Fios do Tempo. As vias de um agir em comum: prefácio a “Uma economia para a sociedade”, de Jean-Louis Laville – por Genauto Carvalho de França Filho

Hoje, no Fios do Tempo, publicamos o prefácio de Genauto Carvalho de França Filho ao livro “Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social, economia solidária“, de Jean-Louis Laville (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023), lançado por nós no final do mês de abril.

Este prefácio faz uma cuidadosa apresentação desse livro, que está destinado a se tornar referência obrigatória para estudos sobre associacionismo, terceiro setor, economia social, economia solidária, outras economias e democracia.

Para conhecer e adquirir o livro, acesse:
https://ateliedehumanidades.com/atelie-de-humanidades-editorial/
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André Magnelli
Fios do Tempo, 29 de maio de 2023



As vias de um agir em comum:
prefácio a “Uma economia para a sociedade”,
de Jean-Louis Laville

A dinâmica das sociedades contemporâneas tem sido confrontada por grandes desafios, constituindo verdadeiros dilemas que interrogam nossa própria existência enquanto humanidade. Os rumos do nosso desenvolvimento econômico padrão têm gerado impactos ambientais demasiado graves, o que é refletido no grau elevadíssimo de aquecimento climático que atesta nossa entrada no Antropoceno. Essa crise ambiental se soma a uma crise social de proporções cada vez mais assustadoras quando observamos o recrudescimento das desigualdades no mundo provocadas pelos níveis cada vez maiores de concentração da renda e da riqueza, além da diminuição das oportunidades de trabalho para a maioria da população.

Se essa dupla crise parece reveladora de um modelo de economia que se desenvolve divorciado dos interesses da sociedade, a esse duplo problema vêm somar-se os insistentes movimentos de ameaça à democracia acontecendo em diferentes continentes, fruto da ascensão de um populismo de extrema direita que se conjuga com o poder desmedido adquirido por gigantes corporativos privados em escala mundial. Se nos encontramos assim face à uma tripla insustentabilidade (ambiental, social e política), é porque vivemos sob a égide de um modelo econômico divorciado tanto da sociedade quanto da própria democracia. A reflexão sobre como dar uma outra forma a nossa economia torna-se urgente no atual contexto.

Essa é uma questão sensível, pois não são poucas as tentativas de invalidar diferentes iniciativas ao longo da história buscando reconstruir as formas de organização da economia para além do modelo convencional da empresa privada lucrativa. Fomos acometidos por um processo de invisibilização das mais variadas práticas conformadoras de uma outra economia. Essa paralisia no olhar é diretamente relacionada às armadilhas cognitivas que são encontradas no debate teórico. Conceitos e ideais acerca de uma outra economia constituem um movimento intelectual na contramão do mainstream acadêmico.

A indagação, portanto, sobre uma economia a serviço da sociedade persiste e resiste: quais seus contornos próprios ou que formas adquire na prática? Qual sua história e quais desafios ela enfrenta nos distintos contextos de realidade? Quais são seus marcos institucionais? Quais conceitos fundamentais nos ajudam a entendê-la?

O propósito desta obra é, então, o de explorar a complexidade deste território ao mesmo tempo prático e teórico de uma economia para a sociedade. É assim que o autor nos oferece um campo empírico extenso de experiências sinalizando uma outra economia. Esse recobre muito especialmente três continentes geográficos: Europa e Américas do Sul e do Norte. A análise das experiências não deixa de ser rigorosamente articulada com as distintas problemáticas atinentes a cada contexto de referência. Tais análises são ainda ricamente complementadas com uma extensa e aprofundada discussão conceitual. Desse modo, o texto alterna permanentemente análise de caso, discussão contextual e reflexão conceitual.

Para um leitor inadvertido, que suporia pensar uma economia para a sociedade enquanto exercício diletante fruto de algum utopismo, Laville nos mostra o presente e o passado dessa outra economia. Essa é mais uma grande riqueza do texto: ele opera uma conexão valiosa em termos analíticos entre tempos históricos diferentes, além de contextos de realidade variados, que apenas nos sinalizam a diversidade desse movimento.

