Fios do Tempo. Crise democrática ou crise de representação? – por Elimar Pinheiro

Muito se fala que vivenciamos uma crise democrática, mas pouco se reflete sobre a natureza da democracia na qual vivemos. Estamos em meio a uma crise da democracia ou, na verdade, assistimos a mais uma mudança no modo do governo representativo?

Nesta excelente resenha do clássico livro do cientista político francês Bernard Manin, Principes du gouvernement représentatif [Princípios do governo representativo], Elimar Pinheiro do Nascimento não apenas faz uma exposição sobre o que é o governo representativo e quais são suas fases ao longo da história moderna, como também reflete, de olho nos fatos políticos e em diálogo com autores contemporâneos, a respeito da atual ascensão dos populismos autoritários.

Penso que este texto pode ser bem apreciado fazendo uma leitura cruzada com sua resenha de O século do populismo (Um novo fantasma paira sobre a sociedade moderna: o populismo), publicada no Fios do Tempo em 23 de agosto de 2021. Os dois textos mostram um esforço de Elimar Pinheiro para construir uma interpretação política dos fatos presentes de forma dialógica e sem as facilidades das adesões imediatas às relações conjunturais de força.

A. M.
Fios do Tempo, 18 de janeiro de 2022




Crise democrática ou
crise de representação?

Elimar Pinheiro do Nascimento

A trajetória em direção à democracia atual pode ser dividida em três grandes fases, segundo Bernard Manin, cientista político francês[1]: a República ou governo de notáveis, a democracia de partidos e, atualmente, a democracia de público, cada qual com sua dinâmica política e padrão de partidos políticos. São três tipos ideais, o que significa que nas situações concretas misturam-se, com predominância de um ou outro tipo. A transição de uma fase a outra sempre foi caracterizada na ciência política como crise da democracia. E hoje, este mote se repete. Vide, neste sentido, os trabalhos recentes de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt[2], Manuel Castells[3] e Adam Przeworski[4], entre outros. Tese da qual discorda Manin[5].

Distintamente do que a maioria imagina, a revolução inglesa, a independência americana e a revolução francesa não deram nascimento à moderna democracia liberal como a conhecemos hoje, afirma o cientista politico francês, deram nascimento ao regime de governo representativo considerado distinto, oposto e mesmo superior à democracia. A democracia era entendida como o governo do povo, e o governo representativo como o governo das elites, pois o povo era incapaz de se governar.

Havia a expectativa de que fossem elites comprometidas com os interesses públicos e, sobretudo, nacionais. Ao longo do tempo o governo representativo passou a ser nomeado como democracia representativa ou liberal, opondo-se à democracia direta[6].

Na verdade, a democracia liberal, tal como a conhecemos hoje, é o resultado de um longo percurso que atravessa os séculos XIX e XX, sem, no entanto, abandonar ou modificar radicalmente os elementos constituintes do arcabouço que funda o governo representativo no século XVIII. A forma, governo representativo, mudou muito do ponto de vista formal, mas bem menos no conteúdo.

As mudanças de conteúdo mais importantes estão relacionadas à dimensão do corpo eleitoral, com a criação do sufrágio universal no século XX, e a natureza da representação, com o surgimento dos partidos de massa, ainda no século XIX[7], e os novos partidos (catch-all[8] e cartéis)[9], na segunda parte do século passado. Ao que se deveria acrescentar o aumento da transparência dos processos decisórios com a revolução digital[10].

O Governo representativo

O Governo Representativo (GR), que nasce dos movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII, não é a expressão da vontade popular. Na concepção dos pais da democracia americana[11], o GR filtra as expressões populares, escolhendo aquelas mais afinadas com os interesses públicos e factíveis. Sabedores do debate entre procedimento democrático (sorteio) e aristocrático (votação), existente desde os atenienses da Grécia Antiga, elegeram este e esqueceram aquele. O povo não era concebido como capaz de governar, mas apenas de escolher os mais preparados para o exercício do poder; tinha apenas o direito de escolher qual elite deveria governar.

