Hoje, no Fios do Tempo, temos o prazer de trazer mais um texto do sensível e brilhante jovem intelectual Wellington Freitas. Muito se fala do poder de transcendência das religiões, em especial do cristianismo, mas o que quer dizer transcendência? Interpretando a mensagem escatológica e ética de Jesus como uma “rotura no tempo”, Wellington propõe uma compreensão de salvação em que a transcendência do sagrado é uma experiência feita e efetivada com os seus pés no próprio chão.
Desejo, como sempre, uma ótima leitura.
A. M.
Fios do Tempo, 23 de maio de 2022

Uma transcendência
de pé no chão
Na perspectiva bíblico-teológica, a história é irrompida pelo Sagrado que se relaciona com a humanidade. Jesus é uma rotura no tempo em mão-dupla: é o Cristo espiritual-escatológico e o salvador da realidade contextual-imanente. Daí os dois lados, ou vias de fratura espacial e temporal, existem mediante o ágape e o querigma. O contextual e o escatológico amalgamam-se em resposta imediata ao amor serviçal que, simultaneamente, alude a um futuro Reino. Esse reinado tem uma transcendência discursivo-filosófica com dimensões de política pública.
A rotura no tempo é uma fratura – um deslocamento. Significa ir para fora daquilo que lhe cerca e, ao mesmo instante, enxergá-lo criticamente. Essa metafísica é a transcendência que Jesus fez quando vai além do que a geografia política e cultural vigente fornecia-lhe. Como profeta, ele denunciava a corrupção e o preconceito.
Transcendência não é um termo que possui um significado restrito ao campo religioso ou à sociedade antiga. Transcender é se ausentar, afugentar, afastar, abrir, suspender, deslocar, se sublevar e elevar-se. É viver outra realidade além dos elementos dados ou impostos pela sociedade. É fissura na existência. Transcender nunca é confundido com êxtase, transe, histeria, delírio.
Há transcendência sobrenatural no mundo religioso, mas aqui fazemos uma metafísica da consciência e da experiência humana. Ela se alicerça em quem não tem o que comer, agora, com o prato cheio de alimento; no desamparado e desassistido pelo governo; naquele que vive ao relento com agasalho e moradia. Tais metáforas sugerem a descontinuidade com a vivência imposta pelas circunstâncias. Sem dúvida, é abertura para elevação do indivíduo, trazendo amor-próprio e autoestima. Isso é transcender o concreto em busca de outro real. Nessa separação consciente e experiencial, Jesus, nas falas seguidas de boas ações, denunciou a segregação e a desvalorização daqueles párias da época, como: a mulher, a criança, o deficiente, o eunuco.

Transcender ao dogmatismo é ter a noção da salvação pelo ângulo da pessoa de Jesus sem enxerto sistemático religioso. O excesso da religião impossibilita a ótica humana do agir salvífico, que é inverter a lógica do caos sobre alguém. Quando se ajuda, ampara, acode, protege ou socorre alguém, com boas intenções, não só se acaba com a desordem da vida dessa pessoa, mas também se transcende o próprio ego. Dá-se um salto de um possível estágio individualista para o bem comum.
Temos, então, uma salvação coletiva, porque o quesito salvar não se resume ao conteúdo religioso-doutrinário – nem à individualidade. Não afunilando a salvação ao dogmático e transcendendo-a, a partir de uma licença poética em relação às interpretações escatológicas, salvar é: libertar, proteger, defender, livrar, sarar, resgatar, socorrer. A Cristologia e a Soteriologia dão conta disso, mas omitem o lado natural dos fatos.
No Evangelho de Lucas (5. 18-25) relata-se que alguns homens – com muita dificuldade – levaram um paralítico até Jesus. Não só o doente foi sarado, adquirindo dignidade e inclusão social, mas aqueles que o ajudou tiveram seus pecados perdoados. Em Atos (16. 13-15) lê-se o episódio de uma mulher afortunada no qual ouvindo Paulo foi batizada, mas também os de sua casa. Ainda nesse mesmo capítulo (16. 25-31), Paulo e Silas, em prisão, pregaram ao carcereiro informando que crendo em Jesus é salvo ele e toda sua casa. Nestes trechos, a salvação não tem caráter meramente individualista.
Em Marcos (6. 34-44), oriunda de diversa localidade, tem uma multidão psicologicamente perdida atrás do Nazareno. Era gente precisada de amparo, de palavra esperançosa e de ser atendida nas necessidades fisiológicas. O Galileu teve compaixão das suas angústias; aplicou uma mensagem-orientadora e deu o que comer mediante a multiplicação dos pães e peixes. Ao não serem rechaçadas as pessoas foram abraçadas; acautelou-se a perturbação e se teve o estômago forrado. Aí Jesus salvou da fome, da mente desorganizada, do desnorteamento e do desafeto.
Enquanto transcendência e salvação confinarem-se ao recinto religioso dogmático, não vendo o miraculoso como gesto simples – com potência de protesto sem sê-lo intencional, aos moldes de Jesus de Nazaré com a justiça amorosa –, tais eventos só serão captados como fenômenos extraordinários e jamais como uma atitude do cotidiano que rompe com o esquema corruptível da desigualdade, da injustiça, da exclusão social. Ruptura, rotura, fratura, transcendência e salvação são modos de se elevar e pensar o mundo, de experienciar e olhá-lo sempre com o intuito de melhorá-lo para os outros e, consequentemente, a si mesmo, podendo ser feito por religiosos e não-religiosos.
Jesus da Galileia transcendia ao romper com a estrutura política romana porque causou descentralização local e, também, fraturou o contexto judaico político-sacerdotal ao denunciar a hipocrisia. Para além do religioso, quem ouvia e seguia o Nazareno tinha a vida transcendida e salva em diversas áreas subjetivas e socioculturais. Hoje vivenciar a transcendência é sublevar aquele que se deixa relacionar-se contigo, ambos são salvos de um contexto que lhe impuseram.
Agora, para um religioso conservador, é difícil a aceitação de uma transcendência e salvação experimentada e gerada por alguém ateu, agnóstico e cético; e não apenas por um espirituoso.
A mulher que é atendida judicialmente e tem medida protetiva policial contra o marido agressor é sinônimo de escape, de transcender. É salvá-la: ultrapassando a condição existencial opressora para uma outra realidade. O mesmo ocorre ao articular um estado de vida sadio para quem está sob situação de moradia sem assistência social, de saúde ou saneamento básico. Então, promover políticas públicas para os desfavorecidos é arrancá-los do caos – de um estado infernal – compelido pela sociedade mediante a desigualdade. Salvar e transcender é estar além da alienação, do sofrimento. É romper com a inércia. Quem é tímido torna-se mais extrovertido; quem não sabe dançar, samba no carnaval. Rompe-se com a fixidez, sendo benevolente com alguém ou o grupo social, é transcender junto a este receptor (da bondade, da dignidade, da humanidade). Dependendo da situação, transcender e salvar caminham juntos porque ambos são roturas.

Wellington Freitas é especialista em Ciências da Religião (Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro – FSBRJ). Graduação em Comunicação Social pela PUC-RIO. Licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Administração, Ciências, Educação e Letras (FACEL). Bacharel em Teologia pela Faculdade Evangélica de Tecnologia, Ciências e Biotecnologia da CGADB (FAECAD). Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades. Docente em Sociologia da Religião e Teologia Contemporânea em Seminários Teológicos. Membro do grupo de pesquisas CRELIG (Dinâmicas territoriais, cultura e religião). Atualmente cursando Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Iguaçu (UNIG).
Deixe uma resposta