Novamente, mesmo esse leitor mais desavisado diria que uma economia não divorciada da sociedade e servindo a essa é precisamente aquela movida pelo interesse geral, pelo interesse coletivo, sendo pautada pela preservação dos bens comuns, além da valorização dos bens públicos. Mas, como tais valores se materializam em termos da conduta ou ação dos sujeitos e instituições? Ou seja, como apreender essa economia para a sociedade a partir de dados objetivos da realidade? Ou ainda, qual a sua forma institucional?

A esse respeito, uma das grandes contribuições do livro é de trazer uma reflexão sobre as formas organizacionais e institucionais que guiam e definem uma economia para a sociedade. Razão pela qual forte ênfase está colocada no papel das associações, assim como das cooperativas e das organizações de ajuda mútua. É justamente numa análise histórica sobre a dinâmica associacionista que reside os fundamentos dessa outra economia revelada neste livro.

Na sua análise, Laville salienta a necessidade de ir além de um debate (que ele considera muito legítimo, porém convencional) sobre as funções do mercado e do Estado. Sua preocupação é de relembrar a existência de uma tensão mais fundamental entre democracia e economia, cuja compreensão permite repensar a relação entre economia e política enquanto condição fundamental para uma reapropriação da economia pela sociedade. É por isso que a hipótese que ele formula consiste em considerar que: “nos últimos dois séculos, as associações situaram-se no coração das controvérsias no que diz respeito a esta relação incerta entre esfera política e esfera econômica”.

Reapropriando-se dos conceitos de política e de economia, o autor nos relembra a relação íntima entre política e invenção democrática, quando pensamos com Jürgen Habermas e Hannah Arendt a dimensão de um poder de agir em conjunto (reconhecendo uma igualdade de direitos) próprio da ação política como ação pública. E, do mesmo modo, ele relembra o vínculo entre economia e invenção solidária pensando com Marcel Mauss, Émile Durkheim e Karl Polanyi sobre os fundamentos sociais dos fatos econômicos. Para Laville, a complexidade do agir associativo se encontra no reconhecimento desta relação de interdependência entre esferas política e econômica.

Sem deixar de reconhecer as tensões e insuficiências do fato associativo, mas salientando sua potencialidade, a problemática do livro consiste em identificar o vínculo das associações com um projeto democrático e solidário de sociedade. Esta delimitação é fundamental, segundo o autor, para se evitar uma idealização associativa absolutamente incompatível com a diluição histórica dessas formas de organização onde cabem partidos políticos, corporações industriais, organizações científicas, sindicatos, igrejas, escolas, clubes e sociedades. Por outro lado, afirmar essa ligação entre associação e democracia é “admitir que no quadro associativo cabem experiências sociais que contribuem para a transformação da ordem institucional ou participam na reformulação da ordem normativa instituída”.

Neste sentido, “reestabelecer o fio associacionista” constitui uma das tarefas principais deste livro, que oferece uma perspectiva absolutamente original para pensarmos as metamorfoses da economia nos últimos 200 anos. Esta originalidade encontra-se tanto no (a) modo de analisar tais metamorfoses e seus fundamentos, quanto nos (b) caminhos que são apresentados ensejando as transformações.

Sobre o modo de analisar, a abordagem salienta um permanente tensionamento entre capitalismo e democracia, na esteira de um divórcio entre economia e sociedade. Fazendo um esforço de recuperação histórica muito valioso, Laville vai buscar na história do associacionismo solidário um primeiro movimento de distensionamento. Se tal movimento pressupunha integrar aquilo que o capitalismo tentava separar (a economia da política, o oikós da polis ou o trabalho do espaço público, entre outros), é justamente na prática associacionista que o autor considera possível encontrarmos os fundamentos dessa integração ou reconciliação entre economia e política ou entre trabalho e democracia.