Os princípios do GR eram, e até hoje são, seis[12]: a) eleições regulares e livres para escolher os governantes; b) liberdade de expressão e organização dos cidadãos; c) liberdade dos cidadãos de criticar ou aplaudir os governantes, decorrente do princípio anterior; d) liberdade dos representantes para tomarem a decisão que lhes parecesse a melhor para a Nação; e) decisões resultantes da discussão pública; e, f) separação dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Em alguns casos, o poder do Parlamento era considerado o mais importante, em outros, o do Executivo. A rotatividade incluída na regularidade das eleições permitia a renovação das elites e, para alguns teóricos, (Michels[13], Duverger e Weber[14], entre outros) assegurava o interesse dos representantes em adotarem procedimentos que fossem de conformidade com as demandas dos representados, pelo interesse de serem reeleitos.

Os eleitores não podiam obrigar seus representantes a tomar as decisões que eles julgassem as melhores, tinham apenas o direito de não os reeleger. Congressistas americanos, por ocasião do Bill of Rights (1791), tentaram introduzir o direito de os eleitores instruírem seus representantes e obrigá-los a obedecer às instruções. Mas o Congresso rejeitou o mandato imperativo. Os eleitores podem dar instrução, mas esta não tem força de lei. Na França, o mandato imperativo foi enterrado em 1789. Predominou a ideia de que os representantes são livres para tomarem a decisão que lhes parecer melhor, sem qualquer compromisso com as promessas de campanha e os compromissos com os seus eleitores. Com a derrota do mandato imperativo prevaleceu o princípio de que os representantes não representam os governados de seu território, mas os interesses nacionais

Procedimentos considerados democráticos pelos criadores da ideia da democracia na Grécia Antiga, como o sorteio, a revogabilidade dos cargos e a prestação de contas foram rejeitados. Os dois últimos foram parcialmente incorporados, mas sempre com relutância. A revogabilidade é admitida em condições especiais, mas com a última decisão nas mãos dos parlamentares. A prestação de contas tornou-se uma norma, mas sempre esmaecida. E o sorteio, o procedimento em que de fato os homens são considerados como iguais, jamais foi admitido.

Governo de notáveis

Na primeira fase da democracia, denominada por Manin de governo parlamentar ou governo dos notáveis na Europa ou República, nos Estados Unidos (sec. XVIII a XIX), a dinâmica política central consistia em levar ao governo pessoas da confiança dos eleitores. O representante era alguém da confiança estritamente pessoal do eleitor, o qual se identificava com a comunidade de interesses, podendo esta ser territorial ou setorial. Havia um elemento de proximidade inquestionável. Os eleitos eram pessoas que haviam ganho uma relevância na comunidade, daí a denominação de notáveis. Nesse regime, a expressão mais acabada foi o parlamentarismo, quando o representante não era o porta voz de seus eleitores, mas seu « homem » de confiança no Parlamento[15].

Interessante observar que no século XIX, na Inglaterra, tem-se uma série de movimentos sociais, mas estes não se confundem com os processos eleitorais que guardam sua autonomia, em parte pelo sufrágio restrito. As reclamações e demandas desses movimentos algumas vezes são absolutamente ignoradas pelo parlamento, como se existissem duas órbitas independentes, a social e a política. Contudo, se confrontam, e por vezes colocam em risco a ordem pública.

Não sendo, os parlamentares, presos aos interesses e desejos de seus eleitores, a discussão parlamentar flui naturalmente, na busca do convencimento de uns pelos outros. Esse governo de notáveis vai ser superado com as mudanças na sociedade advinda da urbanização e industrialização, mas também pelas mudanças no corpo eleitoral.

