Fios do Tempo. O poder pastoral de Cabo Anselmo – por Aldo Tavares

Sabemos o que é o poder? E como ele se exerce? Conseguimos entender, a fundo, o que é uma guerra e como ela se faz taticamente por movimentos e repousos, encenações e duplicidades? Será que conseguimos sair dos esquemas binários para repensar a política pelo entre-dois? E o que isso tem a ver com a ato de brincar? E o que isso tem a ver com Platão?

Estas são algumas interrogações que Aldo Tavares desdobra sempre mais a mais em seus textos escritos articulando reflexões metafísicas e interpretações de casos históricos. Neles, Nietzsche, Deleuze e Foucault ressoam, ao invés de negar, o pensamento “platônico”. Aldo nos convida a não ficar repetindo platitudes e voltar a ler Platão, não sem passar, claro, pelas reviravoltas de Maquiavel… Mais precisamente, trata-se de um convite a levar a sério a metafísica como forma de conceituar o poder e refazer a política.

O pano de fundo do pensamento? Sua experiência ativa e desilusiva, desde os anos1980, na militância de esquerda. Sem pensar o poder em seu tecer tensional e representacional, a política se esvai no realismo dos ingênuos códigos binários. No presente texto, Aldo avança nas suas reflexões fazendo uma interpretação criativa do conceito de poder pastoral de Foucault a fim de pensar como ele foi exercido pelo cruel personagem histórico (bem real em sua multiplicidade), o espião infiltrado Cabo Anselmo.

Desejo, como sempre, uma ótima leitura.

A. M.
Fios do Tempo, 21 de junho de 2022



O poder pastoral de
Cabo Anselmo 

Roteiro e direção do jornalista Carlos Alberto Júnior, a série Em busca de Anselmo, dividida em cinco partes, está disponível desde 11 de abril deste ano pelo canal HBO. Trata-se de uma obra-prima da história tático-militar do Brasil, documentário que me põe a contemplar assombrado a fina e a fria intelligentsia da Marinha desde o momento em que seu protagonista representa a si mesmo como outro na Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, teatro onde se inicia a arte da representação da guerra interna do Brasil. 

O personagem principal, ele: ou Alexandre, ou Jonâtan, ou Daniel, ou Américo Balduíno, ou companheiro Renato, ou Mário Soria, ou Jadiel, ou Paulista. Ele, portanto, é eles ou, se quisermos ainda, ele é sempre igual a ele mesmo sendo outros embora seja este seu nome mais conhecido na arte da guerra interna: cabo Anselmo. Leiamos as palavras por seus significados originais, que dizem mais do que poderia cogitar as intenções de quem o nominou: cabo é “extremidade por onde se maneja algo”; e Anselmo (do alemão Ans, “semideus dos Godos”; e Helm, “elmo”) significa que, acima dos homens e abaixo dos deuses, tem “a cabeça protegida por uma divindade guerreira”. Cabo Anselmo, portanto, pode ser traduzido simbolicamente como a extremidade do poder militar por onde revolucionários são manejados através de uma razão protegida pelo sobrenatural.

Criado pela arte militar de saber representar muito bem, cabo Anselmo encarna o paradoxo da tática de guerra, cujo limiar na linha de frente manipula a realidade com tal argúcia ou com tal perícia que seus movimentos no front do cotidiano escapam ao previsível código binário da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR. Poderíamos afirmar que cabo Anselmo é irreal e, por sê-lo, desorganiza a realidade como quem brinca; por isso, desde as primeiras cenas, seus risinhos sutis e um riso demasiado preparam a entrada de seu triunfo ficcional: “Eu não existo”. Mas, em razão de sua natureza paradoxal, cabo Anselmo é irreal-e-real ao mesmo tempo, movendo-se sempre na fronteira entre amigo-e-inimigo, entre companheiro-e-opositor. Ele pertence a uma guerra não convencional, aliás, a origem da palavra guerra nos remete à “confusão”, à “mistura”, e a mistura, porque não se encontra nos extremos do Ser absoluto ou do Não-ser absoluto, movimenta-se entre-dois. Traidores, infiltrados, espiões são misturas que se movimentam entre-dois, o que justifica a guerra interna ser arte, a mesma arte de dois representantes do poder na filosofia: o guardião em A república, de Platão; e do sacerdote em Genealogia da moral, de Nietzsche. Nesse sentido, reconheço no cabo Anselmo o rosto-palavra de um poder que anula animosidades, qual seja, o poder pastoral. Michel Foucault menciona esse poder em Vigiar e punir, cuja origem conceitual lê-se em Político, de Platão.

Tal qual o poder de um pastor, o rosto-palavra de Anselmo – por sinal, nome do notável bispo de Cantuária e Lanfranc, Santo Anselmo (1033-1109) – expressa, ao longo do filme, a suavidade ou a serenidade indelével daqueles em cujos ombros não pesa nenhuma culpa ou nenhum arrependimento quando, por exemplo, relata ter conduzido seis companheiros revolucionários à morte em 8 de janeiro de 1973, na chácara de São Bento, em Olinda, Pernambuco. Um nome, porém, chama aguda atenção: Soledad Barret Viedma, 28 anos. A urdidura que a envolveu é a excelência do que Platão chama de mentira nobre, isto é, Soledad é assassinada pela mentira que se ajusta à verdade. 