É assim que na primeira parte do livro, que se intitula associacionismo, democracia e capitalismo, examina-se a história do fato associativo. O aprofundamento teórico da associação como fundamento de um agir em comum é conjugado nesta abordagem com uma leitura fina dos distintos contextos históricos em análise. O autor apresenta um amplo inventário de experiências associacionistas e democráticas que estiveram presentes no Brasil, em outros países da América do Sul, na América do Norte e na Europa. Para o autor, trata-se, historicamente, de um primeiro momento de “criações associativas na sequência da instauração da democracia”.

Um olhar sobre o contexto brasileiro deste período nos conduz a salientar o papel importante em termos de luta pela emancipação social e política de uma miríade de formas de organizações solidárias baseada em mecanismos de resistência das culturas e dos povos ancestrais. E o autor está atento a esse movimento ao referir-se ao caso de organizações de terreiro, de organizações de quilombos, que permitiram amparo, assistência e garantia de direitos aos mais vulneráveis, especialmente em relação à população negra. O caso da Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada em 1832 na cidade de Salvador, existindo e resistindo até os dias atuais, é emblemático em termos da natureza do associacionismo que já existia aqui. O fato de tais experiências terem sido invisibilizadas na história do conhecimento sobre economia e gestão, parece revelador da ausência de abordagens que nos permitissem melhor entender as metamorfoses da economia aqui referidas.[1]

Na segunda parte do livro, sob o título de ressurgimento solidário, incertezas democráticas e novo capitalismo, o autor opera um salto, em termos de tempo histórico, ao analisar o ressurgimento associacionista ao final do século passado (pelos idos dos anos 1980), num contexto de incertezas democráticas que marcam o chamado “novo capitalismo”.

Neste momento, o olhar do autor nos mostra como as metamorfoses da economia equivalem às transformações associacionistas. Sua análise nos revela que a vitalidade do fato associativo não se limitou ao passado ao salientar “uma significativa renovação solidária em vários continentes que se manifesta não apenas através de uma onda de novas cooperativas, mas sobretudo pelo aumento do número de associações”. Os números a esse respeito são eloquentes, mas o autor não se deixa impressionar: ele reconhece a regressão qualitativa que acompanhou essa expansão quantitativa, refletida numa diluição da identidade das associações, seja em razão das “normas de gestão importadas das empresas privadas ou de regras impostas pelos poderes públicos”. Contudo, para ele, não se trata com isso de ceder à tese do declínio democrático: “tendo em conta as ambiguidades associativas que levam ao alinhamento com as empresas privadas ou à instauração de um subsetor público, trata-se de analisar primeiro a questão da renovação do engajamento associativo”. Assim, sem negar o enfraquecimento democrático, ele enfatiza simultaneamente as ambiguidades e as potencialidades associacionistas. Com esse tipo de abordagem, portanto, a perspectiva analítica se amplia.

A leitura de Laville é muito original, ele propõe uma abordagem complexa da institucionalização: “que não faz dela nem uma recuperação pelas instituições, nem uma renúncia dos atores sociais. Apesar das regressões aparentes, o movimento de democratização prossegue”. Nesta direção, o propósito é de visibilizar a atualidade da perspectiva associacionista: “longe de só pertencer ao passado, há algumas décadas que ela recupera uma atualidade inesperada”. Na análise dessa atualidade, Laville nos mostra um movimento de articulação entre diferentes estatutos jurídicos historicamente separados. O principal exemplo identifica diversas experiências que nasceram no quadro associativo e passam a se desenvolver no quadro cooperativo. O autor detalha o movimento de empresas alternativas, sob a forma de cooperativas de trabalho e sua expansão neste período, num contexto marcado pelas crises de regulação do sistema capitalista. A análise está sempre muito bem fundamentada num diagnóstico detalhado e consistente das crises do capitalismo.

Salientando as experiências de recuperação de empresas em países do Norte, Laville não deixa de mencionar esse mesmo movimento em países do Sul, enfatizando a redescoberta da economia popular através sobretudo das iniciativas de associações e cooperativas em diferentes países da América do Sul. São inúmeros casos no Chile, na Argentina, no Brasil, na Colômbia, no Equador, no México, no Peru e no Uruguai, baseados nos movimentos negro e indígenas. Para o leitor brasileiro, cumpre lembrar a referência importante trazida sobre a experiência do MST.