Até o século XX, portanto, “ontem”, o povo, o corpo eleitoral de cidadãos, era concebido tanto na Europa quanto nas Américas, de forma restrita: homens, do sexo masculino, e detentores de propriedades ou rendas. Mulheres, pobres, analfabetos e escravos estavam excluídos. Esses serão incluídos ao longo do século XIX, mas sem que tenham ascendido plenamente à cidadania. Até hoje há resistências a presença dos negros no corpo eleitoral nos Estados Unidos. As mulheres, com exceção da Nova Zelândia, alcançaram o direito de votar apenas no século XX. As francesas votaram pela primeira vez na vida em 1945. As suíças tiveram o direito ao voto reconhecido em 1971. Ou seja, há meio século. No Brasil, os pobres que não tinham tido direito de acesso à escola e, portanto, eram analfabetos, só tiveram o direito ao voto com a Constituição de 1988, e as mulheres, na década de 30. 

Democracia de partidos

Com a urbanização, a industrialização, a universalização progressiva do sufrágio e o surgimento do conflito capital x trabalho, na Europa e nos Estados Unidos, nasceram os partidos políticos de massa. Estes se introduzem na cena política produzindo mudanças no comportamento dos eleitores que, aos poucos, não votam mais em alguém que eles conhecem e depositam confiança, mas alguém indicado por seu partido, ao qual ele é fiel. Com os partidos de massa o povo ingressa na política oficial e no processo decisório governamental. Era o fim dos notáveis e o desaparecimento do elitismo, que marcaram o regime anterior.

Essas mudanças no sistema de partido e nos procedimentos eleitorais nasceram no século XIX, mas se consolidaram no século seguinte, com a ampliação do corpo eleitoral. Os partidos de massa (comunistas, socialistas, social-democratas, liberais, republicanos, conservadores, trabalhistas) tornam-se centrais no processo eleitoral com seus programas e promessas. Assim, os representantes não se identificavam mais com as velhas elites (de riqueza, status ou talento), pois parte dos representantes nasciam das atividades militantes, aproximando os candidatos dos eleitores. Por outro lado, a independência dos eleitos era limitada pelo controle exercício pelo partido e seus militantes. Dessa forma, o traço claramente aristocrático do sistema de representação do governo dos notáveis – a independência dos eleitos – ficou arrefecido, embora não por muito tempo.[16]

Eleição sempre foi regida pelo sentimento de confiança, antes era por uma pessoa, agora por um partido. Dessa forma, o sentimento de confiança nesse contexto mudou, deslocando-se do indivíduo para o partido. A base da confiança agora nasce do sentimento de pertencimento a uma organização partidária.

A fidelidade ao partido se transmitia ao longo das gerações dando grande estabilidade ao sistema.[17] Em geral, nos países desenvolvidos, o voto tornou-se um meio de exprimir a identidade de classe. A eleição tornou-se o produto de uma clivagem social pré-existente. A distância entre o espaço social e o político se estreita, porque os partidos exprimem reinvindicações de seu grupo. Não há decalagem importante entre a opinião pública e a expressão eleitoral partidária. Os veículos de comunicação dos partidos assumem uma nova relevância. Porém, a estabilidade do sistema criado pela fidelidade aos partidos é ameaçada pela mudança de lugar da discussão pública, antes realizada no Parlamento e agora no interior do partido.[18] Com isso, surge o risco de afrontamentos violentos, e a perda de valor da discussão parlamentar, pois cada um já tem sua posição definida pelo partido. O Parlamento como espaço de construção de consenso perde parte de sua finalidade. A garantia da continuidade democrática reside na aceitação, por parte da maioria, dos direitos da minoria.

Esses conflitos, em parte, foram amortecidos pela necessidade de realizar coalisão com outros partidos para ascender ao governo. Isso contribuiu para a estabilidade democrática, pois o partido majoritário deveria fazer concessões àqueles com os quais se aliava. Dessa forma, os partidos de massa não eram mais obrigados a pôr em prática a totalidade de seu programa. A margem de independência dos eleitos é, assim, retomada.

