Se a própria ordem de um monastério não é unidade absoluta, visto que ela permite a presença de um certo grau de individualidade, também a ordem militar não é absoluta. Pulsam diferentes ideias sobre o país nas Forças Armadas.
Escrevo o termo “absoluto” no sentido original, em seu sentido primeiro: “o que é impedido de ser solúvel”, ou seja, o que é ab-soluto não se dilui ou não se movimenta para se misturar com. O ab-soluto é imóvel por ser fechado nele mesmo, ou ainda, o ab-soluto não se mistura às contingências ou às variações da vida.
Quando traduziram a palavra grega “pólis” para a palavra latina “cidade”, o sentido original de pólis, que é “múltiplo, variado”, perdeu-se no termo cidade. Caso o sentido original fosse mantido com a tradução, o falante de língua portuguesa pronunciaria a palavra cidade com o entendimento de lugar das diferenças, das variações, da pluralidade.
Segundo dados do IBGE de 2010, existem 305 etnias neste “berço esplêndido”, onde são embaladas 274 línguas nativas ou indígenas. São 305 coletividades de seres humanos que se diferenciam pela especificidade sociocultural, não sendo de bom senso, portanto, afirmar de forma absoluta que 305 etnias são “indolentes”, isto é, “preguiçosas”. A preguiça não é valor absoluto na pólis, mesmo porque a população indígena, em 2010, representou 0,4% da população do Brasil, quer dizer, dos 191 milhões de brasileiros, os índios ou nativos não passaram de 896,9 mil. Porcentagem tão pequena não causa crise política, econômica e psicossocial. Ou será que causa?
A pólis, por causa de seu sentido primeiro, é também preguiça, porém não é, de forma absoluta, o valor totalitário sobre outros valores. O absoluto nega a pluralidade da vida ou encontra-se afastado da polissemia da vida. Afirmações absolutas são afirmações acabadas, concluídas em si mesmas. Fechadas. Sentenciar que 305 etnias diferentes têm como valor absoluto a preguiça é querer totalizar o que não pode ser totalizado. A natureza da pólis não é o absoluto, e sim a pluralidade. A pólis é “polis-sêmica”.
Outro grupo social “causador de nossa crise política, econômica e psicossocial”, ele, por ser malandro: o negro. Segundo dados do IBGE, 1.835 crianças (entre 5 e 7 anos) em 2016 trabalharam, sendo que 35,8% eram brancas; e 63,8%, negras. E por que porcentagem bem maior para os afrodescendentes? Porque criança negra não gosta de trabalhar, é malandra. No mesmo ano, a taxa de analfabetismo ficou em 4,4% para o branco e, para o negro, em 9,9%. E por que essa porcentagem bem maior para afrodescendentes? Ora, porque o analfabeto negro não gosta de estudar, é malandro. Ironia sem graça à parte, pergunto: terá sido Joaquim Barbosa malandro? Sobre juízes e tribunais judiciais, sugiro a leitura de “A formação do Estado burguês no Brasil” (1888-1891), de Décio Saes, cujas páginas evidenciam quem foi o malandro, considerando malandro aquele que se desvia da conduta justa.
Escrito em 1928 por Mário de Andrade, “Macunaíma” está para a nossa literatura assim como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, está para a história da civilização brasileira. Pois bem, se “Macunaíma” é uma narrativa rapsódica, seu protagonista, que leva o mesmo nome do livro, é um “rapsodo”, termo que significa “aquele que costura os cantos”, isto é, aquele que mistura frases melódicas. Macunaíma aproxima valores opostos: branco só na pele e nos hábitos, ele nasceu negro e é índio.
O rapsodo encontra-se n”A República” (Livro II), onde Platão o vê como um mal contra aqueles que querem dominar a pólis de forma absoluta. Macunaíma significa “o grande mau”, mas esse mau só é contra Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, novo-rico que mora no palacete da rua Maranhão, em São Paulo, “olhando pra noruega do Pacaembu”. Proprietário de muitos imóveis caros, estrangeiro de espírito prático e que tem muita influência política, essas características e outras fazem de Venceslau um comedor de gente. Por causa disso, Macunaíma só é o grande mau para quem representa o poder econômico, que é o caso do capitalista Venceslau, que tem pé para trás. Contra o capital que come gente, portanto, Macunaíma, indolente como índio e malandro como africano, ri do poder econômico, que se diz absoluto.
A atual crise “política, econômica e psicossocial” em nossa pátria não possui fundamento teórico quando uma fala que se crê absoluta responsabiliza por essa mesma crise “a cultura ibérica, o indolente indígena e o malandro africano”. Toda pólis passa por crise, pois ela é a confluência das várias diferenças humanas. Só o que é absoluto não passa por crise, por exemplo, Deus.
* Imagem: O Batizado de Macunaíma, de Tarsila do Amaral (1956)
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