Na sua análise, Laville critica a tese segundo a qual a economia popular estaria condenada a desaparecer ao sublinhar, nesta realidade, a tensão entre eficiência técnica e dinâmica solidária. Sua preocupação está em trazer para o centro da análise a dimensão pública da economia popular enquanto elemento de uma luta por reconhecimento. Impressiona o grau de detalhamento da análise e sua perspectiva de entender tais iniciativas como simultaneamente locais e internacionais. São dados três exemplos valiosos, discutidos e problematizados a fundo: os serviços de proximidade; o comércio justo; e as microfinanças e moedas sociais. Para ele, uma das grandes características dessa multidão de iniciativas é de oscilar entre a proposta de um outro mundo e o protesto contra a ordem existente.

Isso permite pensar, segundo o autor, a questão política na economia enquanto um traço inovador de muitas dessas práticas, o que não é impeditivo de enxergar, ao mesmo tempo – como ele o faz apoiando-se em Rosanvallon – a “despolitização progressiva inscrita num conjunto associativo funcionalizado e acantonado ao impolítico”.[2]

Mas a análise sublinha as finalidades solidárias mais amplas no bojo desse novo associacionismo que parece reacender uma “vontade de democratização da sociedade traduzida em termos econômicos”. Em contraste com as experiências mais antigas que visavam trazer respostas às necessidades de um grupo particular: “Os coletivos de trabalho que se dedicam às energias renováveis e à agricultura orgânica, as redes de comércio justo que lutam contra a marginalização dos pequenos produtores do Sul, os organismos de finanças solidárias que concedem empréstimos aos excluídos pela banca ou aos detentores de moedas sociais que trocam ‘sem dinheiro’, todos se voltam para a sociedade no seu conjunto para além das suas preocupações particulares”.

Ao cabo dessa segunda parte, o autor salienta os desafios de tais práticas diante da acentuação das crises. Muito atento ao contexto de um novo capitalismo, a análise é fina. Ele mostra a prioridade conferida ao mercado (em tempos de triunfo do neoliberalismo) e o consequente enfraquecimento das regulações públicas que se conjuga com um reaparecimento e uma reatualização da filantropia cujo propósito é de invalidação da solidariedade democrática na economia. Novamente, é a questão da tensão entre capitalismo e democracia que está posta, conforme ele assinala: “A situação atual reflete aquela evocada na história: a procura de justificação do capitalismo apoia-se numa articulação repensada entre mercado e filantropia. (…) o neoliberalismo é menos uma doutrina econômica do que um projeto político de limitação da democracia”.

É deste modo que o autor sinaliza os limites com os quais o associacionismo se depara e que pode ser sumarizado no que ele chama de paradoxo associativo: “a renovação associacionista atestada pela emergência das novas iniciativas depara-se com uma banalização acentuada em muitas associações”.

Na terceira parte, que se intitula os Desafios do debate contemporâneo, Laville retorna à análise das associações, porém sob um outro ângulo, isto é, o das três principais conceitualizações desenvolvidas para abordá-la na contemporaneidade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Para ele, “a capacidade de precisar um horizonte alternativo depende de opções teóricas que reconfiguram parcialmente as experiências que analisam. (…) A diversidade das denominações de que são objeto reflete a disparidade de seus componentes, bem como a variedade dos prismas através dos quais esses fenômenos são percebidos”.

Começando pelo conceito de terceiro setor, a análise empreendida é abrangente e bem fundamentada. Ela mostra o quanto essa formulação é tributária de um contexto estadounidense de realidade, além de fortemente influenciada pelos quadros teóricos da escolha racional, onde se destaca o papel das organizações sem fins lucrativos. Identificado como um setor (non profit), o coração dessa abordagem consiste em sublinhar a capacidade das associações sem fins lucrativos em responder às imperfeições (falhas) do mercado ou aos limites do Estado, ou mais exatamente às insuficiências da empresa privada com fins lucrativos e do serviço público.