Nesse período, sobretudo em seus primórdios, no inicio do século XX, comunistas e socialistas acreditaram que com os partidos da classe operária esta chegaria ao poder. Tentativas foram realizadas na Itália, Alemanha e Rússia, sendo vitoriosa apenas nesta última, mas não pelas eleições, mas pela via insurreicional. O sociólogo alemão radicado na Itália, Robert Michels[19], demonstrou que esta pretensão era falsa. Os partidos da classe operária eram dirigidos por militantes despolitizados, burocratas, que aos poucos foram introduzindo em seus programas uma pauta reformista, de melhoria do sistema capitalista e não de sua superação.

Democracia do público

Até os anos 1970 a maior parte dos estudos eleitorais chegavam à conclusão de que o comportamento eleitoral se explicava essencialmente pelas características socioeconômicas e culturais dos eleitores. A partir dessa década um número crescente de estudos começou a mostrar que não era mais assim. A personalidade do candidato passou, gradativamente, a ser um dos fatores essenciais na escolha eleitoral, em detrimento dos partidos. Cada vez mais os eleitores decidiam seu voto não por um partido ou um programa, mas por um indivíduo. Surge, aos poucos, uma crise de representação, interpretada por vezes como uma crise da democracia, como ocorreu na passagem da fase do regime de notáveis à democracia de partido. No entanto, o que está mudando é apenas a forma de representação por partido, com o retorno da forma anterior, em que o traço pessoal do candidato era predominante, e não a indicação do partido. Retorno do papel do indivíduo-candidato, mas agora sob nova roupagem, pois os eleitos são personalidades mediáticas provindas dos mais diversos extratos sociais.

Os partidos de massa se desfizeram ou se enfraqueceram na maior parte dos países, com o definhamento do conflito capital x trabalho e o surgimento de novas clivagens sociais: gênero, etnia, vizinhança, consumo, meio ambiente, cultura, sexualidade etc. O princípio organizativo do conflito capital x trabalho desaparece, pois este agora se soma a um conjunto de novos conflitos: de território, de etnia, de consumidores, de ambientalistas, de gênero, de definição sexual etc. Os eleitores tornam-se mais erráticos, em parte descrentes dos partidos e dos governos.

Os partidos tinham uma ideologia, uma proposição que se comprometiam a pôr em prática chegando ao poder; agora as eleições não têm mais centralidade nos partidos, nem em seus programas, mas em personalidades mediáticas criadas segundo as informações que as assessorias dos candidatos produzem, apoiadas em pesquisas de opinião. A cena política é dominada por comunicadores e marqueteiros. E mais recentes com o apoio de físicos e engenheiros, especialistas em tecnologia da informação, conforme a análise recente de Da Empoli.[20] Os representantes chegam ao poder por meio de seu talento mediático.

Os partidos, no entanto, continuam a jogar um papel central, na medida em que são os veículos obrigatórios para as candidaturas se apresentarem. Além do mais, organizam a mobilização de recursos financeiros e humanos para as campanhas eleitorais. Contudo, os meios de comunicação ganham uma relevância extraordinária, pois os líderes se fazem conhecidos sem passar necessariamente pelo partido. Não são mais os notáveis locais, como no antigo parlamentarismo, nem os líderes de partidos que dominam, mas figuras mediáticas. É a democracia de público nascendo, na expressão de Manin.

Por essas razões, segundo o cientista político francês, não existe uma crise da democracia, mas apenas uma mudança da forma de escolha das elites no poder.[21] A democracia do público, que nasce no lugar da democracia dos partidos, é o reino dos especialistas em comunicação.[22] O aumento da complexidade do governo ultrapassa em muito a capacidade de anúncio dos programas partidários. A globalização e a velocidade das mudanças, no último cartel do século XX, torna a ação de governo cada vez mais imprevisível. Essa complexidade e imprevisibilidade aumenta o que Locke chamava de “poder de prerrogativa” – espaço onde as decisões são tomadas sem estarem previstas nas leis, nem nos programas partidários. Este fato apenas acentua um traço próprio do governo representativo – a independência dos eleitos na ausência de um mandato imperativo.