Itaporanga d’Água, Sergipe. José Anselmo Santos nasce em 13 de fevereiro de 1941, mas nesse município não consta registro no Cartório do 1º Ofício de seu nascimento. Não só: na Marinha, não há documentação, é como Anselmo nunca tivesse existido; porém, aos 23 anos, embora seja a quinta opção, ele é presidente da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, sendo que, meses antes do golpe de 1964, o menino que gostava de igreja e não gostava de briga em Itaporanga d’Água lidera a marujada no Rio de Janeiro. Nessa época, cabo Anselmo já agia como “ator” e, uma vez infiltrado pelas Companhias de Teatro Operacional Centro de Informação da Marinha (CENIMAR) e Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), profere um discurso revolucionário em 25 de março de 1964, elaborado com Carlos Marighella, o mesmo que destaca em seu manual que o maior perigo da guerrilha é a infiltração.

Após seis dias de seu discurso na assembleia dos marinheiros, em apoio às reformas de base do governo de João Goulart, no Sindicato dos Metalúrgicos, ocorre o golpe de 64. Três anos depois, cabo Anselmo já está em Cuba – então com o nome de Daniel – para aprender táticas e técnicas de guerrilha, retornando ao Brasil em 15 de setembro de 1970 com o nome de Antenor Silva Carvalho, um gaúcho. Já em solo brasileiro, todo aparato teatral das forças de repressão conduzirá o ator Anselmo à sua última encenação em Olinda, Pernambuco. Antes disso, porém, após sucessivos revolucionários do “companheiro Anselmo” serem assassinados em São Paulo, ele busca retomar contatos com integrantes da luta armada no Chile, em novembro de 1971, sendo um nome a receber todo acolhimento afetivo pelo poder pastoral do cabo Anselmo: Soledad. Em 1972, encontra-se com ela em São Paulo e, nesse mesmo ano, partem para Olinda.

De líder carismático da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais a revolucionário da VPR, o rosto-palavra do cabo Anselmo cultivou confiança: afeto muito peculiar do poder pastoral, cuja finalidade é anular estranhezas ou possíveis conflitos nos detalhes do cotidiano, pois, representando a si mesmo como sendo outro, sua aparência natural, que é ambígua, movimenta-se sem obstáculo entre-dois extremos em razão de o combate nessa linha de frente ser neutro. Nesse front, cabo Anselmo encontra-se não no combate-contra, e sim no combate-entre, diria Gilles Deleuze em Crítica e clínica.

Na segunda parte do documentário, logo no início, Anselmo autoafirma ser “bom ator até hoje”, já que aprendeu a arte do teatro quando seminarista do Salesiano; teatro, aliás, que a guerrilheira Soledad, da VPR, não percebe quando, sob o mesmo teto, o ator principal encena uma vida familiar com ela em Rio Doce, Olinda. Na condição de casal romântico, eles têm a butique Mafalda, um fusca, uma minigaleria de arte para expor artistas locais e uma oficina de costura para vender bordados, peças de roupa. Em uma casa perto do mar, o cabo Anselmo executa seu combate-entre o Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, e a VPR. Na quarta parte, ao ser perguntado quem alugou o imóvel, Anselmo… [rindo]… deixa a resposta suspensa por segundos antes de responder… “o pessoal do DOPS”. Como se isso ainda não bastasse, toda documentação de Soledad é providenciada por um agente infiltrado do DOPS. Mais: a chácara de São Bento é escolhida como área de guerrilha pelo próprio DOPS para a VPR treinar.

Pastorar. O poder pastoral é o poder de, ocultamente, vigiar. Entenda: ao vigiar Soledad intimamente, o cabo Anselmo não é visto por ela como aquele que a vigia. Em Vigiar e punir, Foucault pensa em uma microfísica do poder, onde ele “não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos, que se desvende nele antes uma rede de relações” (p. 29). Anselmo e Soledad trabalham juntos. Dormem juntos. Vão à praia juntos. Na casa de Rio Doce, se não há nenhum cotejo entre o DOPS e a VPR, é porque o poder pastoral é poder de representação ou poder de agir naturalmente como se o rosto-palavra de Anselmo fosse o que é, anulando, portanto, quaisquer animosidades no cotidiano domiciliar, mesmo porque, sendo poder de pastorar, o ator Anselmo age com tanta boa-fé que Soledad confia no “amor” do DOPS sem ser o DOPS, quer dizer, confia no amor do cabo Anselmo. Ora, o poder pastoral joga a fim de que o “inimigo” fique próximo a ponto de ser “amigo” ou o poder pastoral joga em Rio Doce a fim de que a revolucionária Soledad torne-se íntima a ponto de ficar grávida do cabo Anselmo.

