Fios do Tempo. IPCC, mais um alerta – Elimar Pinheiro do Nascimento

Tomamos conhecimento na última semana de mais um relatório do IPCC (Painel Internacional sobre Câmbios Climáticos) sobra as mudanças climáticas em curso. O relatório em questão é do Grupo de Trabalho I (GT1), que investiga as bases físicas e científicas das mudanças climáticas. No texto que publicamos hoje, Elimar Pinheiro do Nascimento, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UNB (CDS-UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), traz um quadro realista do cenário em jogo, analisando sem ilusões o tenebroso cenário que nos aguarda. Contudo, com sabedoria, Elimar reconhece ao mesmo tempo que, não sendo apenas figura da passagem, mas sim forma, depende de nós, seres humanos, reverter o quadro, desde que comecemos desde ontem a refazer as coisas com lucidez, ação e política.

A. M.
Fios do Tempo, 14 de agosto de 2021



IPCC, mais um alerta

….é um erro confundir problemas difíceis com problemas sem probabilidade de solução”.
(The Beginning of Infinity. David Deutsch)

O impacto do sexto relatório do GT1 do IPCC foi grande, e as interpretações diversas. Tento mostrar os aspectos mais negativos e positivos desse relatório, particularmente para nós brasileiros. E como eles podem ser compreendidos no processo histórico recente.

Os tempos eram risonhos no final do século XIX e começo do XX. O que permitia, por exemplo, ao biólogo britânico Thomas Huxley, em 1889, dizer que os recursos marinhos eram inesgotáveis: “não havia nada de tão sério que pudesse afetar o número de peixes”. Eram anos dourados de crescimento e prosperidade, de novas invenções que ligavam os humanos entre si, ampliavam suas capacidades de trabalho (motores elétricos e de explosão), de locomoção (ferrovia e automóvel) e de comunicação (telefone e telégrafo sem fio). A prosperidade crescia e se expandia de forma contínua, embora aos poucos para os mais pobres, é verdade. Entretanto, chegaram a 1a e a 2a Guerras Mundiais, assim como a febre espanhola. Milhões e milhões de pessoas morreram, e em 1942 a maioria dos europeus imaginava que Hitler viria a dominar o mundo, segundo Morin. Um regime autoritário e genocida, com seus campos de concentração e o racismo institucional, iria esmagar os países democráticos. Porém, o nazismo foi vencido, e uma década depois o stalinismo começou a se desfazer, sumindo por completo no final da década de 1980.

Por isso, a metade do século passado começou com a mesma esperança e alegria dos anos 1920. Tudo crescia, a produção, os salários, as transações comerciais, a escolaridade, enquanto a pobreza, embora em ritmo menor, diminuía. O mundo voltava a sorrir e nada parecia deter o crescimento da produção. Nascia a sociedade de consumo. Mesmo no final do século XX e início do XXI as esperanças ainda eram muitas – os regimes democráticos se expandiam em todo o mundo, a pobreza decrescia e, em movimento inverso, as classes médias se expandiam. Havia crises econômicas, mas sempre passageiras. Havia sinais de alerta de uma crise ecológica, porém, aparentemente, a consciência ecológica crescia e medidas, sob a égide do desenvolvimento sustentável, eram tomadas pelos países em reuniões internacionais que se sucediam. O mundo se conectava com a internet, as inovações tecnológicas impactavam a vida da maioria das pessoas, o mercado global, que havia renascido nos anos 1980, não parava de se expandir. Imperava o otimismo. O futuro nos sorria, pelo menos para uma grande parte da humanidade. Mesmo para os mais pobres havia esperança, pois, a fome e a pobreza se encolhiam e novas oportunidades lhes surgiam.

Hoje, de novo, os tempos estão para previsões sombrias. Expandem-se os regimes autoritários com definhamento das democracias; aumenta a desigualdade social em escala estranha à contemporaneidade; a pobreza volta a se ampliar no mundo, assim como a fome; as pessoas, não importa onde, estão assustadas com uma pandemia que toda vez que sinaliza definhar, volta a crescer, sob a regência de novas cepas do coronavirus; cresce em toda parte o negacionismo à ciência, e a idealização do passado, com o desejo de retorno; a globalização, que parecia trazer uma nova prosperidade para os humanos, é criticada e repudiada em grande parte das sociedades ocidentais; cresce, igualmente, o número de pessoas com depressão e ansiedade, assim como o número de suicídios. Sem dúvida, tempos de nuvens carregadas e horizonte ameaçador.