Os eleitores, hoje, antes de exprimirem sua identidade com os candidatos respondem aos temas colocados pelos políticos profissionais. Os candidatos atuais não apenas se apresentam, eles propõem um principio de divisão, que os diferencie dos adversários. Não há mais uma divisão que se sobrepunha a outras no mundo atual, como ocorria nos anos 1950 com a divisão em classes sociais. Agora as divisões são “criadas” e enfatizadas entre as muitas existentes no âmbito de uma sociedade, que não é mais regida pelo conflito capital x trabalho, mas por um conjunto complexo de conflitos. 

O representante é um ator que propõe um princípio de divisão, a partir das divisões existentes no âmbito da sociedade. Ele não é um porta voz clássico, apenas inspira confiança, em função de uma divisão que ele propõe, e o corpo de eleitores aceita. Assim, a campanha eleitoral cria um sistema de diferenças, e coloca em face do eleitor não uma imagem, mas um conjunto, entre as quais o eleito faz a sua escolha.[23]

O eleitor aparece como um púbico que reage às questões postas pelos políticos. Estes, devem descobrir qual o principio de divisão mais eficiente para ganhar a adesão do eleitor. Os eleitores não têm uma vontade política prévia, ela é criada no interior do campo político, no confronto entre as diversas ideias políticas, que se confrontam. Daí o papel das pesquisas de opinião.

Utiliza-se muito a imagem de mercado para batizar o novo campo político, na medida em que os candidatos são espécies de mercadorias a serem “compradas” pelos eleitores/consumidores. Interessante observar, no entanto, que a relação do campo politico com o mercado não é completamente justa. No mercado o empreendedor sabe quais as demandas e os desejos de seus consumidores potenciais, no campo político as demandas e os desejos nascem do confronto, no embate da luta.

Os eleitores formam suas opiniões a partir de meios de comunicação plurais que estão à disposição de todos, e cada um deles escolhe aqueles que correspondem à sua visão de mundo, valores e interesses. A imprensa partidária há muito perdeu importância, e a mídia tradicional parece seguir o mesmo caminho.[24]

A ideia de que os eleitores recebem informações mais ou menos dos mesmos meios de comunicação não é completamente verdadeira, devido às redes sociais e à disparidade de meios de comunicação. A ideia de que as questões são percebidas de maneira relativamente homogêneas por todos é falsa. As redes criaram algo similar à imprensa partidária, capturam o eleitor, e distorcem os fatos por meio de Fake News.[25]

A forma do governo representativo que emerge hoje em dia é caracterizada pela presença de um ator novo, o eleitor informado e volátil. Os meios de comunicação, por sua vez, são um novo fórum de debate, um novo protagonista da deliberação política. O eleitorado volátil sempre existiu, mas antes era minoritário, formado de pessoas com pouca escolaridade e desinformadas. Agora, sua composição é formada por eleitores instruídos. Em parte, graças a essa mídia plural.

Conclusão

Qual a diferença entre a mudança dos notáveis pelos dirigentes partidários e, hoje, pelos candidatos mediáticos? Na primeira mudança, do governo de notáveis para a democracia de partidos, parecia haver uma maior aproximação entre representantes e representados. Hoje, parece o inverso.

Em todas as duas transições levantou-se a hipótese de crise da democracia. Ideia antiga, já existente no final do século XIX, com o surgimento de partidos que se formavam com programas, e fora do Parlamento, sobretudo na Inglaterra, e ascendiam ao poder.[26] Em todas as duas transições – da democracia de notáveis para a de partidos e destes para a democracia de público – observa-se, fundamentalmente, uma mudança das elites escolhidas para governar, resultante da insatisfação dos eleitores com as elites anteriores no poder.