Contudo, a abordagem setorializada tende à compartimentação das partes e ao caráter complementar deste terceiro setor ou das associações, legitimando assim o mercado e o Estado enquanto pilares de regulação da sociedade. Apoiando-se em Jacques Godbout, Laville nos relembra ironicamente que o“mercado e o Estado representam o modo normal de fazer circular os bens e serviços, e se o Estado pode ser substituído pelas organizações sem fins lucrativos é porque ele teria falhado na sua função de proteção ao orientar-se para a burocracia”.

O problema de uma visão estritamente setorial está, para ele, no esquecimento da dimensão intermediária das associações que podem ser consideradas espaços de transição da esfera privada para a esfera pública. De fato, ratifica-se através deste conceito a dissociação entre economia e política. Em sentido oposto, conforme esclarece, “as associações têm a ver com as duas dimensões do político: por um lado, o político não institucional centrado no potencial de ação dos cidadãos pressupondo que eles tirem proveito da prática da liberdade positiva da qual dispõem formalmente; por outro lado, o político institucional centrado no exercício do poder. É este duplo aspecto político das associações que se oculta na concepção do terceiro setor”.

Já o conceito de economia social remete ao contexto europeu de realidade e é fortemente influenciado pelos países francófonos. Trata-se de um conceito mais amplo em relação àquele de terceiro setor, pois inclui as cooperativas e as organizações de ajuda mútua. Em comum com as associações, essas formas de organização não se originam numa perspectiva de rentabilização do capital. Com esta noção, desloca-se o foco central de abordagem das organizações, já que o fator principal que as identifica deixa de ser a não obrigatoriedade do lucro e vai para o fato da distribuição do lucro ser limitada aos detentores do capital. De fato, em termos históricos, a“fronteira não passa pela distinção entre organizações com ou sem fins lucrativos, mas sim entre sociedades capitalistas e estruturas de economia social”. Além disso, a noção de economia social reage à distinção operada entre economia e moral, conforme as formulações de Gide e Walras, lembradas pelo autor.

Além disso, o conceito sofre uma forte conotação jurídica, pois identifica três entidades específicas: cooperativas, associações e organizações de ajuda mútua (mutualités). De todo modo, Laville lembra que a adoção de uma dessas formas jurídicas não constitui garantia de pertencimento à economia social, haja visto o problema das falsas cooperativas. É assim que sugere-se neste debate uma abordagem normativa em complemento à definição jurídica para enfatizar alguns princípios traduzindo a ética da economia social: “finalidade de servir os membros ou a coletividade em vez de ter uma finalidade lucrativa; autonomia de gestão; processo democrático de decisão; primado das pessoas e do trabalho sobre o capital na repartição dos rendimentos”.

Na sua abordagem, Laville nos mostra como a lógica de reação contra os efeitos do capitalismo que explica o aparecimento das organizações de economia social atenua-se a favor de uma lógica de adaptação funcional, que foi fruto de pressões do seu meio ambiente institucional. Ele menciona, a esse respeito, a preocupação de Paul Singer com as falsas cooperativas. De fato, “os estatutos só parcialmente protegem as organizações de economia social. Como qualquer outra organização, elas estão sujeitas a um isomorfismo institucional. Com efeito, como nos lembra Laville, “os que conhecem melhor a economia social concordam em dizer que a problemática da ‘empresa’ se sobrepôs progressivamente à problemática da ‘associação’”.

Mas sua análise nos mostra ainda que a banalização da economia social não é justificada apenas pelo isomorfismo mercantil e pela visão exclusivamente organizacional. Isso também ocorre por causa da relação que ela tem com o político. É precisamente essa dificuldade em reafirmar a dimensão política que limita a economia social como conceito: “A economia social não pode ser considerada como o prolongamento do associacionismo solidário visto que, neste último, a vontade emancipatória rompia com as concepções paternalistas. O que está em jogo com a emergência da economia social não é o reconhecimento do associacionismo, mas sim a sua reorganização em benefício de novas tutelas”. Para ele, a economia social libertou-se progressivamente da visão tutelar a que deve sua existência, “mas o realismo da empresa que daí resultou não permitiu o seu renascimento político”.