No dia 09/08 passado, o IPCC (Painel Internacional sobre Câmbios Climáticos), que reúne especialistas de 195 países, e analisa as mudanças climática desde 1988, publicou um relatório tido por alguns como assustador. Na verdade, o IPCC consiste em três Grupos de Trabalhos: o GT1 é responsável pelas análises das bases físicas e científicas das mudanças do clima; o GT2 pelo estudo dos impactos da mudança do clima na sociedade; e o GT3 analisa as estratégias de mitigação das mudanças climáticas. O relatório supracitado foi o sexto (AR6) do GT1. Em resumo, ele afirma três coisas essenciais para nós brasileiros: a) a causa principal do aquecimento global é humana; b) algumas barreiras da mudança climática foram ultrapassadas e seus efeitos se farão presentes por décadas; b) o Brasil será um dos países mais atingidos.1 Ao que poderíamos acrescentar um quarto: se não tomarmos as medidas necessárias, os efeitos serão ainda piores, muito piores, com consequências altamente desastrosas.

O secretário geral da ONU declara que é um sinal vermelho para a Humanidade. Os mais otimistas proclamam que, se todos os países tomarem as medidas corretas, poderemos navegar no melhor cenário, evitando alguns dos desastres esperados, mas não todos. Esquecem os “Bolsonaros” da vida.

De forma sintética, esse relatório do IPCCl (Climate Change 2021: The Physical Science Basis), diz que fronteiras da sustentabilidade foram ultrapassadas de forma irreversível, atingido, entre outros, a agricultura e a pesca marinha. O aquecimento global mantém-se em nível acelerado, o que em breve nos levará ao patamar almejado para o final do século (1,50C). Por outro lado, do aquecimento de 1,09°C observado entre 2011 e 2020 em comparação com o período pré-industrial (1850-1900), 1,07°C deriva de atividades humanas, com o desmatamento e a queima de combustíveis fósseis. O relatório de hoje, o AR6, apresenta uma nova série de cenários de emissões – cinco no total – batizados de Projeto de Intercomparação de Modelos Climáticos Versão 6 (CMIP6). São dois cenários de baixas emissões (SSP1-1.9 e SSP1-2.6), um de médias (SSP2-4.5) e dois de altas (SSP3-7 e SSP5-8.5). Em todos os cenários, a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris – limitar o aquecimento a 1,5o C -, é ultrapassada no começo da próxima década, dez anos antes do previsto. No cenário SSP1-1.9, de emissões mais baixas, o aquecimento voltará a estar abaixo desse patamar somente no fim do século e em resposta a um corte ambicioso de emissões que começasse já.

Dessa forma, estaremos condenados a conviver com um número maior de tempestades, tufões, incêndios, secas, altas temperaturas como a de 40,9 graus neste verão no Canadá, associados a frios intensos, como os que assolaram os Estados Unidos no inverno passado, nevando aonde nunca se viu neve. Os mares continuarão a se elevar, mesmo no melhor dos cinco cenários, pois as geleiras e o ártico continuarão a perder gelo. Desde o início do século 20, o nível do mar subiu 20 cm, mas a taxa de elevação está crescendo: passou de 1,35 mm por ano entre 1901 e 1990 para 3,7 mm por ano entre 2006 e 2018. Em qualquer dos cenários, os eventos críticos climáticos aumentarão sua frequência e intensidade.

Para nós, brasileiros, a notícia é ainda pior. Somos um dos países mais afetados pelo aquecimento global. O semiárido nordestino tende a se tornar uma região desértica, com temperaturas que poderão eliminar a vida orgânica em seus subsolos (500C ou mais). Depois disso não adianta chover. A Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, tende a se transformar em uma savana, modificando o regime pluvial do Cerrado. Sem chuvas, nosso celeiro de produção de alimentos irá se esvaindo. E a matriz elétrica, baseada na fonte hídrica, irá se desfazer. Não se sabe se teremos tempo de substitui-la por uma matriz baseada em fontes mais renováveis como o vento e o sol. E se teremos condições de substituir a queda na produção agrícola.

Como nada é suficientemente ruim para não poder piorar, há sinais de aprofundamento do desastre que nos aguarda, e que já começam a se manifestar. Os sugadores naturais de CO2, oceano e florestas, por exemplo, estão se exaurindo. As correntes marítimas no atlântico norte estão se modificando com a redução das geleiras na Groelândia e no Polo Norte, o que irá agudizar as baixas temperaturas no inverno europeu. Se o desgelo continuar a se expandir para regiões como a Sibéria, o CO2 retido pelas neves (permafrost) voltará à atmosfera, agravando o quadro. Os oceanos arriscam ter suas águas invadindo cidades costeiras. As migrações ecológicas devem crescer, assim como a escassez de recursos hídricos. Os conflitos ecológicos tenderão a aumentar. Os muros nas fronteiras dos países do Norte tenderão a se expandir. As guerras, a fome e a peste, que estavam sendo banidas, voltarão com vigor.