Assim, se considerarmos a crise de representação que se apresenta hoje, sob o prisma da história da democracia, desde a criação do governo representativo, a veremos com olhos distintos, diz Manin. Isso porque os instrumentos institucionais de formação de governo permaneceram inalteráveis. O governo representativo hoje denominado de democrático continua a ser um governo de elites. O que se observa hoje em dia é fundamentalmente o declínio de uma elite, uma elite partidária sendo substituída por uma elite mediática. O governo representativo, um sistema inventado por aristocratas ingleses, latifundiários escravocratas americanos e homens da lei franceses deixou de ser um mecanismo de pacificação do conflito de classe, perdeu sua função. Em parte, porque esse conflito se arrefeceu dando lugar a outros conflitos, que demandam outros mecanismos de regulação e controle. E esse é o objetivo da democracia de público, regular e controlar os novos conflitos.

Essa nova democracia enfrenta, contudo, um novo adversário, o populismo autoritário[27], que pretende refundar a democracia, dela retirando algumas de suas características essenciais como a liberdade de expressão e organização e a divisão entre os poderes, conforme Pierre Rosanvallon.[28]

Interessante observar que a “democracia” ensejada pelo novo populismo autoritário enfrenta a complexidade dos conflitos na sociedade contemporânea, com um instrumento de envergadura: a simplificação. A proposta populista simplifica a sociedade contemporânea, e seus múltiplos conflitos, em dois campos: nós e eles, o povo puro e a elite corrupta[29], os nacionais e os imigrantes, o povo honesto e conservador e os comunistas libertinos. Da forma como se apresenta é um embate novo, cujo resultado é difícil de prever, particularmente na América Latina, na qual o populismo corrói os partidos políticos, graças à tradição do líder carismático.[30]

Talvez agora não estejamos mais em face de uma crise de representação, mas de uma crise democrática. E, paradoxalmente, pela ascensão política de forças que se dizem democráticas.

As forças populistas autoritárias que ascendem ao poder, por meio das eleições, não o fazem em nome de um regime distinto do democrático-aristocrático que conhecemos, mas em nome de sua reinvenção. Nas suas proposições não se trata de destruir a democracia, mas de a refundar. Substituir a democracia liberal pela “democracia iliberal”. A questão é que os procedimentos democráticos, que já eram reduzidos no regime anterior, agora parecem tender a desaparecer. A democracia é reduzida ao processo eleitoral (aristocrático), com limites claros na liberdade de expressão e organização dos eleitores. E nada assegura que na dinâmica dessa “democracia iliberal” os seis princípios da República, considerados democráticos, não venham a desaparecer completamente.

Esse processo de ascensão das forças populistas autoritárias é facilitado, por um lado, pela incapacidade de resposta à demanda dos eleitores por parte da democracia de público; por outro lado, pelo predomínio excessivo dos procedimentos aristocráticos e pela ausência dos procedimentos genuinamente democráticos, ou seja, o sorteio, a revogabilidade e a prestação de contas, com suas consequências. Ou, talvez ainda, pela fragilidade dos mecanismos modernos de participação social.

O fato é que em qualquer dos regimes descritos o povo ocupou um papel secundário. As forças do novo populismo autoritário prometem lhe colocar no centro da cena, reduzindo o poder dos representantes, e concentrando o poder naquele que “realmente” o representa, seu líder carismático. Paradoxalmente, fortalecendo o procedimento aristocrático (eleições), a que a “nova democracia” fica reduzida. E eleições, preferencialmente, sem a participação dos “inimigos do povo”, expressão cara aos regimes socialistas, da URSS à China, e agora presente em Orbán, Maduro e Erdogan, entre outros.

Notas

[1] Bernard Manin, Principes du gouvernement représentatif. Paris: Champs-Flammarion, 1996. O presente texto apresenta e discute uma parte deste livro.

[2] Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[3] Manuel Castells. A ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[4] Adam Przeworski. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[5] As metamorfoses da democracia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29, pp 5-34, 1995.

[6] Alexis de Tocqueville. A democracia na América. São Paulo: Editora Edipro, 2019, é um dos primeiros a denominar o regime politico americano de democracia.