De fato, Laville nos lembra que, nas organizações de economia social, a solidariedade expressa-se pela propriedade coletiva. A ênfase é posta, assim, na sua presença na economia através do modelo de referência que é a cooperativa. “Todavia, a busca desta integração econômica atenua progressivamente a solidariedade original: por um lado, a igualdade formal nos direitos de propriedade não impede as desigualdades provenientes da divisão do trabalho; por outro lado, num modelo de desenvolvimento que assenta nos pilares constituídos pelo mercado e o Estado, a economia social não escapa à sua atração, como demonstram estudos empíricos em diversos setores e países”.

Já a reflexão sobre o conceito de economia solidária aparece no prolongamento da discussão sobre economia social, a fim de completá-la no que diz respeito à dimensão econômica e reintroduzir a dimensão política. Com ela, Laville traz de volta a ideia de organizações ou empresas coletivas, mas que também se definem como ações coletivas simultaneamente socioeconômicas e sociopolíticas. Tal conceito sinaliza a impossibilidade de separar os desenvolvimentos cooperativo e associativo. A própria comparação internacional relativiza a escolha do estatuto cooperativo ou associativo, conforme os exemplos apresentados em diferentes países no que diz respeito às suas respectivas legislações nacionais.

Pelas suas caraterísticas próprias, Laville sugere que a economia solidária indica “uma nova problemática”, já que uma outra lógica orienta as atividades econômicas concebidas como meios o serviço de finalidades ligadas à solidariedade democrática e à produção de bens e serviços. Ou seja: “ela não é determinada pela perspectiva de ganhos, mas pelo seu caráter apropriado a um bem comum”. Tal ideia é atestada pelos exemplos do comércio justo, das finanças solidárias e dos serviços de proximidade.

Além de uma nova problemática, Laville salienta que a economia solidária se baseia numa “dupla dimensão”: econômica e política. Isto porque a promoção da democracia, tanto no seu funcionamento interno como na sua expressão externa, torna-se uma condição para a expansão de suas iniciativas. Com essa dupla dimensão, “a economia solidária vem questionar, ao nível conceitual e empírico, as categorias da economia, recusando-se a limitar os fenômenos econômicos aos que estão definidos como tais pela ortodoxia econômica”. Se isso pesa contra o seu reconhecimento, de um lado, por outro lado, Laville nos diz que ela opera uma “reflexão mais geral sobre as definições e instituições da economia”.

O autor restitui então o argumento de Karl Polanyi, que permite ampliar a compreensão do econômico a partir de um exame crítico fundamental sobre as teses do liberalismo econômico. Sua preocupação consiste num entendimento necessário sobre os modos de instituição da economia na vida em sociedade. O intuito está em desvelar os meios de invalidação das diferentes formas de economia. Com essa abordagem ampliada da economia, a noção de economia plural torna-se uma base útil e fundamental para repensarmos a relação entre economia e sociedade.

Nessa perspectiva, a crítica aos mercados não se dirige à sua eliminação. Laville recupera Polanyi e Mauss para lembrar da condição necessária da liberdade dos mercados para a vida econômica: ao invés da supressão dos mercados, a solução deve ser procurada na sua organização e/ou “domesticação”. As novas formas de enquadramento devem ser promovidas com base em regras sociais e ambientais definidas tanto no nível nacional quanto nos níveis local e internacional.

Ainda assim, para Laville, é preciso ir além das regulamentações e rebater a argumentação dominante que atribui ao mercado o monopólio da criação e da riqueza. Isto implica em estabelecer “outros modos de reconhecimento do valor dos bens produzidos” para além dos “mecanismos mercantis”, o que pressupõe a revalorização dos serviços públicos e das associações.