O quadro é tenebroso. Contudo, suficientemente homeopático para que a maioria da humanidade não se dê conta do que estamos vivendo, das ameaças e riscos que estão se desenhando no horizonte próximo. O desandar do clima já começou e apenas se agudizará ao longo do século. O equilíbrio da terra, que garantiu a vida por bilhões de anos, está ameaçado. A natureza reage à agressão humana, pois, como citado, esta é uma das conclusões do relatório do IPCC, mais de 90% das causas das mudanças climáticas residem na ação humana. Assustador, mas esperançoso. Se as causas residem esmagadoramente em nossas ações, temos o poder de modificar radicalmente a situação, pois tudo depende de nós. Esta é uma constatação alentadora. A inversão desta tendência desastrosa encontra-se em nossas mãos. Depende de nós. E só de nós.

Medidas drásticas poderão ser adotadas para evitarmos o pior. E temos interesse que isso aconteça, afinal, não estão em jogo o planeta terra ou a vida em sua superfície – esta persistirá, como já ocorreu em crises pretéritas – mas estão em risco as condições de vida que temos hoje. Podemos ter um retrocesso civilizacional que nem os negacionistas mais radicais imaginam. Ou, hipótese menos provável, termos o desaparecimento da humanidade. Neste caso, dizem os cientistas mais cínicos: a natureza agradece, pois nenhuma espécie ameaça tanto a vida como o Homo Sapiens. Este é o maior degradador e o maior responsável pelo desequilíbrio que está ocorrendo em nossa biosfera. Será triste um desaparecimento tão rápido. O bom é que ele depende de nós. E, sabemos todos, no futuro mora a incerteza. Tanto para o bem, quanto para o mal. Perecer ou reviver em outras condições, com outro estilo de vida depende de nós.

Contudo, a maioria das pessoas, particularmente dos participantes de decisões políticas, no Brasil e outros países, é surda a este tipo de alerta. Como se o assunto se referisse a outro planeta. A elite econômica brasileira, tomada por uma visão estreita e imediatista de lucro, julga que esta linguagem é falsa, fazendo coro com os negacionistas. O filtro da ideologia do lucro imediato, do crescimento contínuo, impede-a de escutar ou ver algo que contrarie seus interesses. A classe média, mais escolarizada, está preocupada essencialmente com aumentar sua renda, ganhar reconhecimento e ascender na carreira que adotou, possuídos pelo individualismo contemporâneo. Como se o desastre ecológico não fosse comprometer seus ganhos e estilos de vida. A maioria da população não entende o que isso significa. Aqueles que tomam em consideração os riscos aos quais estamos ameaçados são poucos. E grande parte destes é tomada pelo pessimismo excessivo: “não adianta fazermos algo; não vai mudar mesmo”. Restam alguns jovens, que inspirados em Greta ou outros, se movimentam, porém, em movimentos de pouca repercussão, localizados. Acreditam, ingenuamente, que pensando global e agindo local, mudarão o rumo da economia. Esquecem que entre um nível e outro existe o nacional, espaço no qual se dão grande parte das decisões. E que os maiores impactos provêm daqueles que agem no espaço global, as empresas multinacionais. O sentimento de apatia é angustiante. Por quanto tempo?

Especialistas, como Paul Gilding e David Wallace-Wells, acreditam que o desastre será inevitável, e que só tomaremos as medidas drásticas, necessárias, depois de perdemos alguns milhões de semelhantes, senão bilhões. Afinal, como sugere Latouche, somos todos dominados pela ideologia do crescimento, e um crescimento contínuo em um planeta finito conduz inevitavelmente a um desastre. Os aceleracionistas, por sua vez, veem no futuro não o desaparecimento dos humanos, mas a sua simbiose com a inteligência artificial (Kurzweil – A singularidade está próxima) ou a sua submissão à IA (Lovelock – Novoceno). No entanto, como diz David Deutsch: “Todos esses cálculos pessimistas da condição humana contém alguma verdade, mas, como as profecias, são enganosos, e todos pela mesma razão. Nenhum deles retrata os humanos como realmente somos, pois como disse Jacob Bronowski – O homem não é uma figura na paisagem; é ele que dá forma a paisagem”. E no grande conflito universal, entre a Monotonia, do Universo, e a Criatividade, da Terra, estamos deste lado e não daquele, e assim, e só assim, romperemos a “lei da hierarquia do universo”, e o pequeno irá mudar o grande. Pois, depois de 2 bilhões de anos de existência, o Universo ingressou em uma enorme monotonia: nada de realmente novo, apenas repetições. Ocorreram, no entanto, duas pequenas exceções: a primeira foi o surgimento da vida em um pequeno planeta periférico em uma galáxia periférica. O segundo fato novo foi o surgimento da vida inteligente, capaz de criar coisas novas. Ou seja, dotado de uma enorme potência criativa. Somos nós, e só nós, que podemos mudar o mudo, para pior ou para melhor. Cabe a nós decidirmos se seremos de fato aquele que dá forma à paisagem, e não uma reles figura na paisagem.

Notas

1 Mais informações sobre o relatório podem ser obtidas em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-i/.

Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (Rene Descartes, 1982), e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro: Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020). E-mail: elimarcds@gmail.com

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