da imprensa, uma memória treinada era de vital importância; e a manipulação de imagens na memória deve sempre implicar, em certa medida, a psique como um todo.[1]

As primeiras fontes a respeito da arte clássica da memória são os latinos: Cícero, Quintiliano e um autor desconhecido que escreveu o livro Ad C. Herennium libri IV. Dentre eles, a melhor definição da mnemotécnica é a de Quintiliano:

[…] para formar uma série de lugares na memória, deve-se recordar uma construção a mais ampla e variada possível, com o pátio, a sala de estar, os quartos, os salões, sem omitir as estátuas e outros ornamentos que decoram esses espaços. As imagens por meio das quais o discurso será lembrado […] são, então, colocadas pela imaginação em lugares da construção que foram memorizados. Isso feito, tão logo a memória dos fatos precise ser reavivada, percorrem-se todos esses lugares sucessivamente e pede-se a seus guardiões aquilo que foi depositado em cada lugar.[2]

Já Cícero, no De oratore, atribui a Simônides, o famoso poeta de Ceos muitas vezes citado por Platão, a invenção da mnemotécnica. Simônides é também considerado o primeiro sofista, pois passou a cobrar pelas suas atividades de maneira mais desvinculada com a religiosidade, ou seja, não eram mais as Musas que estavam inspirando Simônides, mas sua própria técnica que o habilitava a precificar seus poemas encomendados. Como diz Marcel Detienne, em Os mestres da Verdade na Grécia Arcaica, com os Sofistas, a Alétheia é jogada no campo agonístico das contendas jurídicas e se transforma em Doxa. Nesse contexto, a Retórica assumirá o papel de disputar pela verdade, por meio de técnicas discursivas. Em Roma, até mesmo os filósofos precisaram ceder à importância da arte de falar bem em público, em que possuir uma boa memória era vital.

É a partir desse berço cultural que será costurada a associação entre memória, inteligência e verdade. A valorização da memória na arte da oratória nos romanos é reforçada no período medieval, por meio da atividade de pregar dos primeiros padres da patrística, como, por exemplo, Agostinho – mestre de retórica –; e também, na escolástica, quando se fazia necessário defender argumentos contra e a favor de um determinado tema, vide as questiones disputatae de São Tomás de Aquino. Houve um desaparecimento progressivo da mnemotécnica na passagem do Renascimento para a Modernidade. Dominar a arte da memória era um grande feito de magos alquimistas, tais como Ramon Llhull e Giordano Bruno. Quando essa mística envolta na arte da memória foi alcançada pela exatidão da matemática e da física, em decorrência das descobertas de Galileu, ocorreu uma substituição da mnemotécnica pelo método científico. Com isso, a arte da memória caiu em esquecimento, ainda que a memória continue a ser valorizada.

Com Nietzsche, a perspectiva sobre a memória será deslocada, ocorredo uma inversão de valores, por meio de uma genealogia da moral que evidencia rupturas de valores que formaram nossa consciência moderna. No centro desta investigação, encontra-se o esquecimento em oposição à memória. A noção de esquecimento ativo emerge como figura central do projeto de transvaloração de todos os valores, isto é, esquecer ativamente é uma condição necessária para o engendramento de novos valores.

A tese de Nietzsche é avassaladora e inverte completamente a perspectiva hegemônica da Filosofia:

Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? […] Esse antiquíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.[3]

Ao ler a segunda dissertação de Genealogia da Moral, o leitor pode se estranhar com a expressão mnemotécnica. O que foi essa mnemotécnica citada por Nietzsche? Em primeiro lugar, a mnemotécnica que é alvo de críticas nietzschianas não é, exatamente, a mesma do conjunto de técnicas mnemônicas desenvolvidas pelos gregos e romanos. A memória é abordada por Nietzsche dentro do contexto de uma genealogia do castigo, ou seja, a formação de um indivíduo responsável capaz de cumprir suas promessas é o subproduto da sonhada paz social. As punições servem para adestrar os instintos naturais de liberdade e de esquecimento, assim surge o Estado e o Direito Penal. A partir deste diagnóstico, Nietzsche expõe o lado social de uma sociedade ressentida que não sabe esquecer e, por outro lado, propõe um antídoto fisiopsicológico contra os dispépticos, aqueles que não sabem digerir bem os acontecimentos da vida, seja colocando a culpa nos outros ou em si mesmo.

O que é o esquecimento ativo?

Algumas expressões muito inusitadas são propostas por Nietzsche acerca do esquecimento ativo: “força inibidora ativa”, “zelador da ordem psíquica”, “aparelho inibidor”, “forma de saúde forte“.[4] Na visão nietzschiana, o esquecimento ativo seria uma capacidade muito mais natural do que a capacidade de lembrar-se das coisas. É como se Nietzsche estivesse propondo criarmos uma segunda natureza, voltarmos a sermos crianças, esquecermos aquilo que nos foi ensinado, tornarmo-nos aquilo que somos realmente, livres de toda carga de valores transcendentes que pesam sobre nós, não passando de pseudo-remédios metafísico-religiosos. O esquecimento ativo não é o perdão cristão, até porque Nietzsche quer se afastar da tradição judaico-cristã. O exemplo de Mirabeau contido em Genealogia da moral é fundamental:

[…] Mirabeau, que não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não podia desculpar, simplesmente porque – esquecia. Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam;[5]