O autor conclui essa última parte enfatizando a necessária reafirmação do político. Para ele, a dimensão política na economia solidária se conjuga com a sua dinâmica socioprodutiva e se expressa numa dupla dimensão. Trata-se, no nível interno, dos processos de deliberação política próprios aos mecanismos decisórios característicos da gestão em tais iniciativas. Elas acabam funcionando então como espaços públicos de proximidade, na medida em que os atores locais estão debatendo publicamente os assuntos relativos às próprias práticas socioeconômicas. Por sua vez, no nível externo, as organizações de economia solidária implicam-se em espaços públicos de um segundo nível, conforme as interações e articulações com outras instituições da sociedade civil e diferentes instâncias públicas governamentais.

Pudemos ver, no Brasil, como se deu o processo de expansão da economia solidária enquanto campo institucional especialmente entre os anos 2003 e 2016, cujo papel das formas de auto-organização política foi de grande importância através dos fóruns e redes de economia solidária que se espalharam pelo país.

Pela sua capacidade em articular-se institucionalmente, as experiências de economia solidária também se fortalecem e saem do isolamento através de sua articulação com políticas públicas. É assim que, segundo Laville, tais práticas ajudam a reconfigurar o quadro institucional, já que a emergência desses espaços públicos de segundo nível (como fóruns e redes) acontece na confluência ou hibridação entre democracia participativa e representativa. Para ele, é também neste sentido que tais experiências se posicionam para além do economicismo reinante e sinalizam uma perspectiva de democracia plural.

***

Através deste livro, Laville nos mostra que uma economia diferente, efetivamente a serviço da sociedade, não é um projeto a ser construído. Ela já tem uma história e sua análise compreende tanto o passado quanto a atualidade dessa outra economia, detalhando os avanços e inovações que a acompanha, mas também os profundos desafios que se impuseram às suas experiências. Também o modo de interpretar as práticas passa muito fortemente pelo seu crivo. Sua reflexão conceitual é sólida e atravessa a história de uma economia para a sociedade cotejando as análises contextuais e dos multivariados casos, a fim de, ao final, concentrar-se sobre as três noções que se destacam no inventário mais conhecido da discussão conceitual sobre esse tema: terceiro setor, economia social e economia solidária.

Impressiona a quantidade e qualidade das fontes consultadas, indicando a abrangência, a extensão e o alcance ampliado da abordagem de Jean-Louis Laville. Estamos diante de uma análise bastante exaustiva do tema. Sim, este livro reflete um trabalho maduro, fruto de um acúmulo de algumas dezenas de anos de pesquisa. Laville é um dos maiores conhecedores da temática da outra economia em termos internacionais. Sua maturidade é acompanhada pela sapiência daqueles que se apoiam na sensibilidade do olhar sobre o outro, sobre o que é diferente, atestado no modo como ele tem incorporado a perspectiva das epistemologias do Sul na sua abordagem.

O livro aparece na esteira de algumas dezenas de outros publicados por Laville sobre temas correlatos nos últimos anos. Apenas no Brasil, nossa parceria produziu Economia solidária:  uma abordagem internacional em 2004 e Ação pública e economia solidária: uma perspectiva internacional em 2006. Laville foi também um dos co-organizadores do Dicionário internacional da outra economia em 2009. O leitor brasileiro encontra então, através deste livro, uma obra de referência para pensarmos juntos os caminhos e as possibilidades de ação transformadora em face aos grandes dilemas da contemporaneidade.

Boa leitura !

Notas

[1] Ver FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; EYNAUD, Philippe (2020) Solidariedade e organizações: pensar uma outra gestão. Salvador: EdUFBA / Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial (Coleção Metamorfoses).

[2] Ver ROSANVALLON, Pierre [2006] (2022) A contrademocracia: a política na era da desconfiança. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial (Biblioteca do Pensamento Político).


GENAUTO CARVALHO DE FRANÇA FILHO é Coordenador do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA/EAUFBA). Pesquisador no Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS/EAUFBA). Coordenador da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária e Gestão do Desenvolvimento Territorial da Universidade Federal da Bahia (ITES/UFBA). Pesquisador CNPq: Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora – DT II. Autor do livro: Solidariedade e organizações: pensar uma outra gestão (EdUFBA / Ateliê de Humanidades, 2020).

Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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