[7] Maurice Duverger. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970 (uma outra edição, de 1980, deveu-se a Zahar com a Ed. Da Unb)

[8] Ver Otto Kirchheimer. A transformação dos sistemas partidários na Europa Ocidental. Revista Brasileira de Ciência Política, 7, p. 349-385, 2012.

[9] Richard Katz e Peter Mair. El partido cartel: la transformación de los modelos de partidos y de la democracia de partidos. Zona Abierta, 108/109, p.9-39, 2004. Conceito objeto de muitas criticas. Ver a respeito, entre outros: Victor Hugo Martinez Gonzalez. El partido cartel. Una revisión crítica del concepto. Foro Internacional, 56 (4), oct-dic 2016

[10] Kai-Fu-Lee. Inteligência artificial. Como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos e nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo Livro, 2019 e Kaus Schwab. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018.

[11] Alexandre Hamilton, James Madison e John Jay. Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro: Avis Rara, 2021.

[12] Manin vai falar de um quarto em seu livro Principes du gouvernement représentatif.

[13] Robert Michels. Sociologia dos partidos políticos. Brasília : Ed UnB, 1982.

[14] Max Weber. Textos selecionados. São Paulo: Nova cultura, 1997 (particularmente: Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída: uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária).

[15] Edmund Burke. Discurso aos eleitores de Bristol. Revista de Sociologia Politica, 20 (44), pp. 97-101, nov.2012.

[16] M. Ostrogorski. La Démocratie et l’organisation des partis politiques, 2 vol., Paris, Calmann-Lévy, 1903 (en particulier vol. I, p. 568), apud Bernard Manin, 1996.

[17] André Siegfried. Tableau politique de la France de l’Ouest sous la III République, Paris, Armand Colin, 1913.

[18] Angelo Panebianco. Modelos de Partidos: organização e poder nos partidos políticos. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2005. Ele irá distinguir entre os partidos de massa dois tipos: Partido burocrático de massas e Partido professional eleitoral.

[19] Robert Michels. Sociologia dos partidos políticos. Brasília : Ed UnB, 1982.

[20] Giuliano Da Empoli. Os engenheiros do caos. Como as Fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influencias as eleições. São Paulo: Vestígios, 2020.

[21] Mesma conclusão a que chega Panebianco (2005), embora com outra argumentação.

[22] Bernard Manin. A democracia do público reconsiderada. Novos Estudos CEBRAP, 97, pp.115-127, 2013.

[23] Claudine Normand. Langue, parole, sujet chez Saussure et Benveniste. Delta, 27 (1), 2011.

[24] Apesar de apresentarem pequena queda as mídias sociais superam a TV como fonte de noticias (63% contra 61%). In: https://www.poder360.com.br/midia/acesso-a-noticias-por-meio-de-midias-sociais-cai-no-brasil-mostra-pesquisa/

[25] Giuliano Da Empoli. Os engenheiros do caos. Como as Fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influencias as eleições. São Paulo: Vestígios, 2020.

[26] Veja C. Schmitt. Parlamentarisme et democratie. Paris: Le Seuil, 1988.

[27] Talvez um pleonasmo.

[28] Pierre Rosanvallon. O século do Populismo. História, Teoria, Crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2021.

[29] Erica Frantz, Andrea Kendall-Taylor, Carisa Niestsche e Joseph Wrigt. Como as políticas personalistas estão mudando a democracia. Journal of democracy (em português), 10 (2), novembro de 2021. Ver também: HAWKINS, Kirk & KALTWASSER, Rovira C. The Ideational Approach to Populism. Latin American Research Review, 52, 4:513-528. (2017),

[30] Kurt Weiland. How populism corrodes Latin American Parties. Journal of democracy, 32 (4), pp. 42-55, Oct 2021.


Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (Rene Descartes, 1982), e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro: Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020). E-mail: elimarcds@gmail.com



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