O esquecimento ativo promove a grande saúde que pode ser compreendida como restabelecimento das forças perdidas. Em primeiro lugar, a grande saúde pode ser interpretada em um (I) aspecto moral, ou seja, ser saudável é ser antiniilista e anticristão, tal como o Zaratustra ateu.[6] Nesse sentido moral, restabelecer a saúde é conseguir transvalorar valores que negam a vida, que diminuam a vontade de poder. Em um segundo sentido, a grande saúde pode ser interpretada no (II) aspecto psicológico, qual seja, buscar superar pensamentos, sentimentos ou afetos que possam atrapalhar o olhar para o presente, gerando ressentimento ou sentimento de culpa. É claro que os dois aspectos da grande saúde, moral e psicológico, se interconectam e se retroalimentam.

Grande saúde é um “longo exercício” que pressupõe recaídas, por isso a noção de restabelecimento ser tão adequada para explicar esse processo. Creio que o esquecimento ativo enquanto condição necessária para a saúde da consciência, tanto no aspecto moral quanto no aspecto psicológico, também deve ser compreendido como um processo que precisa ser estrategicamente ativado e ruminado pelo tempo que for necessário. Não se trata de deixar o tempo curar as feridas, mas de respeitar a dificuldade do processo de assimilação fisiopsicológica de novos valores que chegam em substituição aos antigos.

Por que é necessário recuperarmos as artes da memória e do esquecimento?

O primeiro dos sinais perigosos que pode indicar demência, segundo a Alzheimer ‘s Association, é a perda de memória recente como, por exemplo: esquecer datas e eventos importantes, fazer as mesmas perguntas sempre e a dependência cada vez maior de auxiliares para memorizar. Caso isso não seja sinal de uma possível demência, pode ser que você esteja apenas desatento. A falta de atenção pode ser por dois fatores básicos: 1) devido a uma enxurrada de informações que poluem sua atenção ou 2) a falta de técnica e de conhecimento sobre como a memória funciona.

A geração multitarefa parece não entender o que está acontecendo, como pode se ter acesso a um volume imenso de informações, ao mesmo tempo em que a porcentagem de retenção dessas informações parece diminuir. A sensação é de que não estamos conseguindo dar conta de tanto lixo informacional. Um dos principais pilares de uma boa memorização é a atenção; e a fragmentação da atenção em muitos elementos ao mesmo tempo favorece o esquecimento. Entender como funciona a memória é de vital importância para que possamos resistir ao avanço das demências. Combater o envelhecimento cerebral também passa por treinar o cérebro corretamente, estimulá-lo quando necessário e descansá-lo nos momentos de superaquecimento.

Retomar uma mnemotécnica, hoje, não é agirmos como Simônides ou Cícero, mas compreendermos que a criatividade, os recursos imagéticos, a ordenação e tudo que o método dos loci proporciona podem mudar as nossas vidas. Aprender a memorizar, resgatar a arte perdida da memória em tempos de epidemia de esquecimento é tarefa urgente.

No caso da arte do esquecimento, nos dias atuais, poderíamos abordá-la na questão de resistirmos à pressão, seja da psiquiatria ou da própria indústria farmacêutica, de que resolveremos nossos traumas psicológicos e nossos transtornos psíquicos com remédios. A escravidão psiquiátrica e a obsessão em classificar e estigmatizar dos Manuais Diagnósticos e Estatísticos de Transtornos Mentais podem apontar para a necessidade de desenvolvermos, urgentemente, a proposta inacabada do esquecimento ativo de Nietzsche.

Se houvesse uma pílula, de preço acessível, que prometesse bloquear sensações ruins ao evocar uma lembrança indesejada, você tomaria? Os cientistas estão bem perto de disponibilizar inibidores de proteínas que consolidam a memória, fazendo com que a pessoa se esqueça daquilo que aconteceu. O experimento com ratos de laboratório foi um sucesso, agora é aguardar nas farmácias mais próximas de sua casa os “milagrosos” fármacos que promoverão a eliminação completa ou parcial das memórias… A proposta de Nietzsche caminharia em sentido oposto e é o que defendemos. O esquecimento ativo seria um processo pessoal, uma atitude filosófica perante a própria vida, de transformar o espírito de vingança contra o passado, o que outros chamariam de arrependimento ou sentimento de culpa, em uma vontade criadora de novas possibilidades de existência.

A arte do esquecimento: não seria apenas os mecanismos biológicos de que o cérebro dispõe para escantear memórias traumáticas, muito menos o recalque que joga a sujeira para debaixo do tapete, mas o trabalho de querer esquecer ativamente aquilo que nos impede de viver o presente, assimilar o escolho do passado, digeri-lo. Mas para isso é necessária toda uma mudança de olhar para a existência. E os pressupostos metafísico-religiosos precisam ser afastados para se vivenciar integralmente o amor fati.

Notas

[1] YATES, Frances. A arte da memória. p. II.

[2] QUINTILIANO apud YATES. Op. cit. p. 19.

[3] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. II, §3.

[4] Idem.

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. I, §10.

[6] Ibid. Genealogia da moral. II, §25.


KIM ABREU é doutorando em filosofia e Professor de Filosofia na British School e no Estado do Rio de Janeiro. Especialista no tema da memória e do esquecimento.


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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