Não sei se um dia Anselmo leu Foucault, mas posso asseverar, com absoluta certeza, que ele sabe, e muito, o que é microfísica do poder, cuja genealogia, segundo o próprio Foucault, encontra-se no poder pastoral, poder das “pequenas coisas” ou, segundo Deleuze, poder molecular ou Menor. Quanto a essa forma paradoxal de poder, cabo Anselmo é exemplar, podendo ser lida sua excelente destreza em seu “Relatório de Paquera”, cujas anotações, destinadas ao delegado Sérgio Fleury, referem-se à sua ida ao Chile em 1971, onde retoma contatos com Onofre Pinto e outros integrantes da VPR. O verbo paquerar significa “fazer o outro falar amorosamente” e “espreitar”, isto é, de tão íntimo do inimigo, o ator Anselmo o vê sem ser visto, e o poder das pequenas coisas em seu relatório aponta o cálculo gradual: ano, meses, semanas, datas, dias, horas, minutos, cotidianos. Cabo Anselmo “paquera” Soledad (codinome Lourdes) desde Cuba e, em São Paulo, após o Chile, retoma a “paquera” na capital paulista, em janeiro de 1972. Em seu relatório, o ator Anselmo escreve “estou muito ligado afetivamente a ela”, e, em nome desse afeto, cabo Anselmo sugere ao delegado Fleury: “[…], caso seja possível desejar que a solução final fôsse a expulsão do Brasil, ou pelo menos, não fosse extrema”. De São Paulo, ela é levada por Anselmo para Rio Doce, Olinda, onde ele não só já tinha uma casa alugada pelo DOPS como já havia planejado no Chile um foco de guerrilha na chácara de São Bento com o revolucionário Onofre Pinto. Anselmo (ou o DOPS) convive com Soledad (ou com a VPR) pelo período “amoroso” de um ano. Loira, bonita, 1.8 de altura, grávida, Soledad é assassinada em janeiro de 1973.

“Eu embarquei na luta armada, dizendo o que eles queriam ouvir e ainda reforçando”, lembra Anselmo na quarta parte do documentário. Sob o mesmo teto da casa de Rio Doce, nº 194, cabo Anselmo embarca na luta “armada” com a sua “amada” Soledad. Mais: não só diz o que ela deseja ouvir como ainda reforça. “Toda essa convivência me foi mostrando uma parte sensível da mulher, que era uma bela mulher, e meu coração foi ficando [risos] cada dia mais mole dentro desse relacionamento”, confessa o sensível ator da repressão.

Após a Companhia de Teatro de Operações DOPS ter brincado com o código binário dos revolucionários da VPR, o protagonista dessa representação histórica, cabo Anselmo, é levado para São Paulo pelo delegado Fleury, onde, submetido à cirurgia plástica no Hospital Israelita Albert Einstein, passa a se chamar Alexandre da Silva Montenegro, até que, três anos antes de falecer aos 80 anos por infecção renal em 15 de março de 2022, obtém sua verdadeira carteira de identidade, José Anselmo Santos.

Personagem que se moveu na linha de combate-entre durante oito anos, posto que sua arte de representar permitiu seu rosto-palavra ocupar na guerra interna um estado de exceção, cabo Anselmo encarna a excelência militar do poder pastoral, cujos gestos, porque neutros, porque naturais, não aparentam nenhuma importância. Aprende-se, então, com esse espião ou com esse infiltrado que o poder não possui, não proíbe, não cria resistência, visto que o poder pastoral, que é neutro, é relação que atravessa a tática militar: “[…]; é a tática que permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência da guerra na sociedade civil”, escreve Foucault em Vigiar e punir

Entre várias passagens, a que me chama mais atenção são os risos de José Anselmo Santos durante todo o documentário, passando a imagem de que, no cadafalso da história pós-64, somente o carrasco, esse companheiro “cuidadoso”, despede-se do palco após desferir o golpe final. Retira-se o capuz e, perante os que assistem à história, Anselmo ri porque seu rosto, que é máscara, venceu cruelmente o combate nas trincheiras de uma guerra silenciosa. “O rosto é uma política”, compara Deleuze, e meu rosto que assistiu ao documentário Em busca de Anselmo desconhece quantas pessoas foram sequestradas, torturadas, assassinadas e desaparecidas em decorrência das delações desse ator-carrasco. Se, até hoje, nenhum torturador ou assassino a serviço da repressão foi punido criminalmente, permanecemos a desconhecer essa coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível-e-invisível, presente-e-oculta, chamada poder. Como encontrar uma forma de combate adequado se, mesmo depois da arte do cabo Anselmo, ignoramos o que é o poder?

  

Aldo Tavares é livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades, professor de filosofia e mestre em filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde defendeu a dissertação “A inocência infantil como potência do falso: platôs entre as fábulas de Platão e a criança de Nietzsche-Deleuze”.


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